Tu partiste, eu esqueço-me de tudo

manhã, Marc Apers
Fotografia de Marc Apers

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A manhã é dolente. Tu partiste. Eu esqueço-me de tudo. Na praceta, as pessoas repetem o dia anterior. Recebo notícias. Os pássaros voam eufóricos sobre os telhados. Alguém diz «Bom dia». Cheira-me a pão torrado. Dou-me conta das extremidades frias, geladas, dos meus dedos. Respondo «Bom dia» a alguém. Podia pensar na operação, em política, poesia, futebol, comida, viagens. Apetece tanto um café. A manhã é dolente. Tu partiste. Eu não penso em nada. «Bom dia, Lopes». Dou-me conta do meu corpo, abandonado sobre o meu corpo. Pesado como um fardo. Dou-me conta que existo, respiro, silvo. Respondo «Bom dia», «Bom dia», «Bom dia», maldição! Partiste. Vais casar. Dou-me conta que nenhum país é mais longínquo do que o casamento. Dou-me conta que todas as minhas mulheres partiram. Que me doem as falangetas, as falanges, os ossos, os olhos, tudo… «A arrogância é a maior das nossas máscaras e a pior das nossas pernas». Tão bem-dito. Tão maravilhosamente esculpido no meu silêncio. «Tenho idade bastante para to dizer, certeza suficiente para me não arrepender, temperamento para não ficar calada. És um equívoco. Melhor, Miguel, vives num». A manhã é dolente. Uma aragem gélida trespassa-me, como o bafo de uma maldição. Sinto a pele arrepiada, as entranhas em lume, o meu nome percutido, repetido, sem sentido, como a pele maltratada de um tambor. «E quem te pediu a opinião?». Cheira-me a alfazema. A limos. Aos ácidos de uma oficina de carros. A luz queima-me os cílios, o rosto, a alma confusa. «Se não fores tão hipócrita como julgo que não és, saberás admitir que me perdeste». E a aragem fria e a luz quente são opostos que incomodam, como indecisões do tempo. Não penso em nada. Nem sequer na castidade da roupa que cheira a sabão Clarim. Nem sequer na beleza difícil do caderno aberto, das folhas vazias, lisas, sem linhas, limpas. Nem sequer na esquadria que se me oferece da paisagem para lá desta janela aberta, de vidros amplos e imaculados. «Como se fosses uma santa, hem…». E as palavras formam nós, encordoam-se em gânglios assustadores, enrijecem, são duras e selvagens como cerdas que fazem sangrar o silêncio. E as gavetas, os cabides nus, os armários sem as tuas coisas, são fossas abissais onde ecoam, como submarinos, as minhas mãos desamparadas. «Como se ele fosse melhor do que eu…». Dou-me conta que existo, respiro, silvo, fumo. Dou-me conta que não pensar em nada é pensar em alguma coisa. Longínquos pensamentos cósmicos, ontológicos. Remotos pensamentos como as remotas estrelas que explodem numa baba inalcançável de ruído e luz. Dou-me conta do tempo. Do leve e cruel e agora persistente chicotear do remorso. «Um dia vais perceber, Miguel», «Um dia vais arrepender-te tanto», «Um dia compreenderás como às vezes se teve tudo e se perde tudo para sempre, Miguel!». A manhã é dolente. Tu partiste. Eu esqueço-me de tudo. Das frases que soam como os imperturbáveis mármores dos sábios. «Sou como sou». Do olhar derradeiro, olhos nos olhos, semente de dor, de deceção, de despedida. «Um dia, Miguel». E fumo. Fumo incontáveis cigarros na manhã de maio, atento ao mundo que gira e se não arrepende de coisa alguma. Preso ao ar que circula e sega como obsidiana os laços minúsculos entre mim e as coisas. Sorrindo sem querer para aquele dia em que, no lugar onde cheira a cimento fresco e grandes pulmões rotativos enchem de ar as galerias, nos vimos pela primeira vez. Os teus grandes olhos azuis! «Ele é o homem certo para ti. Sim, casa-te lá!». Não penso em absolutamente nada. Dou-me conta de mim. «A arrogância é a maior das nossas máscaras e a pior das nossas pernas». Que raio de filosofia. Sempre detestei os sábios e os que imitam os sábios. Cheira-me a canela, a caramelo, a chocolate quente. A manhã é dolente. Tu partiste. Sinto fome, sinto uma fome imensa, uma fome voraz. «Um dia, Miguel». Sim! Seja como for, adeus!

