Ser mãe

Tim Kraaijvanger
Fotografia de Tim Kraaijvanger

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Durante a viagem que me levou no passado verão do Algarve ao norte da Europa reli as muitas páginas de Cem Anos de Solidão esbarrando, porventura involuntariamente, a propósito sem dúvida da centenária Úrsula Iguarán, noutro significado para a palavra mãe: porque na palavra mãe cabem significados tão vastos e tão diversos como os que desfilam no caleidoscópio de acontecimentos, nomes, geografias, gerações, metamorfoses, nascimentos e mortes do texto de Gabriel García Márquez. Essa mulher (sucessivamente mãe, avó, bisavó, trisavó e tetravó) representa no colapso de toda a solidão, e para me servir de uma legenda de Salvador Dalí, a persistência da memória.

Longe, nas planícies escandinavas, com o mesmo Atlântico em fundo, senti saudades da minha mãe. Eu, homem de trinta e cinco anos, senti saudades da mulher ainda não velha que me trouxe ao mundo, da mulher que inumeráveis vezes me amamentou, agasalhou, velou em noites febris, me narrou histórias da Branca Flor e do João Sem Medo, me ensinou as primeiras orações e os provérbios mais subtis, me fez acreditar numa ética (hoje provavelmente anacrónica) que abjura do poder e do dinheiro, me fez amar a simplicidade e a poesia silenciosa das pequenas formas de existência, me levou às letras e humanidades. Longe, nos cumes da Suécia, compreendi pela primeira vez a asfixia do ser exposto a uma solidão desamparada. Pela primeira vez na minha vida senti a possibilidade de ter cavado no lugar da minha alma um buraco, uma estrada sem retorno. Pela primeira vez compreendi porque clamam pela mãe todos os soldados moribundos, em todas as guerras do mundo.

Os anos trouxeram-me o decoro e a prudência. Reconheço que a vida é um fenómeno precioso, muito acima das palavras e das formas de consciência. Reconheço que há vínculos sagrados sobre os quais é redutor falar. Porque ser mãe é uma ciência complexíssima, como tão bem o demonstram o sofrimento de uma tia minha enlouquecida pela perda do filho (como nas tragédias de Sófocles), ou mais eloquentemente ainda o nascimento da Salomé, criança que trouxe à minha mãe em particular (à avó Alice), a suprema alegria de o ser duas vezes. Mãe é a terrível condição de pretender tudo, de abdicar de tudo, de concentrar tudo, tudo no triunfo incalculável de gerar uma vida e de nela deixar inscrito o poema maior possível: o amor de felizes lágrimas infelizes!

Nunca poderei ser mãe (invejo-o possessiva e veementemente às mulheres), mas pude pressenti-lo uma ou outra vez. Explico: em 1998 fui submetido a uma operação cirúrgica, que me obrigou a um internamento de oito dias. À data a minha irmã Catarina contava apenas três anos, tendo eu suposto que as suas visitas ao hospital não lhe ficariam registadas. Explico também que havendo entre nós um intervalo exato de dezoito anos sempre cuidei dela como de uma filha, cabendo-me, entre outras tarefas ao longo da sua infância, a de a aconchegar na cama. Numa dessas noites de leitura dos contos de Grimm, de algumas cócegas e depois da luz apagada, quando a imaginava adormecida já, quando passava eu próprio pelas brasas, sussurrou-me a garotinha qualquer coisa como isto: «Sabes? Quando  eu era pequenina e tu estavas no hospital, chorei muito porque tinha pena de ti e a mãe ficou tristinha!» Confesso lágrimas abundantes e silenciosas, de uma felicidade infeliz, de uma sinceridade que transborda e não tem definição. Ser mãe é isso, imagino que seja isso: chorar muitas vezes, sinceramente, em silêncio!

