Sem ser vascolejada a vida era o mesmo que possuir certa parte do corpo e não ser capaz, por defeito, por velhice, por ausência de alegria de a erguer tão alto quanto o permitissem os vasos sanguíneos.
Na vida deve ousar-se, eis a divisa da sua existência.
Odiava todas as formas de assentimento, de obediência e de medo. E por isso esporeava os cavalos até espumarem, arriscava círculos improváveis sentado no girocóptero, atravessava com a fúria da sua lancha Ferrari V12 o intervalo das ondas de todos os mares do Mediterrâneo, derretia ao volante de um futurista Alfa Romeo C52 herdado do avô Silvano as curvas e contracurvas que desciam de Génova à Calábria.
Massimo Volti amava o risco.
Como na labiríntica lei einsteiniana que sugere a deformação do espaço-tempo pela ação dos corpos celestes massivos, assim os cabelos das beldades nas praias de Portofino e a dos pastores nos píncaros de Matera se contorciam à sua passagem alucinante.
Era um louco. Certo poeta português encomia bastante este género de grandeza buscada no estouvamento.
Um homem deve poder acrescentar ao ramerrão uma ou duas colheradas de adrenalina. Mesmo se às duas por três perde o controlo de si e o corpo, como um inseto sem asas, voa uma última vez em direção ao abismo.
Para Massimo Volti Ícaro era o único herói suportável e entendível. Sem concordar ou discordar do seu modo de vida, admitimos somente um pouco de inveja. Apenas um pouco.
Vencido pelos anos e por um profundo desamor à vida, Wú Mo, um dos eunucos poetas que serviam e celebraram o poderoso Yung-lo, gastava grande parte das suas noites a cogitar numa maneira boa de morrer.
Primeiro em Nanquim, mais tarde no coração da capital do império, assistira ele muitas vezes à violência e à crueldade do seu senhor. Não lhe parecia difícil conseguir a punição suprema. Difícil era poder fechar os olhos sem ruído, sem pressa, sem rancor, tal como o dia faz quando fecha as suas asas.
Pelas ruas magníficas da Cidade Proibida não deslizava senão, nesse tempo, a pouco subtil e muito trabalhada arte da louvação da casa do Ming, do guerreiro das sumptuosas sedas amarelas, do autor das gestas inumeráveis e incomparáveis que ele, Wú Mo, cantava em verso.
Mas o velho eunuco conhecia também as sombras. Para lá da luz e do luxo e do louvor havia brechas, portas mal seguras, casebres de bambu onde moravam outros velhos menos afortunados. Aí dominava-se outra língua, praticava-se outras ciências, cuidava-se de outros poderes que lograriam, num descuido, interromper a interminável subjugação de Yung-lo, a insuportável bajulação para com Yung-lo, a abominável adoração a Yung-lo.
Afeiçoou-se ao velho servo uma das muitas esposas do imperador, filha de um camponês qualquer, trazida de uma das províncias distantes para onde os exércitos e as mãos implacáveis de Yung-lo se estendiam ultimamente.
Depois das cortesias e, mais por rebuscadas alusões do que por palavras chãs, eunuco e concubina compreenderam um no outro a mesma estranha infelicidade e o mesmo propósito que a ambos envenenava a alma. Ajudar-se-ia, portanto, a deixar este mundo e fá-lo-iam em segredo, com o recurso ao recente saber que tomara ela acerca da fervura de certos grãos trazidos pelos mercadores do deserto, grãos escuros e fatais que deveriam ser esmagados até deles não sobrar mais do que um pó igualmente escuro e perfumado.
O eunuco rejubilou. Esse seria, com efeito, o fármaco do seu fim.
Tendo-os na sua posse, Wú Mo procedeu com eles como se descreveu atrás. Ferveu água e em seguida verteu-a sobre um púcaro de boa porcelana no fundo do qual jazia a delicada farinha. Mexeu-a em duas ocasiões e deixou-a recair antes que pudesse bebê-la.
Não tardou a que o forte odor da beberagem transpusesse os seus aposentos, ultrapassasse os pátios, atingisse o salão do trono e o próprio nariz imperial.