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Sempre em frente

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Fotografia de Tookapic

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Ao inverter a marcha, os pneus desenham no saibro desolado a imagem, o som inesquecível de uma despedida. A noite é gélida e oca, inútil como a casca de um fruto seco. O que soa por dentro agora é um chocalhar de palavras soltas, cascalho, memórias de uma ferocidade extrema. A imagem e o som de uma despedida. Os pneus chiam levemente sobre o alcatrão. A cabeça é um deserto. Curvas, solavancos, travagens repentinas. Frases desconjuntadas e assassinas, como pedras pontiagudas. Depois, outra vez a marcha. E a cabeça distante, como naqueles dias em que atiramos seixos ao rio. Como naqueles dias em que fazemos círculos à toa no caderno. Como naqueles dias em que acendemos fósforos por acender e nos hipnotizamos com a chama mortiça de uma recordação. A noite é um ventre. Uma prisão. Sufocamos.

– Um dia perceberás o que te quis dizer…

– Um dia perceberás o que acabas de perder…

Subitamente, cega-nos o clarão de um pensamento. Holofote doloroso, o remorso. Depois, subitamente, a raiva. O acelerar do carro. O cheiro da embraiagem, da borracha queimada no asfalto. O incêndio da razão.

– És um merdas… Sempre foste um falhado…

– Merdas és tu… Não te admito, ouviste…

A melancolia é uma peçonha. Voltamos a ouvir o velho álbum dos Röyksopp. Voltamos a pensar nas coisas por fazer (o atraso é agora desastroso, incomensurável, irreparável). Voltamos a desejar nunca ter saído da cabeça adolescente. As viagens. Os livros. As memórias límpidas. Os cadernos perfumados pelas longínquas especiarias.

– Porra…

A melancolia é um poço. Cismamos. Todo o nosso ser é, de alto a baixo, um pilar em queda. Um império prestes a desmoronar-se. As antigas dúvidas são as novíssimas dúvidas. Os velhos dilemas pesam agora como o próprio ar que se bebe em travos arfantes. Vetustas cicatrizes abrem e sangram. Quem somos nós, porra?

– És um merdas… Bem que me tinham avisado…

– Ouve… Tem lá cuidadinho com que o dizes… Não te admito…

Havia, outrora, outro caminho. Havia neste corpo outra pessoa. Os pensamentos correm como chispas alucinadas. As imagens sobrepõem-se, atropelam-se, obnubilam. Há em nós um azedume de fiasco. De prejuízo. De tempo perdido. O carro resfolega.

– Porra…

Bem gostaríamos de acreditar naquela frase do Eugénio. O nosso destino somos nós. Então, por que carga de água, queremos estas mágoas a repetir-se. Esta vileza de nos esmagarmos contra o nosso próprio sonho. Porquê?

– Um dia perceberás o que te quis dizer…

Não, definitivamente estamos fartos. Saturados. Incapazes de tolerar, transigir, perdoar. Basta. Curvas, solavancos, travagens repentinas. O maldito semáforo. Esta covardia de respeitar o vermelho. Não seria mais fácil irmos sempre em frente, sem filtros, arrependimentos, considerações metafísicas? O que quer que sejamos é agora um peso, uma ninharia, um farrapo (sabemos sempre manusear tão sabiamente as metáforas aniquiladoras). Somos um bocejo. Uma esquírola. Uma vergôntea feia. Uma secreção. Somos ridículos. O carro quase adormece…