Anos mais tarde, numa fatídica noite de maio, quando o aparato das sirenes e o pirilampo das ambulâncias anunciava aqui na Vila o atropelamento simultâneo de várias mulheres no regresso da igreja, quando ninguém sabia dizer ao certo quem eram as desafortunadas, quando ninguém podia negar que houvesse vítimas mortais (havendo, pelo contrário, quem asseverasse que haveria muitas), quando ninguém podia acercar-se do ponto do sinistro por causa da barreira policial, quando se sabia unicamente que eram mulheres vindas do serviço religioso em honra de Nossa Senhora (e a minha mãe contava-se entre elas), entrei em pânicoPorque não estava preparado para o pior dos cenários. Porque aquele podia (e não foi, felizmente) o pior dos cenários. Porque no caderno de encargos de uma mãe consta obrigatoriamente o de preparar um filho para a sua desaparição – e talvez nunca estejamos preparados: eu não estava! Porque ser mãe é o empenho nobilíssimo para o conseguir, para antecipar-nos o sofrimento administrando-o aos poucos. Porque ser mãe é procurar criar em nós uma espécie de imunidade, de resistência ao colapso, de amor e memória que a prolongue e nos prolongue no tempo.

Herberto Helder, em versos de superior condensação, resume o que podem ser todas as mães, todas as Úrsulas Iguarán, todas as mães ensandecidas pela perda, todas as mães que um dia nos criaram e rejubilam com uma neta nos braços: «As mães são as mais altas coisas/ que os filhos criam, porque se colocam/ na combustão dos filhos, porque/ os filhos estão como invasores dentes-de-leão/ nos terrenos das mães.» Abençoadas sejam, pois, todas, todas as mães a que não sabemos, a que não soubemos tantas, tão incontáveis e ignominiosas vezes, dizer sequer obrigado! Porque ser mãe, por último, será não desamar a quem lhe devota a ingratidão e o silêncio. Abençoadas sejam por tantas, tão incontáveis e prodigiosas horas de perdão!

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Outra sobre livros

Xelo Moya 03
Fotografia de Xelo Moya

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No momento em que escrevo estas palavras estou tomado por uma fúria descontrolada, que entre outros perversos efeitos psicomotores me faz escrever cada palavra como se tivesse nascido malaio, russo ou etíope, de modo que a fúria de fúria se alimenta e às tantas estou a martelar no teclado e a fazer dramáticas caretas para o ecrã branco à minha frente, parede de luz e de silêncio que me ignora, aliás, as graves razões por detrás e o significado de cada esgar de louco que lhe lanço. Não, não é um ótimo começo de crónica. É só um começo. De resto, imagino que quem me lê (dois ou três amigos que não atiraram ainda a toalha ao chão, para me servir de uma metáfora da moda) se pergunte quais serão, enfim, os motivos de uma tal perturbação, ou se questione (não o duvido) se o autor destas palavras não estará apenas a ganhar tempo para encontrar alguma coisa que valha a pena ser dita, andando daqui para ali e dali para acolá, às voltas e às voltas, a espalhar a fúria, como se espalha cinza, ou uma punhado de sal no gelo. Não, definitivamente o juízo não me acompanha!

Adianto a explicação: andando eu, esta tarde, em verificação de certos cartapácios e obras menos procuradas, descobri que uma infiltração de água cá em casa, uma dessas malditas entradas da chuva, quando há chuva (e este inverno tem havido muita, Deus seja louvado), veio descendo uma e outra e outra vez, sempre em segredo, sobre uma das mais altas estantes da minha biblioteca, e, assim mesmo, sem avisar, fez-me apodrecer (não é exagero, é apodrecimento sem tirar nem pôr) mais de metade da minha extensa e preciosa coleção de pintura da Taschen, levando consigo seis romances de Milan Kundera, um de Gabriel García Márquez (tudo Publicações Dom Quixote), umas quantas recolhas de contos (entre eles três dos sete volumes de contos de Anton Tchékhov, edição da Relógio d’Água), entre outros títulos que nem vale a pena aqui chamar à récita. Vi tudo com incredulidade. Vi o empastamento das folhas, vi o encarquilhamento da humidade, os círculos monstruosos, cancerosos, do bolor. Toquei na ferida. A polpa dos dedos levantou sem dificuldade páginas inteiras da minha religião principal, e pedaços, nesgas de papel, ângulos de prosa e pinturas imortais, que (a salvo de semelhantes infiltrações) jazem felizmente enxutas nas salas dos museus mais diversos do mundo…

Se não for inconveniente, nem excessivamente efeminado, permita-me o leitor (uso o singular, mesmo convencido de que serão afinal dois ou três) que chore. Permita-me que sofra o desgosto outra vez, que o reviva devagar com o secador do cabelo em riste, que faça ainda um derradeiro esforço para salvar o insalvável, e que gema, que grite, que berre, que barafuste, que bata com o punho, que ameace a frincha maldita por onde desceu esta gangrena, que ameace com dinamite e depois com cal e tinta o maldito lugar por onde o mal veio ao mundo. Ao meu escritório pelo menos!