«Que cheiro é este» perguntou Yung-lo.
Conduziram à sua presença o infeliz eunuco, a quem foi imposto (como lhe impunham às vezes um poema) que ingerisse o misterioso líquido negro. Bebeu e sorriu. Morreria, morreria bem, na presença e para desgosto do maldito usurpador. Assim o desejara, assim se cumpria.
Porém, não havia ali morte alguma. Bem pelo contrário, o corpo entorpecido de Wú Mo pareceu animar-se de uma força inteiramente nova, de uma alegria inesperada, de uma juventude esquecida muito tempo atrás.
Wú Mo viveu até aos cento e cinquenta anos. É o que dizem as crónicas chinesas.
O vento punha-se a titilar nas ervas altas e era bom. Era livre. O sol caía em cachos na toca dos grilos e era belo e livre. Os miúdos saltavam os muros e corriam livremente pelos talhões de margaridas e era maravilhoso vê-los. O pintor compunha sem pressa o azul do mar ao fundo e o pé robusto das árvores ao perto e era muito agradável, agradabilíssimo, prestar atenção ao vento e ao sol e às crianças a voarem juntas pelo prado.
O poeta, no entanto, preferia a chuva e o silêncio. Preferia, sem dúvida, o canto mal aceso do seu carvão, a odor forte do seu tinteiro, o peso enorme dos seus versos impregnados na solene tristeza dos poetas. Era um desses homens infelizes para quem a simplicidade das coisas não faz sentido.
Quando a rapariga que vendia o leite lhe bateu à porta, com as faces cheias de rubor e o coração aos saltos, o poeta não encontrou as palavras certas para responder à saudação. Dentro de si as verdades tinham a dureza do mármore e o espontâneo cansaço de uma mesura.
A rapariga amava-o e ele sabia. Mas não era capaz de viver com a alegria ingénua de um grilo, só com o ímpeto de um tigre enjaulado. Era a sua pena e ele sabia.
Cansado das erronias do seu tempo e das injustiças do seu povo e das mentiras descaradas com que um alimentava o outro, cansado da vileza com que ambos destituíam do seu lugar primeiro a bondade entre os homens, Kazuya afastou-se da cidade e caminhou em direção ao nada tantos dias quantos puderam as suas sandálias.
Em certo lugar nevoento encontrou uma curiosa árvore, que lhe parecia tão perdida quanto ele próprio. Junto dela começou a tirar de dentro de si as palavras que guardara e que lhe chocalhavam na cabeça como água a ferver num pote. Disse muitas coisas: primeiro em surdina, depois aos berros, por fim cheio de arrependimento.
Sentiu, então, um grande frio. Uma solidão imensa e devastadora. Uma vontade incontrolável de chorar. Chorou tanto quanto puderam os seus olhos. Em seguida abraçou a árvore, agradeceu-lhe e prosseguiu a viagem pelo meio do horizonte verde-cinzento. Não se soube mais dele do que isto.
A última pessoa a vê-lo foi uma velha fiandeira. Admirou-se que um mendigo assim esfarrapado pudesse estar mais feliz do que uma lâmpada acesa.
E que a ela não tivesse pedido nada, nem sequer um bom dia.
Traziam-lhe marfim e ele esculpia-o com a paciência mais apurada de que o género humano é capaz. Os objetos saídos das suas mãos contavam-se entre os que mais vorazmente atraíam a cobiça dos estrangeiros em Brazzaville, em Djambala, em Sibiti, em Mandigou e em todo o Congo. Chamavam-lhe «O abençoado», embora o seu nome verdadeiro fosse Isidor Nkobanjira. Ao cruzar a velhice gabava-se de possuir, nada mais, nada menos, do que setenta filhos.
Perto do fim, pôs-se a cortar e a perfurar e a abrir sulcos com o cinzel numa presa de elefante. Primeiro entalhou o serpentear de um rio, depois o crescer de uma montanha, a seguir uma revoada de astros perfeitamente hemisféricos. Com minúcia, foi acrescentando a água e os peixes, a terra e as impalas, o céu e os abutres. Encheu o marfim com as criaturas todas de que se pôde recordar, sem omitir o silêncio, a morte ou o medo.