– Um dia perceberás o que acabas de perder…

Apostamos que do outro lado alguém se ri desta balofa, incompreensível, miserável frase de recurso. Talvez a maldita sorte ande a mofar de nós. A noite engole-nos. A noite cresce. A noite devora estes e todos os outros argumentos vãos. O clarão dos holofotes cega-nos. As lágrimas podem agora, finalmente, tropeçar nos escombros. Como autómatos, os pneus conduzem-nos. Estamos a caminho de algum lado. Estaremos sempre em caminho. A maldita cabeça repete, como o eco através da garganta, «Não colecciones dejectos o teu destino és tu.» As feridas doem. Nunca presumi que não devessem doer. Bem gostaríamos de acreditar naquela frase do Eugénio. Voltamos a desejar nunca ter saído da cabeça adolescente. As viagens. Os livros. As memórias límpidas. Os cadernos perfumados pelas longínquas especiarias. A estrada é em frente. Apenas em frente. Sempre em frente.

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Isto

Micha Rainer Pali
Fotografia de Micha Rainer Pali

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Ultimamente rasuro muito. Rasuro folhas de papel reciclado e rasuro pensamentos. Rasuro conversas e silêncios. Rasuro convites para almoçar e idas ao cinema. Rasuro velhas preferências e a possibilidade de encontrar para elas um remédio, um remendo, um refrigério. Rasuro planos e sonhos e antigos devaneios de adolescente. Rasuro intenções, recordações, ilusões. Rasuro até a música, até Mozart, Bach, Ravel, Debussy. Rasuro. Quero dizer, rasuro imenso, sem contemplações, sem piedade, sem meios termos, sem pensar duas vezes, sem me importar com os destroços, sem imaginar a incomensurável tristeza da nossa pessoa em cinzas, sem meditar devidamente na dor incontida do tempo escoado à toa, desperdiçado, imprestável, empeçonhado, desvivido…

Por vezes acontece-nos isto.

Precisarmos de recomeçar tudo. Precisarmos de recomeçar tudo do zero. De recomeçar abaixo de zero. De recomeçar do lugar maldito onde nos encalhou a alma.

Por vezes é assim.

Precisamos dos ossos estatelados, quebrados, macerados, precisamos de fazer com eles um tripé, um bordão, uma escada. Precisamos de sair do poço. De seguir em frente. De sentir a dor e vencer a dor e sentir que é nossa outra vez a vida que sempre foi nossa.

Por vezes não há outra forma.

É quando estamos fartos. Quando desconfiamos que fizemos tudo mal. Quando descobrimos que fomos desonestos com a consciência. Quando esgotamos o repertório de truques, malabarismos, fantasias e nos vemos olhos nos olhos.

– Chiça, que merda é esta?

Quando percebemos que levámos os olhos à pior das miopias. E nos damos conta de que nada nos liga já à infância. E se tornou evidente que a vida que temos pela frente é a partir de agora uma questão de tudo ou nada. Quando não suportamos a misericórdia das promessas. E sabemos que há outro modo de ouvir Mozart, Bach, Ravel e Debussy. Outro modo de tocar as palavras. Outra forma de enlaçar os pensamentos. De preferir. De querer. De aceitar. De partilhar. De recordar. De planear. De pertencer. De resistir.

Porque às vezes há outra forma.

Os domingos deixam de ser tão horríveis. As noites deixam de ser tão implacáveis. As doenças deixam de ser tão definitivas. Os ataques de rabugice deixam de ser tão veementes, dementes, consequentes.

Porque às vezes é assim.

Precisamos de dar pontapés, murros, cabeçadas à nossa teimosa misantropia. Precisamos de reaprender a respirar. Precisamos de ouvir sobre a nossa falta. Quero dizer, da falta que fazemos. Precisamos que nos lembrem que há um chão onde nos esperam de pé. Precisamos de encontrar uma boa resposta para todas as grandes perguntas.

Porque às vezes é assim.

Aprende-se a somar e a subtrair o mau humor, os narcisismos, egoísmos e snobismos, os arroubos infantis, os arroubos antissociais, os arroubos de toda a espécie, os vícios, as más finanças, a profissão detestável, as teimosias, as hipocrisias…

– Chiça, que merda é esta?