E chegado a este ponto, ainda sem ter conseguido iniciar a crónica, devo explicar o seguinte: há uns dois meses, quando alinhava os poemas do meu último livro; quando precisei de qualquer coisa que sabia o que era mas não de quem; quando percebi que era uma citação de Mário de Cesariny de Vasconcelos, descobri o que não se deve descobrir. Que emprestei o Manual de Prestidigitação e não mo devolveram. E como um mal leva a outro, como uma falha nos aviva a memória de falhas anteriores, dei-me conta de ter emprestado também Horto de Incêndio de Al Berto e de não o ter em casa. E um tomo das crónicas de Fernão Lopes (dedicado a el-Rei D. Pedro). E também um romance de Isabel Allende (quem o tiver em sua posse, faça bom proveito). E era justamente para conhecer a real dimensão do problema que me propus fazer uma vistoria. Pelo que me propunha escrever uma crónica, a começar assim:

«Por causa de um prospeto conheci a poesia de Al Berto, por causa de um flyer conheci a de Mário Cesariny de Vasconcelos. Dois superpoetas do século XX (que viram a esquina do milénio), dois inconformados, dois rebeldes que (cada um à sua maneira) ganharam fama de malditos, ou, pelo menos, de mal-amados.

Se Horto de Incêndio me abriu a porta para o poeta de O Medo, foi o extraordinário «Discurso ao príncipe de Epaminondas, mancebo de grande futuro» que me deu a conhecer Manual de Prestidigitação e, depois dele, Nobilíssima Visão, Pena Capital, A Cidade Queimada, Titânia e, já no mestrado, Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (que afinal já conhecia, na versão mais curta de Nobilíssima Visão) e O Virgem Negra. Sigo a ordem por que os li e não a que seguiu o autor ao escrevê-los ao longo de meio século de paciência, polémicas e amor incondicional à arte de Homero.

Só esta tarde, aquando de uma arrumação que aqui não importa esmiuçar, é que me lembrei de o ter emprestado e não o ter recebido de volta. E porque o emprestei a alguém que agora se encontra em parte incerta, só esta tarde me inteirei da perda. Estou consternado! Os livros não são emprestáveis, especialmente os de poesia: eu já o devia ter percebido, eu que somo até hoje reveses consideráveis em relação a Mário de Sá-Carneiro, Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner Andresen e Wisława Szymborska (neste caso derradeiro com a sorte de haver, entretanto, podido comprar um novo exemplar do volume “desaparecido”) e, por alguma razão os citei de início, também Al Berto e Cesariny.

Moral da história: venho por este meio, fria, solene e publicamente declarar a minha absoluta, voluntária e inegociável indisponibilidade para ceder doravante por empréstimo, ou outro igual expediente, qualquer livro de poesia, podendo nos restantes casos, desde que não seja a minha porção de teatro (grego, de Goldoni, Ibsen, Lorca, Brecht e Beckett), de ensaios (com Lourenço e Steiner à cabeça), ou de ficção (portuguesa, europeia, universal), considerar a hipótese de. Repito: os livros não são emprestáveis, nem riscáveis, nem dobráveis, nem sujáveis com impressões digitais, nem são bons lugares para guardar os números do Euromilhões e números de telemóvel. Pela parte que me toca, sou fundamentalista do livro limpo, do livro impecável, do livro inteiro e intacto, como o tipógrafo o pôs no mundo. E, dito isto, calo-me, porque o que tinha a dizer disse!»

Isto era a minha proposta. Mas compreendi que uma tal crónica, além de breve, além de estranha (seria realmente aquilo uma crónica), além de provocadora, não seria bastante para conter a expressão de miséria humana que revoluteia dentro do meu sangue a estas horas, tendo tomado eu conhecimento do desastre a que aludi inicialmente e que continua a empurrar-me as omoplatas para baixo, como uma carga de cimento sobre os ombros. Tonto, triste, totalmente desolado. Alitero em para sublinhar musicalmente o elegíaco tom em que me vou esta noite deitar, já não tomado pela fúria, mas tão só pela mágoa e frustração, de quem ama os livros (certos livros mais do que os outros) e os perdeu à força de os querer guardar no lugar mais extremo da sua caverna. Moral da história: antes os tivesse emprestado!

