Sempre uma questão de tempo

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Fotograma do filme «Casablanca» (Warner Bros)
Fotograma do filme Casablanca (Warner Bros, 1942)

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Começo esta crónica com o piano de Ryuichi Sakamoto em fundo. É uma balada tão calma, tão pungente, que um leitor mais sensível se entregaria de imediato ao devaneio por entre jardins e lagos do Japão, junto a uma casa de chá, debaixo de frondosas tílias, segurando a luva delicada de uma mulher cujo nome convém não dizer… É uma dessas baladas que levam às lágrimas o leitor mais sensível, quando em lugar de tudo o que acabo de descrever, só as memórias ocupam o seu pensamento… Talvez ocorra a alguém que um tal som de piano em fundo se usava no tempo de certos filmes a preto e branco, porventura dalgum dos clássicos que revemos nas noites solitárias de inverno, ou nos ásperos dias de alguma separação recente. Pela minha parte, ocorre-me o imortal Casablanca, a lendária dupla que Humphrey Bogart e a maravilhosa Ingrid Bergman protagonizaram, o Sam que Dooley Wilson encarnou, tocando para todo o sempre As Time Goes By

Começo com a lareira acesa, com um copo de Terra do Zambujeiro em cima da mesa, com um livro de Manuel Hermínio Monteiro nas mãos. Porque a verdade é só uma: escrevo por causa deste Urzes, compilação de pequenos textos que o saudoso editor deixou dispersos em jornais e revistas ao longo da sua incomparável existência física.

Podia ter começado, aliás, com uma citação sua, algo como «Em Portugal, o escritor vive na solidão que nem a pompa fúnebre que os poderes montam para a sua morte consegue disfarçar.»

Podia prolongar a citação, deixar que penetrasse fundo o sentido da crítica, que magoasse a sua mágoa, permitir que ficasse escrito também «Mal se extingue o bramido das carpideiras, o escritor fica duplamente soterrado. A sua obra, ou fica à mercê dos herdeiros que, salvo honrosas e conhecidas exceções, nada têm a ver com a obra nem com a vida de quem biologicamente lhes tocou, ou fica dispersa e esquecida como uma cidade imperial soterrada.» Porque a verdade é só uma: escrevo por simpatia, por desejo de replicar algo que leio e que me consola profundamente. Manuel Hermínio Monteiro é um ser fascinante, uma das poucas pessoas que lamento nunca ter conhecido pessoalmente.

Começo esta crónica com o suave ondular das notas musicais, com um piano que me faz esquecer a intensa mediocridade do meio, que me faz perdoar as traições do meio, que me faz iludir o desprezo pelo meio. E quando digo meio digo-o em sentido abrangente, inscrevendo, circunscrevendo nele escritores, editores, leitores, críticos, professores, premiadores de mérito, castigadores de reputações… Porque nem todos no meio são tão puros, generosos ou competentes quanto o foi em vida (e mesmo depois da sua morte) o Manuel Hermínio Monteiro. Porque muitos são meras aflorações rasteiras da grande árvore da literatura, gente escarninha, vil, ególatra, mas acima de tudo desprovida de talento! Porque o nosso meio tresanda hoje, como tresandava no tempo de Camões, a compadrio, lisonja e hipocrisia. Porque, escreveu-o ainda o antigo diretor da Assírio & Alvim, «O escritor dispõe da grande força do poder criador, mas perante o socioeconómico, com as suas leis de mercado, as estratégias editoriais, o gosto dominante, etc., o seu poder é reduzido.» Isso explica o profundo esquecimento de homens e mulheres do meio como Ângelo de Lima, Fialho de Almeida, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Ruy Cinatti, Alberto de Lacerda ou Fiama Hasse Pais Brandão. Isso explica o desconhecimento quase generalizado (fora dos muros universitários) da obra primorosa de autores vivos como Fernando Echevarría, José Agostinho Baptista ou António Franco Alexandre. Ou o ostracismo a que foi votado Altino do Tojal.

E quando o meio é francamente viciado, o país responde-lhe com desdém. Repego nas palavras ironicamente certeiras de Manuel Hermínio Monteiro: «o país tem é que criar centros culturais megalómanos. Criar comissões comemorativas. Organizar projectos de repercussão internacional, campeonatos mundiais de futebol.»