Um tipo rasura, rasura, rasura. Vê-se diante do espelho, considera, cisma, reflete, encontra a prova de que é humano e sempre foi. Um tipo sente em si a verdade, sente-a circular num jorro de catarse ao longo da alma, entre as pregas do cérebro, nos ossos, do posponto da pele às secreções. Um tipo limpa-se. Um tipo lava-se. Um tipo reconhece-se. Um tipo queima a pele velha. Um tipo entrega-se a uma cura sem tempo certo. Rasura o caderno, rasura os pensamentos, rasura as conversas, rasura o silêncio, rasura os convites para almoçar, as idas ao cinema, rasura os planos e os sonhos, os devaneios de adolescente, rasura intenções, recordações, ilusões, rasura até a música, Mozart, Bach, Ravel, Debussy, rasura tudo, tudo, tudo! Porque às vezes não há outra forma e há esta forma. Porque a solução é um milagre pessoal e não há certezas. Porque não há somente isto. Isto. Quero dizer, isto!

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Da saudade que nós sentimos das pessoas que nos morrem ainda vivas

Drew Hopper
Fotografia de Drew Hopper

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Há dores que doem mais do que as outras dores. É um absurdo. Dói-nos tudo quando dói assim. Dói-nos o corpo ao alto, os ossos, o intervalo entre os ossos, os olhos, dentro dos olhos, a boca, a garganta, os pulmões inchando e desinchando, o estômago, os rins, as costas, as mãos, os cabelos até à última ponta do último cabelo. Dói-nos tudo. A mobília, o tapete, as sombras, o silêncio. Tudo. E quando mexemos um músculo o universo inteiro estremece. E quando uma corda vocal quer vibrar todo o espaço trepida com o catarro. E quando as palavras saltam, tropeçando, cegas, às apalpadelas, quando riscam com o seu fósforo efémero a parede gelada do tempo, é ainda um resto de dor que as torna mais belas e terríveis. Porque quando dói tudo dói tudo. É um absurdo. Um cataclismo. Um colapsar de sonhos e memórias e esperanças e alegrias subtis, risos, confidências, carícias, hálitos, secreções, murmúrios, quenturas, prazer… É um absurdo. Porque erguer gigantes não devia ser para tombá-los, vergá-los, humilhá-los, enlameá-los, arrastá-los a ferros. Porque, no interior de um pequeno fole de trezentos gramas, sístole-diástole, sístole-diástole, sístole-diástole, é possível caber um gigante. Um gigante com um milhão de fotogramas, um fantasma, um holograma, um amor!

Porra, um amor!

De maneira que hoje foi mais um dia. Daqueles que precisam de nos arrancar à cova, com esforço, virilmente, sob ameaça de estalo. Meia hora no duche. A água a escorrer na pele como em pedra. Não me lembro se estava quente ou fria. Dá para acreditar? Não me lembro se gemi com frio ou sentindo uma queimadura. Gestos sonâmbulos, mecanizados, entrando e saindo de mim como gente de um motel. Não me lembro do que engoli. Decerto os cereais. Provavelmente um iogurte. Porventura uma peça de fruta. Talvez pão com geleia. Não sei se meio pão com queijo. Possivelmente nada. Não me apetece comer. Ultimamente não sinto fome. O carro levou-me sem um protesto para o trabalho. Não me lembro de o conduzir. Julgo que se conduziu sozinho, como os cavalos nos campos de batalha. Devo ter bebido um café. Ou dois. Teriam sido três ou quatro. Mais. O café é bom, aquece, traz-me de volta à superfície. Chego a reconhecer as pessoas. Digo-lhes a cada qual, à vez, sem pensar muito

Bom dia, como está?

O pior é acordar. As manhãs são bolas de sabão inquebráveis. Escuto-as por dentro (escuto as ervas, o cheiro das madressilvas, o olhar acutilante das gralhas no bosquezito ao lado do apartamento, o frio do riacho, as neblinas erguendo-se até ao cocuruto dos choupos. Escuto crianças. O riso maravilhoso que ecoa dos seus passos. Escuto o sol. Escuto o abrir das janelas, o perfume das roupas que se estendem nas varandas. Escuto o sorriso desdentado das velhas, tricotando e rezando em simultâneo. O frenesim dos pequenos mercados de esquina. As caixas de pão, o cheiro do pão, a farinha saltando sobre o papel pardo das contas de somar). Escuto-as e quando me sacodem, me dizem

Já tocou, professor!