«Todo o universo cabe aqui» pensou Nkobanjira.
Na realidade – reparou com o semblante insatisfeito – ao cabo de tudo ainda lhe sobrava algum espaço.
Antoine de Saint-Exupéry, malogrado piloto francês que o mundo inteiro conhece como autor das frases magníficas de O Principezinho, escreveu no seu Diário a entrada seguinte, datada de 21.06.1944.
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Entre os povos tuaregues de Marrocos e da Argélia, um estrangeiro descobre que as palavras valem mais sendo menos, sendo maior o silêncio que as separa umas às outras. Também aprende que o cheiro das dunas e o efeito de um chá de hortelã (bebido quase a ferver no pico do dia) podem abrir, na sua cabeça obtusa e dorida, corredores profundos e misteriosos.
Esse forasteiro aprende que o valor de um homem é o preço das suas imagens. Das que flutuam dentro dos olhos e que, muitas vezes, são a renascença das suas memórias. Da coragem de regressar aos antigos sonhos, aos impulsos que as noites continuam (impoluta, legitimamente) a segregar dentro de si.
Um homem civilizado desce as províncias de França e os Pirenéus, deixa para trás as velhas fronteiras da Ibéria e atravessa a boca do Mediterrâneo, adentra-se no deserto e torna-se aos poucos um resgatado, um coração limpo, uma criança posta de novo no sussurro da existência.
Esse homem que se arrisca no desconhecido não descobre um simples tufo de ervas no percurso que faz ao longo de milhas. E, no entanto, acorda à medida que as percorre. Não encontra um poço de água ou uma sombra ou outro animal diferente da sua montada. E, porém, jamais se sentiu tão desperto ou tão próximo das formas de vida. Toda a imundície colada ao corpo e todo o lixo aninhado nas partes da sua alma são como que lavadas na fricção contra as milhentíssimas luzes das areias que o vento faz deslizar facilmente.
Quando, de um instante para outro, nuvens de pó se erguem do erg e quase sufocam a paisagem e a sua garganta, esse homem vindo de fora vê como os imazighen resistem cheios de nobreza, tapando sem queixumes o rosto envelhecido e encostando a cabeça respeitosamente ao dorso do dromedário que conduzem.
Um estrangeiro compreende que é no pó que os olhos veem mais longe. É no meio das tempestades que os olhos alcançam a chamazinha do espírito julgado perdido.
Na confusão dos elementos vinca-se nele a certeza de que viver não é um jogo, mas um privilégio e de que não existe outro caminho para a vida senão livrarmo-nos de todas as mentiras que a luz fulminante do deserto denuncia.
Entre os povos nómadas, um homem sedento da verdade escuta frases demoradas.
«Se queres a vida dos outros, entrega-te às cidades. Se queres a tua vida, entrega-te à solidão!»
Entre as heresias que Agostinho refutou e combateu no tratado célebre de 428, não consta aquela que se atribui ao monge galês Ciliano Ordovico (ou Cilianus Brittanicus, ou Kilian de Glyngarth) e que – será uma lenda – chegou aos ouvidos do filósofo de Hipona numa manhã abrasadora de julho, a escassas semanas de se despedir ele deste mundo.
O douto Padre de que falamos terá exclamado do leito onde jazia:
– O fogo deste dia em nada é comparável ao que há de fazer encarquilhar o corpo e a alma deste apóstata, em cujo coração e de cuja boca correm tão ímpias mentiras!
Pouco se sabe de Ciliano Ordovico. Que era um homem simples. Que era entre os povos do sudoeste da Bretanha o que Patrício foi entre os gaélicos irlandeses ou, mais tarde, Columba no meio dos pictos e os gaélicos da Escócia. Ciliano, porém, ao invés daqueles santos canónicos, descria na Santíssima Trindade, tendo acolhido muito cedo as teses de Ário de Alexandria, em particular a que negava a Jesus a mesma divindade do Pai. Sabe-se, do mesmo modo, que era inegável a sua simpatia pelas ideias de Pelágio, que chegou a conhecer na juventude, e de que cuja influência nunca se libertou inteiramente.