Mas talvez não seja um problema apenas ou fundamentalmente português. Gerrit Komrij fugiu à Holanda natal para se refugiar em Trás-os-Montes. José Rentes de Carvalho abandona ainda Portugal durante largas temporadas para se refugiar em Amesterdão. E não abjurou Thomas Bernhard da sua Áustria arrogante? Não se está positivamente nas tintas o Herberto Helder para o país? Para o meio? O meio faz as suas vítimas em toda a parte! Ou então destemidos opositores. Isso faz-me pensar…

De maneira que a cabeça pesa, com o piano de Ryuichi Sakamoto em fundo (mais poderosa do que o gosto dominante, mais aguda do que o elogio académico, mais duradoura do que cem cordas encordoadas de interesses comuns e políticas livreiras). De maneira que amo mais profundamente o copo de vinho que tenho à minha disposição, ou as labaredas da lareira reacesa por causa do frio, ou o devaneio por entre jardins nipónicos, de mão dada com belas mulheres loiras de filmes imortais.

Um escritor pode ser solitário. Ou pode ser que nunca seja só. O sono vence-me a resistência dos ossos e do orgulho. Remato com uma última citação do homem a quem, deliciado, leio a crónica «Elogio do Escritor»:

«Ele é dos poucos a quem a luz do Sol entrega sonhos. É assim que Deus lhe paga. E este é o mais belo plano de todo o filme.» Podia ter começado por aqui. Teria dado uma belíssima crónica.

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Outra sobre livros

Xelo Moya 03
Fotografia de Xelo Moya

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No momento em que escrevo estas palavras estou tomado por uma fúria descontrolada, que entre outros perversos efeitos psicomotores me faz escrever cada palavra como se tivesse nascido malaio, russo ou etíope, de modo que a fúria de fúria se alimenta e às tantas estou a martelar no teclado e a fazer dramáticas caretas para o ecrã branco à minha frente, parede de luz e de silêncio que me ignora, aliás, as graves razões por detrás e o significado de cada esgar de louco que lhe lanço. Não, não é um ótimo começo de crónica. É só um começo. De resto, imagino que quem me lê (dois ou três amigos que não atiraram ainda a toalha ao chão, para me servir de uma metáfora da moda) se pergunte quais serão, enfim, os motivos de uma tal perturbação, ou se questione (não o duvido) se o autor destas palavras não estará apenas a ganhar tempo para encontrar alguma coisa que valha a pena ser dita, andando daqui para ali e dali para acolá, às voltas e às voltas, a espalhar a fúria, como se espalha cinza, ou uma punhado de sal no gelo. Não, definitivamente o juízo não me acompanha!

Adianto a explicação: andando eu, esta tarde, em verificação de certos cartapácios e obras menos procuradas, descobri que uma infiltração de água cá em casa, uma dessas malditas entradas da chuva, quando há chuva (e este inverno tem havido muita, Deus seja louvado), veio descendo uma e outra e outra vez, sempre em segredo, sobre uma das mais altas estantes da minha biblioteca, e, assim mesmo, sem avisar, fez-me apodrecer (não é exagero, é apodrecimento sem tirar nem pôr) mais de metade da minha extensa e preciosa coleção de pintura da Taschen, levando consigo seis romances de Milan Kundera, um de Gabriel García Márquez (tudo Publicações Dom Quixote), umas quantas recolhas de contos (entre eles três dos sete volumes de contos de Anton Tchékhov, edição da Relógio d’Água), entre outros títulos que nem vale a pena aqui chamar à récita. Vi tudo com incredulidade. Vi o empastamento das folhas, vi o encarquilhamento da humidade, os círculos monstruosos, cancerosos, do bolor. Toquei na ferida. A polpa dos dedos levantou sem dificuldade páginas inteiras da minha religião principal, e pedaços, nesgas de papel, ângulos de prosa e pinturas imortais, que (a salvo de semelhantes infiltrações) jazem felizmente enxutas nas salas dos museus mais diversos do mundo…

Se não for inconveniente, nem excessivamente efeminado, permita-me o leitor (uso o singular, mesmo convencido de que serão afinal dois ou três) que chore. Permita-me que sofra o desgosto outra vez, que o reviva devagar com o secador do cabelo em riste, que faça ainda um derradeiro esforço para salvar o insalvável, e que gema, que grite, que berre, que barafuste, que bata com o punho, que ameace a frincha maldita por onde desceu esta gangrena, que ameace com dinamite e depois com cal e tinta o maldito lugar por onde o mal veio ao mundo. Ao meu escritório pelo menos!

