Um povo que não ama a poesia é um povo estúpido: ponto!

Victor More
Fotografia de Victor More

.

Aceitemos o facto: nós, os portugueses, estamo-nos positivamente marimbando para a poesia. Acrescentemos essa a outras famigeradas sinas: nós, os portugueses, damos o litro a escrever poesia, mas estamo-nos nas tintas para a poesia dos outros. Nós, os portugueses, como os demais povos que já foram um dia burgueses, que tiveram já na sua História a fase do ócio, da novela e dos sonhos cor-de-rosa, gostamos é da Carochinha. Matemática, ópera e poesia é que não! Que horror! São abstrações que dão trabalho (levam séculos a aprender) e tempo é coisa de que nós, os portugueses, não possuímos. Em regra, depois das séries da TVI, do futebol e das tricas políticas, nós, os portugueses, mal conseguimos olhar para a filharada, para as contas nos envelopes por abrir ou para o aviso do condomínio. 

Não custa nada aceitar. Basta aceitar! O facto é este: na terra de Fernando Pessoa, o tuga gosta é do Tony Carreira. Camões é fixe, mas desde que deixou o Benfica é só uma glória enfeitada na praça com merda de pombo. Antero de Quental, Camilo Pessanha, Jorge de Sena, Sophia, Torga são uns chatos que às vezes aparecem mesmo à frente dos nossos olhinhos, escritos nas placas toponímicas. Devem ter sido bons atores de algum Big Brother primitivo. Mas esta rapaziada, este mulherio bronzeado da TVI, este luxo de mamas de silicone e cabelo à moicano depressa faz esquecer os cotas do passado. É a lei do tempo. É tudo sempre a correr. Que o digam os portugueses, que mal começam a ler uma extensa reportagem de dois parágrafos no jornal do metro têm de se interromper, visto a saída ser na estação a seguir. O facto é esse. Aceitemo-lo. Nós, os portugueses, estamo-nos a cagar para a literatura, especialmente para a poesia. 

Pela parte que me toca, contento-me com a meia dúzia de amigos que põem gosto nas minhas publicações do Facebook. Está lá a foto. Está lá a hiperligação. Está lá a citação de qualquer coisa (lidimamente poética) que publiquei no blogue. Tudo muito limpo, muito virtual, muito apelativo. Contento-me em publicar digitalmente, porque entretanto (reza-se por aí) a crise chegou às editoras, que gostam muito dos novos, lhes admiram a coragem, lhes vaticinam prosperidade, mas que entretanto lhes fecham as portas. Menos aos novos já consagrados. Esses são vinho de outra pipa. Esses sempre vendem alguma coisita que dá para cima de quatro dígitos. Desde que escrevam de vez em quando (pode até ser; muitas vezes é) um mau romance. Só para acertar as contas, equilibrar números, projetar a imagem… 

Claro que um poeta pode ter sucesso. Imenso, aliás. Nem precisa de se esforçar por aí além. Pode atirar-se às rimas. Poder aguçar a redondilha. Pode treinar primeiro com quadras de S. João. Ganhar um prémio ajuda. Depois é só pedir um patrocínio à Junta de Freguesia, ou à Câmara, ou ao primo que tem um negócio de fazendas. E lá sai uma «Seara de Versos», umas «Folhas Avulsas», um «Parnaso Popular». Depois é vê-lo faturar! Basta impingir um exemplar a cada cliente, no fim de lhes engraxar os sapatos e limpar as mãos aos desperdícios. Basta estar à porta da igreja, no final da missa. Basta pô-lo no Talho da Dona Rosalina, ao lado dos chouriços e do salpicão! 