Eu sinto a mesma pesada maquinaria, ferrugenta maquinaria, terrível maquinaria, desengonçada maquinaria, a mover-se, caminhar para uma porta, desaparecer por algum lado, sumir-se nalgum corredor, entrar nalguma conjuntura de paredes. De maneira que respondo

Obrigado! Não me tinha dado conta!

As manhãs são sempre longas, distantes, capazes de vencer-me. Um corpo derrotado é um sempre um corpo. Um touro caído. Decaído. Um corpo.

Obrigado! Tenho aula, sim!

E com o copo de café na mão sinto falta de um café para acordar. De maneira que perco a conta aos cafés que bebo. O café é bom, afugenta as cinzas, traz-me de volta à bela chama que ainda há instantes sentia viva no lugar do coração. Chego a reconhecer as pessoas. Digo-lhes

Está uma bela manhã, não está?

E as palavras recomeçam. Os alunos apontam, seguem o raciocínio, não fazem perguntas, acreditam na versão limpa e oblíqua das páginas do manual. As palavras saracoteiam-se com um vago esplendor de ouro falso. O conhecimento. Tão grato, o saber. Tão importante senti-lo fluir na sala, como o balbuciar de um vento moderado e casto.

Sim, meus caros. O conhecimento é sagrado. Puro como uma Vestal.

De maneira que tenho andado meio esquecido. Quase me esqueci de ti, imagina? Quase me esqueci que o sofrimento é uma ampulheta, engolindo tudo de um lado e depois do outro lado, à vez, cambalhota para aqui, cambalhota para acolá, à vez, acumulando tudo, aniquilando tudo…

Não há remédio para isto. Guillén escreveu uma vez sobre a saudade que sentimos das pessoas que nos morrem ainda vivas. Achei belo. Suponho que o acharás também. Belo. E tão triste. Tão triste.

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Uma promessa que te faço

Fotografia de George Vintila

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Todas as pessoas prestam. Mais que não seja para nos ensinarem a preciosa lição de que não podemos confiar nelas.

Que saudades, avô!

Massajo a cabeça com o champô, sinto o frio rodear-me o corpo por todos os lados, a chuva a cair do outro lado da parede, o sono a puxar-me de longe (da infância), os minutos a passar lentos, velocíssimos, o jato de água quente deslizar de novo, por mim abaixo.

As pessoas são como as árvores!

Como as árvores, avô?

Como as árvores. Uma vezes são da terra, outras vezes são do céu, outras vezes são de debaixo, de muito debaixo, do último pedaço de raiz, tão escondidas como o Diabo.

Enxaguo-me. Já tão exausto, como se estivesse a preparar-me para a cama. Já tão distante, como se pertencesse a outro tempo. O felpo a lembrar-me a ferida na orelha, o desalento da manhã ocupadíssima, a viagem, o mau tempo, o pequeno-almoço devorado a correr, os sons da campainha, os cheiros desagradáveis, o tom de voz crispado, os pixéis fundidos dos computadores, as faltas, as falhas, as frustrações.

Um dia hás de perceber tudo isto, meu filho!

O quê, avô? O que hei de eu perceber? Que as pessoas gravitam em torno de nós como corpos aleatórios, desejados, indesejados, esperançosos, malditos? Que as melhores pessoas nos morrem e são como os primeiros cadernos de escola, onde escrevemos as mais puras manhãs? Que o destino é um matadouro de sonhos? Que nos magoa horrivelmente amar e ser amado? Que amar é só o primeiro sinal de decadência? Que um animal nos mora na alma e nos morará sempre, igual aos primeiros vírus?

Porque tu és reguila! Tu vais desenrascar-te bem, não vais?