E chegado a este ponto, ainda sem ter conseguido iniciar a crónica, devo explicar o seguinte: há uns dois meses, quando alinhava os poemas do meu último livro; quando precisei de qualquer coisa que sabia o que era mas não de quem; quando percebi que era uma citação de Mário de Cesariny de Vasconcelos, descobri o que não se deve descobrir. Que emprestei o Manual de Prestidigitação e não mo devolveram. E como um mal leva a outro, como uma falha nos aviva a memória de falhas anteriores, dei-me conta de ter emprestado também Horto de Incêndio de Al Berto e de não o ter em casa. E um tomo das crónicas de Fernão Lopes (dedicado a el-Rei D. Pedro). E também um romance de Isabel Allende (quem o tiver em sua posse, faça bom proveito). E era justamente para conhecer a real dimensão do problema que me propus fazer uma vistoria. Pelo que me propunha escrever uma crónica, a começar assim:

«Por causa de um prospeto conheci a poesia de Al Berto, por causa de um flyer conheci a de Mário Cesariny de Vasconcelos. Dois superpoetas do século XX (que viram a esquina do milénio), dois inconformados, dois rebeldes que (cada um à sua maneira) ganharam fama de malditos, ou, pelo menos, de mal-amados.

Se Horto de Incêndio me abriu a porta para o poeta de O Medo, foi o extraordinário «Discurso ao príncipe de Epaminondas, mancebo de grande futuro» que me deu a conhecer Manual de Prestidigitação e, depois dele, Nobilíssima Visão, Pena Capital, A Cidade Queimada, Titânia e, já no mestrado, Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (que afinal já conhecia, na versão mais curta de Nobilíssima Visão) e O Virgem Negra. Sigo a ordem por que os li e não a que seguiu o autor ao escrevê-los ao longo de meio século de paciência, polémicas e amor incondicional à arte de Homero.

Só esta tarde, aquando de uma arrumação que aqui não importa esmiuçar, é que me lembrei de o ter emprestado e não o ter recebido de volta. E porque o emprestei a alguém que agora se encontra em parte incerta, só esta tarde me inteirei da perda. Estou consternado! Os livros não são emprestáveis, especialmente os de poesia: eu já o devia ter percebido, eu que somo até hoje reveses consideráveis em relação a Mário de Sá-Carneiro, Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner Andresen e Wisława Szymborska (neste caso derradeiro com a sorte de haver, entretanto, podido comprar um novo exemplar do volume “desaparecido”) e, por alguma razão os citei de início, também Al Berto e Cesariny.

Moral da história: venho por este meio, fria, solene e publicamente declarar a minha absoluta, voluntária e inegociável indisponibilidade para ceder doravante por empréstimo, ou outro igual expediente, qualquer livro de poesia, podendo nos restantes casos, desde que não seja a minha porção de teatro (grego, de Goldoni, Ibsen, Lorca, Brecht e Beckett), de ensaios (com Lourenço e Steiner à cabeça), ou de ficção (portuguesa, europeia, universal), considerar a hipótese de. Repito: os livros não são emprestáveis, nem riscáveis, nem dobráveis, nem sujáveis com impressões digitais, nem são bons lugares para guardar os números do Euromilhões e números de telemóvel. Pela parte que me toca, sou fundamentalista do livro limpo, do livro impecável, do livro inteiro e intacto, como o tipógrafo o pôs no mundo. E, dito isto, calo-me, porque o que tinha a dizer disse!»

Isto era a minha proposta. Mas compreendi que uma tal crónica, além de breve, além de estranha (seria realmente aquilo uma crónica), além de provocadora, não seria bastante para conter a expressão de miséria humana que revoluteia dentro do meu sangue a estas horas, tendo tomado eu conhecimento do desastre a que aludi inicialmente e que continua a empurrar-me as omoplatas para baixo, como uma carga de cimento sobre os ombros. Tonto, triste, totalmente desolado. Alitero em para sublinhar musicalmente o elegíaco tom em que me vou esta noite deitar, já não tomado pela fúria, mas tão só pela mágoa e frustração, de quem ama os livros (certos livros mais do que os outros) e os perdeu à força de os querer guardar no lugar mais extremo da sua caverna. Moral da história: antes os tivesse emprestado!