Também eu comi o pão que o diabo amassou para chegar às livrarias. Consegui-o a custo, engolindo sapos, entretendo-me com vigaristas, perdendo o tempo a fazer de conta que acreditava nas explicações. De toda a poesia que fiz sair em livro não lucrei até hoje um cêntimo. Exceto, claro, o que ganhei nos prémios. O país não tem como pagar a abundância de génio e de candidatos ao Dicionário da Literatura do Professor Álvaro Manuel Machado. De resto, «direitos de autor» é uma daquelas expressões que provocam asma. Tosse-se muito quando se pronunciam as três palavras. Um tipo com vinte e poucos anos imagina-se a dar autógrafos, a responder às entrevistas, a ser conhecido na rua. Só a calvície faz compreender (mais vale agora do que depois) o sujo pragmatismo do dinheiro. Faz-se perguntas à mesa do café. Volta-se a tossir muito. A conversa, como a viagem daquele agrimensor de Kafka, não leva a lado nenhum… 

Um tipo, por maior poeta e boa pessoa que seja, farta-se. Um dia diz «Puta que pariu esta merda!». Um dia chega mesmo a ameaçar «Meu grande filho da puta, quando pagas o que me deves?». Diz outras coisas afins (limito-me a citar), mas acaba por desistir. Os poetas são seres instáveis, cansam-se depressa, não sabem senão pensar em metafísica. Prova a história (e a fonologia também) que decência não rima com editor. E um poeta, ainda que vibre fundo o desespero, acaba por encontrar outra solução. 

Estamos na época da edição de autor. Estamos a voltar ao começo, ao tempo em que Camões, com Os Lusíadas manuscritos debaixo do braço, ia mendigar esmola para pagar a tipografia. Saibam os portugueses que o caché no tempo de Camões era ridículo. Não, portugueses, era tanga aquilo há pouco: Camões não foi jogador do Benfica. Não, Camões, não era o tipo do Conta-me como foi! Quer dizer, também havia um Camões no Conta-me como foi. Mas estamos a falar doutro Camões, portugueses. Este Camões era poeta: um desgraçado; passou pessimamente. Para compensar deram-lhe um feriado. Sim, portugueses: o 10 de junho! Não, portugueses: tenho a certeza de que Camões não jogou no Benfica! 

Mas os feriados são caros — não queiramos ouvi-lo da boca do Primeiro-Ministro! Não conto, portanto, que me deem um. Nem que me fique o nome gravado numa tabuleta, depois de uma rotunda, ou à entrada para um beco sem saída. Nem que me leiam (com voz rouca, pose melodramática, lágrimas nos olhos) nos saraus semanais da associação cultural e recreativa, sita na rua-de-não-sei-que-antigo-ministro-do-ultramar. 

Contento-me com a minha meia dúzia de leitores. Com a perspetiva de que melhores dias surjam no horizonte e com eles uma geração inteligente, capaz de saborear um poema como se saboreia um pitéu; capaz de ler um poema como se lê a bula da Aspirina, com inteligência e sobriedade; capaz de ensinar aos filhos um poema como se ensina um conto popular ou uma adivinha… E não digo um poema recolhido do Jornal de Notícias. Digo um poema de Luiza Neto Jorge, um poema de Nuno Júdice ou um poema de Herberto Helder. 

Estou a exagerar? Não, nós, os portugueses, é que estamos demasiado acostumados ao pouco. E a pouquidão (a palavra existe e assenta-nos que nem uma luva) não nos tem levado senão a preservar nos genes, com o passar dos séculos, contra o ardor da História (como num frigorífico) a mesquinhez, a futilidade e a inveja. Por contraponto, um povo capaz de vibrar com um bom poema será (é) um povo inteligente, sensível e evoluído. 

Não peço glória. Peço um povo em condições. Foda-se, portugueses! Isso é pedir muito?

.

Fazer versos

Boy (Vedran Vidak)
Fotografia de Vedran Vidak

.

Metade da minha turma reprovou no final do 5.º ano. Éramos uma turbamulta pouco polida e mal preparada intelectualmente. Eu escapava. Quem o dizia era o Padre Lobo, professor de Religião e Moral. Mesmo assim fui obrigado a pedir desculpa, diante de toda a classe, e em pé, sobre o estrado, à professora de Educação Visual, por me ter envolvido durante uma das suas aulas de desenho numa zaragata artística com o meu primo Barnabé. Cada qual usou a respetiva régua T para sovar o outro. O resultado foi ficarmos os dois com a cabeça rachada e inundarmos as nossas e as mesas dos colegas com restos de plástico.