E de um momento para o outro, apoiando-te na bengala, sem olhar para trás, sem te despedir, caminhando curvado (sempre que penso em ti, sempre que me recordo, mais curvado me pareces), caminhando paulatino, caminhando na mesma direção, caminhando para longe, foste sem voltar.

Tu és reguila, hem? Olho aberto, ouviste?

E só me ocorre nevoeiro. O nevoeiro que agora me tapa a visão, debaixo de bátegas inclementes. O para-brisas dançando como um louco, o ar condicionado no máximo, os intermitentes ligados. O nevoeiro que me não deixa olhar mais na tua direção, tu mancando, apoiado na bengala, deixando-me para trás, sem me ouvir, rouco, cansado de gritar por ti, com as lágrimas e o ranho a impedir-me de respirar, incapaz de compreender.

Porque não se compreende que um avô deixe uma criança assim…

Todas as pessoas valem a pena. Mesmo aquelas que não valem nada. Aprenderás como…

E a viagem alonga-se, eterniza-se, deixa-me ainda mais longe de quem sou, como se de repente tivesse principiado a rodar noutra estrada, a galgar anos em lugar de asfalto, a procurar um ser de outrora como se procura um objeto perdido, a descobrir com olhos novos verdades antigas, a alcançar finalmente o significado das palavras que ficaram gatafunhadas em papel pardo, junto à lareira, com um velho lápis de carpinteiro aguçado pela tua navalha.

Que saudades, avô!

E é quando dou por mim junto do portão. A confusão ímpia das segundas-feiras. O motorzinho escancarando-lhe a boca, introduzindo-me na vida, engolindo. Que saudades, avó! Dessas manhãs junto à lareira, das tuas mãos calosas, quentes, magoadas.

Aprende a conhecer as pessoas, meu filho! Tu és reguila! Tu vais safar-te, não vais?

Primo um botão. O carro fica para trás. O ar violento da cidade. Sim, avô! Prometo que sim! Verás que sim! Juro que sim! Porque nunca se deixa uma criança para trás, dobrada num pranto, ferindo-se sem cura! Nunca se deve ser surdo e insensível. E um velho morrendo-nos, curvado numa bengala, enfiando-se no nevoeiro, é uma questão de honra, de orgulho, de sangue!

Prometo que sim! Verás que sim! Juro que sim, avô!

Saberei desenrascar-me, conhecer as pessoas, escrever melhores palavras, ser alguém. Todas as pessoas prestam. Mais que não seja para nos ensinarem a preciosa lição de que não podemos confiar nelas. E há, algumas, pouca, escassíssimas, que nos fazem bem, que nos saram das hemorragias.

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Que bem que se está aqui!

moses stell
Fotografia de Moses Stell

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As manhãs são prodigiosas. As manhãs de sábado e de domingo. As manhãs das férias e dos feriados, dos dias de café silencioso e olhos fechados contra o sol. As manhãs de música barroco e de janelas abertas. As manhãs de caderno em cima da mesa e caneta de aparo. As manhãs de depois de termos feito amor, quando te despedes com um beijo antes da piscina e do ginásio ‒ tu a tornear o corpo, eu a cismar em trapézios de palavras. As manhãs de quando os vizinhos mais novos não estão. De quando a rua acorda como as ruas da infância, devagar, sonolentas, sem relógio. As manhãs de quando os miúdos das moto 4 se extinguiram no horizonte, por causa da prova nos matos alentejanos. As manhãs de quando os outros miúdos, os das noitadas, das passas, das bebedeiras, das curtes, do pandemónio de copos plásticos partidos e latas amolgadas, se encontram ainda na ressaca das respetivas camas.

‒ Que bem que se está aqui!

E é um bem-estar que me ilumina as coisas à volta. Que me faz olhar para a mobília e para o interior de um livro com o mesmo desvelo com que observo à varanda o senhor Afrânio, o septuagenário mais educado e galante que conheci.

‒ Bom dia, senhor Afrânio!

‒ Muitos bons dias, meu caro Lopes!