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Bibliotecas

Biblioteca do Mosteiro de Strahov
Fotografia de Jan Gravekamp

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Entre as mais poderosas imagens que o meu cérebro construiu do mundo, conta-se a do lugar imenso, insondável, sagrado, das bibliotecas. Um tal território não é apenas espaço, nem apenas depósito, nem apenas silêncio de livros. Mas verbo, verbo incontido e multiplicado, verbo prestes a conjugar-se, prestes a parir, prestes a replasmar o próprio verbo divino que é, desde S. João, o começo e a duração dos tempos. Um tal território é sede do fascínio e do abismo, do poema e do pó, da palavra e do vazio. Porque as bibliotecas são, muito para lá da metáfora do labirinto em que Borges as refundou, a metáfora da luz em que sonho eu!

A primeira que amei era escassa, mal iluminada, nos fundos de uma escola velha e obsoleta. Administrava-a uma funcionária carrancuda, sempre sentada e com o aquecedor aos pés, para quem a maçada de ter alunos a pedir-lhe que abrisse os armários (sábia e prudentemente fechados a cadeado) só competia com a maçada de ter de levantar-se de duas em duas horas para ir à casa de banho. Ainda assim, foi dentro das suas paredes que me repastei com aventuras do Superpato, ou com os vinte e um volumes do quinteto inesquecível de Enid Blynton, ou com as histórias e Pica-Pico e da Gaivota Laila de Friedrich Wolf. Benditos seis metros quadrados e repletos de mofo, onde me inteirei do bruxedo da Galinha Verde que Ricardo Alberty generosamente partilhou.

Ganhar coragem para entrar e desafiar os óculos em armação de osso da matrona, que uma vez retirados significavam cólera ou impaciência pelo menos, foi o primeiro sinal de que nascera para aquilo. E aquilo, que era muito diferente quando o professor Miguel Monteiro lá estava, deu-me a primeira noção do saber, do saber incalculado e incalculável que está à mão de semear e que, ao mesmo tempo, nos foge da mão.

Preciso de homenagear este homem. Professor de Língua Portuguesa (como eu me haveria de tornar), ele foi o poeta do giz, aquele que nos lia em voz alta fábulas de Esopo e contos de Hans Christian Andersen, excertos das fantasias de Júlio Verne e contos russos, quadras de António Aleixo ou de Fernando Pessoa, aquele que nos falava dos mitos e do teatro grego, que nos ensinou que texto quer dizer tecido, ou que as palavras mais não são do que roldanas que nos ajudam a puxar pesos enormes e que por isso devemos mantê-las bem oleadas, próximas e disponíveis. Não tive outro professor assim. Nenhum que haja conseguido de forma igual penetrar a carapaça (quase sempre oca) da burocracia e nos tenha feito ler, falar, ouvir e escrever com paixão, com amor e com sentido estético no que, dentro de uma língua, há de passional, amoroso ou literário.

Foi ainda o professor Miguel Monteiro quem nos desafiou a inscrever-nos como sócios na Biblioteca Municipal. O precioso cartão plastificado, com o nome e o número escritos à mão, foi mais do que a possibilidade de conhecer a Casa da Cultura, requisitar livros e levá-los para casa. Foi o passaporte para um mundo solene, cujas estantes e móveis austeros se deixavam antecipar pelo aroma da cera e da madeira, cujas amplas janelas (banhadas ora pela luz do sol ora pela chuva) se mantinham tão longe e tão perto da rua quanto o desejável. Havia com efeito um mundo para lá e outro para cá das vidraças, ambos tão deliciosos quanto imiscíveis pelo olhar, o que me faz, desde então, e num assomo de nostalgia, espreitar o céu aberto e o bulício sem som (como num filme mudo) a partir de dentro, e os lustres e pesadas lombadas, os leitores dobrados e silenciosos, a partir da rua. Em mim subsiste muito do antigo adolescente; primeiro com Altino do Tojal e Dumas; depois com os dicionários de latim e de grego, com enciclopédias, atlas e histórias universais, com Carl Sagan e Herbert Reeves, com as Memórias do Cárcere de Camilo debaixo do braço. Alcunhavam-me de Crânio e eu de néscios. As duas batalharam durante anos, na pior das guerras de difamação.