De maneira que o primeiro dia de aulas no 6.º ano foi um terror, não fosse eu um intruso no meio daquela gente toda que se conhecia e se dava de cotovelos para me indicar. Eu era o tipo novo. Senti saudades dos velhos terroristas. A tal ponto que os olhos se me afligiam com a água teimosa que os queria submergir.

Estávamos em Língua Portuguesa, a primeira de todas desse ano letivo. Isto porque a professora dessa disciplina era também a Diretora de Turma. E viva aflição nos causou, porque nunca sorria e à medida que ia dando informações lançava-nos grandes olhos de coruja, que pareciam espiar-nos até para lá da sombra dos pensamentos. Tinha para além desta outra afinidade com uma ave de rapina: o seu fino nariz adunco, uma espantosa curvatura semelhante ao bico de uma águia.

De maneira que esmagado pela hostilidade geral tive o estranho pressentimento de estar a viver bem acordado um dos pesadelos da infância. Aquele seria um dia longuíssimo num ano que nunca mais teria fim. Tudo era tão distante de tudo que até as férias, acabadas no outro dia, me pareciam já um remotíssimo adeus por correr das memórias.

A professora continuava a comandar a tropa. Ditava umas coisas, apontava outras no quadro. Para umas coisas e para todas usava o mesmo tom de voz excessivamente imperativo. Falava áspera como as senhoras da Secretaria ou como a velha catequista que nos treinava para a Comunhão Solene. Depois das saudades dos antigos colegas, vieram as saudades do professor de Língua Portuguesa do ano anterior, que era jovem e se chamava Miguel, que nos lia histórias incríveis de todas as épocas e de todas as civilizações da Terra. Nas suas aulas ninguém ousava portar-se mal, porque cada minuto perdido era verdadeiramente um minuto a menos de magia. Chegávamos a esquecer-nos do tempo! O toque de saída era muitas vezes acompanhado de expressões de pesar, como quando somos forçados a interromper um sonho magnífico.

Mas isso fora antes. Agora tínhamos aquela senhora que berrava a cada cinco minutos; que se esganiçava para exigir que levantássemos a mão se pretendíamos falar; que aplicava palmadas violentas no tampo da sua mesa se lhe cortávamos o fio à meada. Foi então, terminadas todas as explicações práticas, que pretendeu conhecer-nos um pouco melhor. Perguntou o que gostávamos de fazer nos tempos livres. E o Alberto Carlos, que era o número um, explicou com o seu timbre grave o que fazia nos seus tempos livres: ajudar os pais com o gado. Houve uma risada geral. Também me ri. A professora ainda esboçou o ar de quem ia fazer o mesmo. Mas cortou a galhofa no seu jeito militar. Depois do Alberto Carlos seguiu-se a Anabela, depois a Ana Isabel e o César, a Daniela e por aí diante até chegar a minha vez.

Quanto a mim, francamente não sei o que me deu. Nunca o pude apurar. Eu, que adorava jogar à bola, meter-me em bulhas, trepar aos bardos mais altos da vinha do meu avô, que passava horas a jogar aos cowboys e ao esconde-esconde, que me pelava por grandes passeios de bicicleta e por mergulhar no riacho, alto da pontezinha romana ao lado da antiga leprosaria, disse que gostava de fazer versos.

Foi uma assuada trocista, miúdos da frente a fingir que tinham de segurar na barriga, meninas com a tacha arreganhada atrás, pateada à direita e à esquerda, piadas sussurradas de todas as bandas, “Copinho de leite”, “Coninhas”, “Grande maricas”…

Com que então eu gostava de fazer versos

Bem podia ter dito que ajudava o meu pai na tecelagem, trabalhando como gente crescida à frente de máquinas como o caneleiro de dez fusos. Podia ter confessado que gostava de desenhar e de erguer miniaturas de casas e igrejas com cartão (demonstração de talento arquitetural que se me apagou lamentavelmente com a idade). Podia até, para angariar rapidamente camaradagem, explicar que gostava de namorar com meninas bonitas de olhos azuis. Mas não. Fiz saber que gostava de fazer versos

Entretanto, ouviu-se um grande som de vergasta. Com uma espécie de antena de rádio toda estendida, em riste, mais assustadora ainda, a Diretora de Turma avançou uns passos, fê-la embater com estrondo no caderno diário de um colega lá da frente. Todas as cadeiras se colaram ao chão. Os olhos da coruja varreram então por uns segundos a sala à cata de prevaricadores. Mas a vergasta podia muito. Depois o aquilino nariz respirou melhor e a própria voz, mais doce, mais falsete, disse:

— Muito bem, João Ricardo!