Um bem-estar que tem a sua própria química molecular, as suas leis físicas inconfundíveis. O ar respira-se melhor, mais leve, menos sujo e rarefeito, como se os pulmões se dessem conta do milagre que os dilata. A fruta e as velas de cheiro açucarando as paredes. Os detergentes e o teu perfume não mais agradáveis do que o fiozinho de cigarro subindo da professora Clotilde, antiga mestra do Magistério Público, que à sacada, à puridade, vem cuidar dos seus jacintos e gerânios e begónias e agapantos, falando-lhes, confidenciando-lhes, namorando-lhes as pétalas.

‒ Que bem que se está aqui!

E ao dar-se conta da minha presença, chávena na mão, olhos semicerrados, ronronando, se assusta em pouco.

‒ Bom dia, senhora professora!

‒ Como está, João?

Gosto de colher estas sementes. De ressuscitar sem pressa. De escrever como outrora, repleto de esperança e de inconsequência, para ninguém e, quem sabe, para quem me entenda. Gosto de rasurar as frases, de erguer-lhes balões corretivos, glosas e anotações, segundas linhas, sublinhados e círculos, setas e chavetas, novas rasuras, riscos e desabafos de frustração. Gosto de encher a casa com a máquina de escrever, com as suítes para violoncelo de Bach, com os meus pensamentos, com a minha loucura, com o meu coração.

‒ Que bem que se está aqui!

E é quando o voo é mais longo e mais profundo. Quase como se me esquecesse da minha pele e dos meus ossos e dos meus males de alma e dos azedumes e das vezes em que a vida me pareceu uma infinita tortura. O martelar de cada tecla, a subtil variação das notas musicais, o reflexo de cada raio de luz no vidro das janelas e na madeira e na carne macia de cada fruto, tudo, tudo tão sincrético (para me servir de Lévi-Strauss) e de outra espécie de tempo, como se o contasse agora por séculos em vez de segundos.

‒ És um tonto, meu amor!

‒ Eu sei… Eu sei!…

E as manhãs adquirem a expressão de uma eternidade de que jamais saberei dar conta. Porque o amor que nelas desabrocha, como o das flores da professora Clotilde, é um eflúvio transcendente, um caudal de espírito capaz de adocicar os solavancos metálicos do elevador e de tornar risível a discussão na rua sobre futebol. Porque Bach e o café e o caderno cheio de rabiscos são capazes de me bem-dispor, a ponto de me esquecer das aulas e das agendas e dos recados mais ínfimos… Como se a vida pudesse seguir sem eles… Como se eu pudesse viver a vida sem a vida dos outros, ombros direitos e o rosto erguido, concentrado somente no discurso puro do meu espaço…

‒ Que bem que se está aqui!

Confesso que são as melhores manhãs. Quase inconfessáveis. Quase intraduzíveis. Quase de um outro eu. Como se de um outro eu que visitasse de vez em quando, como quando se visita um outro eu no álbum de fotografias… Falo destas manhãs de sábado e de domingo, de férias e feriados, de café silencioso e olhos fechados contra o sol. E tu vens, muito devagar, sem um ruído, tão adolescente como quanto te conheci, colocar-te atrás de mim, pondo-me as mãos nos olhos, invadindo-me com o teu aroma, preenchendo-me com as tuas formas, calando com as tuas poucas as minhas palavras prolixas.

‒ És um tonto, meu amor!

E eu sei que sim. E eu sei que sim. E nada é, juro-to, tão belo, tão magnífico, tão importante como essa última sintaxe, esse modo de findar o trabalho, retirar a folha do cilindro, cheirar contigo a tinta, ler a duas vozes, sorrir, adormecer no aconchego do teu corpo, sem pressa, como se o tempo o contasse agora por séculos em vez de segundos.

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Crónica das palavras que nos (não) farão falta

Ziga Gricnik
Fotografia de Ziga Gricnik

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Chegará uma altura em que preferiremos não ter proferido uma única palavra, meu amor. Será o silêncio a dizer por nós o que as palavras não podem. Porque as palavras, como os aleijões, como os paralíticos, como os corpos encarquilhados pelo reumatismo, não conseguirão dar mais um passo. Limitar-se-ão a ter querido. A esboçar um rumor. A pingar um sorriso.