Quando nasceu a minha irmã Catarina, quando ingressei na Faculdade de Letras, o intelectual estava feito. Feito, mas com impurezas graves e falhas maiores. Não conhecia dezenas de autores portugueses (não me atrevo a cifrar a quantidade de estrangeiros), não dominava bem o inglês, não viajara, não dispunha de conhecimentos categóricos no que concerne à vida noturna, vivia recluso de ideias humanistas do tempo do senhor Damião de Góis, pese não o seguir no exemplo da erudição. Para os meus colegas de curso, apresentava o aspeto de um monge tardio e mais ou menos provinciano. E por essa razão me abastardei. Não apenas com a leitura compulsiva dos franceses, dos americanos, dos italianos, dos ingleses, dos alemães, dos russos (preferi quase sempre os que não integravam o currículo), como sobretudo com as surtidas para o jornal académico (onde frequentei tertúlias e publiquei uma ou duas crónicas de ocasião), ou com as bebedeiras na Ribeira, na Foz e na Boavista. Quase perdi o terceiro ano.

Ainda assim, e porque os amigos eram bons e muitos nesses anos venturosos, lá me endireitei e acabei a tempo. E porque precisava de silêncio e de solidão, o lugar onde me resgatei ao precipício foi a majestosa biblioteca sobre o Rio Douro, na ainda chamada «Vista Panorâmica». Poiso dos marrões, dos grupinhos de estudantes idiotas e das beldades de Filosofia, ela era o refúgio dos três ou quatro poetas que então já se afirmavam, com Daniel Faria à cabeça. E era o meu refúgio também. Como no filme de Wim Wenders, Der Himmel Über Berlin, que a saudosa professora Vera Lúcia Vouga exibia sempre às suas turmas, em Introdução aos Estudos Literários, eu imaginava-me uma dessas vozes interiores que declamavam de si para si Homero, Kierkegaard ou Noam Chomsky.

Vem-me muitas vezes à memória o profundo contraste de luz e sombra nesse espaço, uma torre com meia dúzia de pisos, onde li Dante, Petrarca, Gôngora, António Vieira, Poe, Machado de Assis, Baudelaire ou Breton. Não poucas vezes me exigiram silêncio, porque me distraio facilmente. Não poucas vezes me perdi a cismar nos rabelos e embarcações de carga que transpunham o horizonte, acompanhados pelo grito das gaivotas e pelos meus olhos fartos de Linguística, de Literatura ou de Metodologia. Lamentavelmente, não me assiste o dom da paciência que transforma homens comuns em excecionais. Fui sempre um leitor fantasista e um pouco tolo.

Em 2011 estive em Praga. Aí visitei a biblioteca do Mosteiro de Strahov, um exemplar da sua espécie que me comoveu até às lágrimas. Não é muito diferente da biblioteca do Convento de Mafra, por exemplo, mas, como muitas vezes sucede com as civilizações a norte, é mais despojada, mais pura, mais livros, mais saber, mais biblioteca! Sempre quis folhear um desses códices medievais, com iluminuras e letras em estilo gótico. Quis o destino que esse privilégio me pudesse ter sido dado em terras eslavas, nas mesmas salas e corredores por onde circularam Tycho Brahe e Johannes Kepler. E por tê-lo conseguido aí, sempre Praga morará no meu coração, como morará sempre a pequena biblioteca do Ciclo Preparatório ou a do meu quarto, onde guardo apenas os livros de poesia inquestionáveis!

Perguntaram-me há tempos se conhecia a nova biblioteca de Alexandria. Não conheço, infelizmente. Mas também esta moderna não me seduz como seduziria a outra, a histórica, aquela que desde os relatos de Heródoto e Tucídides me incendeiam a imaginação. Aliás, como as bibliotecas de Jorge Luis Borges ou a dos copistas d’O Nome da Rosa de Umberto Eco. Porque um ingrediente transforma um depósito de livros numa biblioteca, ou, na sua ausência, uma biblioteca num simples depósito de livros: a vontade de ficar, de permanecer, de regressar.