«Como pode uma criança nascer com a mácula de um erro que não cometeu? Que sentido pode haver na verdade de que Deus é amor e, simultaneamente, capaz de repelir parte dos seus filhos? Como pode O Todo-Poderoso considerar aqueles que, tendo nascido iguais a si em imagem e semelhança, puníveis pelo pecado do primeiro homem e da primeira mulher, ad aeternum, sem o ritual simples do batismo?»
Ciliano procurava muitas vezes a solidão das florestas e o sossego das praias para meditar.
Observando amiúde os pobres camponeses a abrir com os machados as faias para lhes retirar a casca, ou vendo passar os pegureiros com os seus rebanhos inocentes, ou contemplando as crianças a colher bagas de airela com a esplêndida alegria das crianças, ou lançando as vistas para mais longe – para onde as pequenas barcaças iam e vinham com o peixe que também Pedro e André e Tiago pescaram na Galileia – o monge galês reiterava a sua certeza de que todo o homem podia salvar-se sem mais sacramentos do que o de simplesmente imitar a Cristo.
Ainda mais: tal como os irreverentes cachorros a quem se aplicava às vezes uma vergasta e eles gemiam um instante para logo depois se juntarem de novo à mão que os zurziu, assim os pecadores, por muito grande que fosse a culpa das suas ações – resultante sem dúvida das suas existências dificultosas – teriam inevitavelmente de retornar à graça do Criador.
Entre as tribos de pagãos, chamadas não havia muito tempo de siluros, démetas, cornovii, deceanglos, catuvelaunos, ordovicos, dobunos, Ciliano espalhava a sua visão pessoalíssima do cristianismo. O Filho de Deus era um exemplo de vida, não um dogma. Cristo pediu que o seguissem e cristão era todo aquele que preferisse o bem ao mal, a simpleza à jactância, o coração leve e puro ao rancor e à ambição.
E, por isso, Ciliano ensinava e era compreendido, amava e era amado, disseminava uma fé nova no serpentear dos pântanos e no correr das planícies, erguia-a aos altos selvagens cobertos pelas névoas e pelo misticismo e pela violência dos druidas. «Não creio no inferno» era – em suma – a estranha natureza da sua heterodoxia.
Outros monges missionários batiam-lhe o pé, recordavam o fogo de Hinom a que o próprio Cristo fez menção. Mas Ciliano lia nessa passagem dos Evangelhos uma alegoria.
«Por muito esquálido ou turvo que se mostrem a razão e o juízo de um espírito, assim que este deslace do corpo jamais Deus o poderá abandonar. Assim como os camponeses lavam os couros sujos em muitas águas, assim Nosso Senhor o fará com os pecadores. A condenação eterna seria o mal extremo, porque nenhum sofrimento pode ser maior do que sujeitar matéria ou alma a um suplício sem fim. Deus é amor, meus filhos e é inconcebível que pudesse conspurcar a sua substância inefavelmente benévola com um vício tão grande. O castigo demora apenas o bastante para que o erro se transforme em sabedoria e o possa Pai Celestial ao faltoso, outra vez, recebê-lo nos seus braços.»
Correu devagar esta heresia. Quando alcançou os ouvidos benignos de Agostinho, o velho teólogo gracejou:
– Oitenta e oito foram as falaciosas doutrinas que tomámos do nosso conhecimento e do sábio conselho de outros a que Deus revelou a verdade. Mas o demónio jamais se contenta com o açoite da nossa fé. Este e todos os malditos que espalham cizânia sobre a terra sã hão de com ela ser queimados duas vezes.
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Não consta que Ciliano Ordovico (Cilianus Brittanicus, ou Kilian de Glyngarth) tivesse ardido ou sido sequer obrigado a abjurar. Tampouco que a História lhe haja reservado um lugar proeminente entre os incontáveis heresiarcas.
Assinalamos somente – é o nosso dever – as suas palavras, dignas, achamos nós, de algum interesse e – quem sabe obscurum per obscurius – da melhor cristandade.