Tu sabes como o receio. Como tenho pavor desse silêncio. Dessa língua envelhecida, atrofiada, incapaz de um milagre. Dessa desabafo desamparado.

‒ Sabes, hoje sinto-me tão triste…

E haverá um encolher de ombros. Continuarás a preparar as tuas aulas com os óculos sepultados no fundo do nariz. Replicar-me-ás com blandícia. Um gesto tão inútil quanto as flores de plástico numa jarra da cozinha.

‒ Claro que sim, meu anjo…

Terei os olhos tresmalhados na varanda, pela rua, de encontro aos prédios grisalhos, sem poiso certo. Olhos trôpegos, sujos, vencidos pelo meu próprio tempo.

‒ É como se pudesse morrer a qualquer instante…

E tu, teclando com dificuldade, esforçando-se por conjugar parágrafos, imagens, formas, tamanhos e tipos de letra, com as lentes trespassadas pelos pixéis agressivos, multicolores, desumanizados de um computador de uma outrora novíssima geração, consolar-me-ás como quem consola de raspão um moribundo.

‒ Claro que sim, meu amor…

A língua não é inesgotável. Filões de metáforas, adjetivos, interjeições, belas frases singulares, tudo exaurido até ao amuo. Até ao monossílabo. Até ao grunhido.

‒ Sabes do que tenho saudades?

As ruas serão uma feição estranha. Em vez de miúdos, velhos brincarão em parques solitários até que os venham resgatar à penumbra. No lugar das placas alusivas a monumentos históricos, nascerão da grama dos jardins evocações a grandes escombros removidos. Dispositivos eletrónicos repetirão, dia e noite, olvidados, o som de animais extintos…

‒ Claro que sim, meu querido!

E eu falar-te-ei das palavras. Da saudade das palavras. Do vigor de ter desejado, compreendido, justaposto palavras. Falar-te-ei da palavra enxuto. Da palavra aconchego. Da palavra apaziguado. Da palavra pernoitar. Da palavra sopro. Da palavra dúctil.

‒ Acho que me tornei num fantoche!

E tu, com a mesma expressão, os mesmos lábios (agora mais engelhados, distraídos, dormentes), a mesma placidez, suspirarás, como quando o suspiro é uma evolação, uma faúlha, uma despedida.

‒ Claro que sim, meu mais que tudo!

As ruas já não serão paredes, becos, muros, cercas, mas dormitórios verticais. Criaturas voadoras robóticas, pterodáctilos ultramodernos, trar-nos-ão a ração alimentar. Silvos metálicos atravessarão as paredes, como o faz agora a euforia dos pássaros…

‒ O mundo já não é para nós…

E tu, mais feliz agora, aliviada, com a expressão de quem acoita com estoicismo uma hérnia, de quem sabe ter valido a pena, de quem desliga a máquina, a luz o trabalho, responder-me-ás.

‒ Claro que sim, meu amado!

E daremos um beijo. Será como um encosto de pele. Pele ressequida e fria. Pedirás que use o comando para preparar a mesa de jantar. Um resto de nostalgia circulará pelo cubo da casa. Serão praticamente sílabas, moléculas prosódicas, vazio. Uma solidão engessada e incurável juntar-nos-á à mesma comida insossa. Nada haverá a dizer. As palavras estarão gastas. Tão estafadas como os nossos ossos.

‒ Nunca deveríamos ter chegado a velhos…

Saberei que me escutas. Que me reconheces. Que a mesma decrepitude nos lavou com cinzas o rosto, os braços, o tronco, o sexo, as pernas. Que o amor pode restar num miligrama de coração. Que terá valido a pena.

‒ Claro que sim, bebé!

E dormiremos juntos. Agarrados um ao outro. Como náufragos à sua tábua bendita. Sem uma palavra mais. Como se o silêncio pudesse dizer por nós o que as palavras não podem. Como se a noite não fosse tão longa. Tão assustadora. Tão rente a um e a outro.

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