E é, por isso, que me orgulho de ter criado na Vila de Arões, onde vivo (no edifício da sua Junta de Freguesia), uma biblioteca. Pequena, mas funcional. Escassa, mas disponível. Incompleta, mas preparada para crescer. E é, por isso, também, que não poderia deixar de homenagear aqueles que trabalham todos os dias nas bibliotecas escolares, e que as convertem num espaço de acolhimento, de aprendizagem e de prazer. Não conheci nenhuma mais ativa, nem mais humana, nem mais bem-sucedida do que a da Escola E. B. 2, 3 do Viso, no Porto, sob o cuidado da Emília Pinho e da sua equipa. E, por isso, também ela me ficou. No coração, claro está!

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Coisas de fedelhos

Jacek Komorowski
Fotografia de Jacek Komorowski

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Dificilmente cabem na nossa memória coisas tão importantes como as que nela entraram pela porta enorme e pelas frinchas da infância, coisas tão vagas como aquela vez em que nos puseram em cima de um triciclo no jardim relvado para fazer uma foto artística, ou tão profundas e inesquecíveis como aquela outra ocasião em que um avô nos acordou de madrugada e nos levou consigo à pesca, no rio.

Diga-se que era um rio enorme, fumegante, rodeado de incontáveis variedades de árvores caducas e de pinheiros, onde havia uma pontezinha antiga, ao estilo romano, bem como uma azenha, já com a sua roda e rodízios bastante desgastados. Essa ida à pesca ficou-me gravada de tal modo nas profundezas do meu ser que posso ainda agora, sem grande prejuízo de sentimentos ou esforço de cabeça, recuperar o estilo da cana, as galochas verde tropa o cantil, o barrete e toda a panóplia de minudências usadas para apanhar as trutas: os carretos suplente, os anzóis coloridos, a caixinha com a linha ou o engodo, diga-se uma pequena lata com vermes repelentes, que eram a delícia da pequenada…

O rio, que hoje não é tão enorme, não é sequer grande, exceto nos dias de inverno, em que ganha alguma da antiga expressão assustadora, já não tem pescadores nas suas margens. Aconteceu-lhe a desgraça das fábricas de tintos e dos campos de cereais, que o empestam de químicos e de outras impurezas nauseabundas. Não há peixe que sobreviva a tamanho aviltamento, nem gente capaz de protestar comigo contra os novos empresários de cinco à coroa, quando a convoco a protestar na rua, ou a pedir contas ao Ministério do Ambiente. Vermes mais asquerosos do que de antigamente ocupam lugares poderosos, contra os quais pouco se pode fazer. E, assim sendo, deixou de ser possível recuperar a idílica imagem de avós e netos juntos, enfrentando o frio da manhã, conversando intimidades e esperando pacientemente o momento de triunfo em que um corpo prateado vem morder o isco e dar luta até emergir por fim às mãos experimentes do maior herói que pode haver em nossas vidas!

Havia uma mítica ressonância associada à palavra truta! Apanhar uma truta era o mesmo que ver o capitão do Benfica levantar a Taça no Jamor. Era mais do que isso. Era ver confirmados os méritos desse velhote que dava lições de vida e percebia um pouco de tudo e que nunca falhava: em segredo rezava para que não falhasse, sem ele perceber, exatamente como um adepto fervoroso reza na bancada para que a sua equipa não o deixe ficar mal… Depois, quando regressávamos os dois a casa para o almoço e com o poderoso peixe nas mãos, garbosamente em riste, vinha todos ver bem “o que era pescar!”

— Temos aqui homem! Temos aqui homem para a cana, sim senhor!» – repetia o avô, pondo-me a mão nos ombros, para me gabar os méritos de ajudante e a vocação de pescador domingueiro.

Mas ajudante era-a também noutras coisas, a bem dizer em tudo. E quando a ajuda não me era pedida, forçava eu a que ma aceitasse ele, até mesmo quando se tornava um estorvo de tão solícita. Porque empoleirado lá no alto, a podar, ou a bater nos aros de alguma pipa, muito concentrado na sua tarefa de agricultor e tanoeiro, via-se o ancião a braços com a ferramenta que eu lhe surripiava, de tanto querer imitá-lo. E era então uma pachorrenta irritação apelando a minha avó que tomasse conta de mim.