E repetiu o “Muito bem” tão enfática quanto desnecessariamente, pois a minha reputação estava arruinada. Acrescentou até, com certa nostalgia, que havia ficado muito surpreendida com a minha resposta, que nunca tal ouvira em trinta anos de serviço. Por fim, quase amistosa, quase amiga, fez saber que eu só podia ser um menino especial. E o seu sorriso desabituado fez-se notar ao de leve nos lábios cheios de pregas e batom vermelho.

Guardei sempre esta memória como talvez se guardaram numa caixa de sapatos calendários de antigos jogadores do Benfica, cromos do Dartacão ou um maço de cartas de amor. Puro instinto afetivo.

Claro que sobrevivi. Primeiro por causa da fama de grande batoteiro nos jogos de cartas. Segundo porque era um centrocampista exímio. Depois porque a minha costela donjuanesca vinha já dando frutos notáveis por esses dias. Mas os olhos vorazes e o nariz adunco exigiam-me também provas.

Li nessa altura muito almanaque de igreja, muita quadra popular, muito António Aleixo. Aprendi com efeito a rimar, e a rimar com esmero, com sofisticação técnica. E não apenas a rimar, mas também a metrificar os meus versos, a enfiar neles toda a porção de filosofia e de engate que me assistia aos doze anos.

Foi o tempo em que me fiz poeta. E como todas as grandes decisões, tenho de o confessar por respeito à verdade, apenas por uma sucessão de improváveis peripécias, como as que descrevi.

.

Isto é poesia

André Kertész(Mauna Kea, Kmuela (Honolu), 1974)
Fotografia de André Kertész

.

Quantas vezes me apeteceu escrever um poema e não pude! Quantas vezes a rotina da profissão se entrepôs entre mim e o silêncio, entre mim e o caderno! Quantas vezes algo semelhante a uma fome veio roer-me por dentro, angustiar-me, espicaçar-me e (sem que o soubesse porquê, sem que pudesse saciá-la) obcecar-me como a voz de um chamamento. É dessa fome que eu falo, da poesia, do prazer daqueles instantes de invenção no tampo da secretária, do rumorejar da caneta de aparo deslizando sobre a folha. Enternecimento este comum aos que escrevem, aos poetas sobretudo…

A poesia imita de muito perto os batimentos e o ritmo da própria vida. Compreendê-la significa em grande medida compreender a natureza do homem, o mistério do mundo, a ontologia das coisas. Alguém há muito a cotejou com um diamante, um que fosse apenas reconhecível pela sensibilidade e pelo talento dos que por hábito delapidam diamantes iguais.

Por outro lado, a poesia é árdua, muito pouco definível, complexa de mais para que possa ser um objeto ensinável ou explicável, ou consumível! Não só mas também por isso verificamos a fraca relevância do texto poético no mercado editorial, onde os grandes romances, ensaios e reportagens (para não falar de outros) passam das montras às mãos do público leitor como navios descomunais, num oceano onde somente um ou outro livro de poesia incontornável granjeia medir forças.

Também não é isso o mais importante. Quem se devota a esta arte, quem a escreve, quem a lê, quem a edita, apega-se menos ao corrupio dos mercados do que à ebulição surpreendente e única e avassaladora das palavras. A poesia é “isto”, o requinte de um dizer na corda bamba, para alguns não-entendimento, para outros a linguagem (ou a língua) que melhor exprime as pulsões do homem, a que oferece o campo mais vasto de visão e descoberta.

Sejam bem-vindos os que não desistiram, os que não desistem, de amar a soberana disciplina do pouco, da palavra olhada sem rodeios, da mensagem legível na mais pura nudez do mecanismo triangular da boca, da cabeça e do coração.

(Prefácio meu à antologia Isto é Poesia, Editora Labirinto, 2004)

.