— Maria Amélia, Maria Amélia!…Leva-me daqui o dianho do moço!…

Preciso de explicar, em respeito à verdade, que na casa velha, pulando e correndo, entrando e saindo pelas portas quase nunca fechadas, trepando pelos bardos ou lurando ervilhais havia não um mas um bando de diabos! Éramos com efeito meia dúzia de primos nascidos na mesma altura, que punha em alvoroço a bicharada das cortes, os galinheiros e a mansa passarada no meio dos campos… Minha avó, já então a contas com a artrose, incapaz de suster tanta ruína de cultura e o cacarejo histérico ameaçava de longe com o pau da bengala:

— Anda, meu mafarrico… quando te apanhar, vais tê-las todas juntas!

Ou, então:

— Quando a tua mãe vier, vais tê-las certinhas. Ai vais, meu bandido!

Raramente havia o ajuste de contas prometido, talvez por alguma falta de memória, aliada à perda de destreza locomotora. Ou talvez porque passada a violência do crime, num estardalhaço de ovos partidos ou cebolinho arrancado, viesse o ato de contrição. Lá ia o réu, de orelha baixa, guardando ao pau alguma distância prudente, pedir perdão.

— Ó Vó, desculpe!

— Anda aqui, moço, que eu não te oiço bem!

— Não vou… que você bate-me!

— Meu manca-mulas, vais apanhá-las! Vais apanhá-las certinhas… É como dois e dois ser quatro!

Escuso de explicar que todos juntos, ou dois, ou três sequer, fazíamos guerra à paciência de um santo. Porque dois, ou três, ou todos juntos, parecíamos magnetizados por uma criatividade facínora que nos escapava em estando sozinhos. Não era propriamente raro algum vizinho vir dar sinal lá em casa do netinho que se havia guindado a um ramo de pinheiro, ou que fora comprar um maço de Definitivos à tasca de Porinhos. E era aí um ai-jesus, com muito e bem aplicado puxão de orelhas, respetiva notificação aos progenitores e consequente bofetada da grossa! Porque, repito, todos juntos éramos o diabo em cuecas…

Guardada nessas memórias, como num estojo de mogno, resiste uma das mais pícaras peripécias que é possível narrar. O meu leitor divirta-se com ela.

A minha tia Alexandrina fazia parte dos zeladores da paróquia, assistindo-lhe entre outras tarefas a de ir buscar religiosamente todos os sábados de manhã o reforço das hóstias, que deveriam ser consagradas e oferecidas no serviço religioso do fim de semana. Era um tupperware cheio delas, embrulhado num pano carmim de veludo, que ela depunha no aparador cuidadosamente, longe do nosso olhar, ao lado do terço de madrepérola e do seu missal de bolso.

Ora deu-nos do mafarrico a infeliz ideia de irmos destapar o tupperware, esvaziar o recheio e alimentar uma carnavalesca missa, celebrada na cozinha de lenha pela minha prima Madalena. Para improvisar os sagrados ícones, demos olhadura em volta confiscando tudo o que se parecesse com eles, desde um castiçal a um caneco de alumínio, ligeiramente assemelhado ao cibório que havia lá na Igreja. A missa durou e durou, com a chusma de pecadores percorrendo de joelhos o soalho e respondendo, como se a coisa fosse a sério, ao blasfemo convite da comunhão, para mais untado de Tulicreme, para ter mais graça:

— Corpo de Cristo?

— Amém!

Estranhando o nosso coletivo silêncio e sempre agarrada à saudosa bengala, assim nos foi a avó a todos encontrar…

Dispenso de adiantar conclusões, como a feia descompostura de nossa Tia, ou as bofetadas, ou o castigo de ir detalhar tudo ao senhor padre em confissão (que tapava os lábios e enchia as bochechas coradas, cada vez eu que lhe explicava de novo a ideia do Tulicreme), ou a proibição expressa de mexer no que quer que fosse da tia Alexandrina, de resto a única que não contribuíra até aí (nem mesmo depois daí), com qualquer rebento seu para o nosso vistoso e conhecido grupelho de traquinas…

Dificilmente cabem na nossa memória coisas tão importantes como as que narrei. E passando por elas, tão de leve quanto é possível passar os dedos por velhas folhas de cartapácio, sinto crescer desta saudade uma inexprimível luz de vida e de amor, só possível divisar com a distância e com a adultez. O meu leitor saberá do que falo, não o duvido, e por isso me compreenderá esta alegria triste, de pessoa que olha e não vê, procura e não encontra, e no entanto e no entanto encontra, como numa miragem ou numa alucinação…

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