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Bibliotecas

Biblioteca do Mosteiro de Strahov
Fotografia de Jan Gravekamp

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Entre as mais poderosas imagens que o meu cérebro construiu do mundo, conta-se a do lugar imenso, insondável, sagrado, das bibliotecas. Um tal território não é apenas espaço, nem apenas depósito, nem apenas silêncio de livros. Mas verbo, verbo incontido e multiplicado, verbo prestes a conjugar-se, prestes a parir, prestes a replasmar o próprio verbo divino que é, desde S. João, o começo e a duração dos tempos. Um tal território é sede do fascínio e do abismo, do poema e do pó, da palavra e do vazio. Porque as bibliotecas são, muito para lá da metáfora do labirinto em que Borges as refundou, a metáfora da luz em que sonho eu!

A primeira que amei era escassa, mal iluminada, nos fundos de uma escola velha e obsoleta. Administrava-a uma funcionária carrancuda, sempre sentada e com o aquecedor aos pés, para quem a maçada de ter alunos a pedir-lhe que abrisse os armários (sábia e prudentemente fechados a cadeado) só competia com a maçada de ter de levantar-se de duas em duas horas para ir à casa de banho. Ainda assim, foi dentro das suas paredes que me repastei com aventuras do Superpato, ou com os vinte e um volumes do quinteto inesquecível de Enid Blynton, ou com as histórias e Pica-Pico e da Gaivota Laila de Friedrich Wolf. Benditos seis metros quadrados e repletos de mofo, onde me inteirei do bruxedo da Galinha Verde que Ricardo Alberty generosamente partilhou.

Ganhar coragem para entrar e desafiar os óculos em armação de osso da matrona, que uma vez retirados significavam cólera ou impaciência pelo menos, foi o primeiro sinal de que nascera para aquilo. E aquilo, que era muito diferente quando o professor Miguel Monteiro lá estava, deu-me a primeira noção do saber, do saber incalculado e incalculável que está à mão de semear e que, ao mesmo tempo, nos foge da mão.

Preciso de homenagear este homem. Professor de Língua Portuguesa (como eu me haveria de tornar), ele foi o poeta do giz, aquele que nos lia em voz alta fábulas de Esopo e contos de Hans Christian Andersen, excertos das fantasias de Júlio Verne e contos russos, quadras de António Aleixo ou de Fernando Pessoa, aquele que nos falava dos mitos e do teatro grego, que nos ensinou que texto quer dizer tecido, ou que as palavras mais não são do que roldanas que nos ajudam a puxar pesos enormes e que por isso devemos mantê-las bem oleadas, próximas e disponíveis. Não tive outro professor assim. Nenhum que haja conseguido de forma igual penetrar a carapaça (quase sempre oca) da burocracia e nos tenha feito ler, falar, ouvir e escrever com paixão, com amor e com sentido estético no que, dentro de uma língua, há de passional, amoroso ou literário.

Foi ainda o professor Miguel Monteiro quem nos desafiou a inscrever-nos como sócios na Biblioteca Municipal. O precioso cartão plastificado, com o nome e o número escritos à mão, foi mais do que a possibilidade de conhecer a Casa da Cultura, requisitar livros e levá-los para casa. Foi o passaporte para um mundo solene, cujas estantes e móveis austeros se deixavam antecipar pelo aroma da cera e da madeira, cujas amplas janelas (banhadas ora pela luz do sol ora pela chuva) se mantinham tão longe e tão perto da rua quanto o desejável. Havia com efeito um mundo para lá e outro para cá das vidraças, ambos tão deliciosos quanto imiscíveis pelo olhar, o que me faz, desde então, e num assomo de nostalgia, espreitar o céu aberto e o bulício sem som (como num filme mudo) a partir de dentro, e os lustres e pesadas lombadas, os leitores dobrados e silenciosos, a partir da rua. Em mim subsiste muito do antigo adolescente; primeiro com Altino do Tojal e Dumas; depois com os dicionários de latim e de grego, com enciclopédias, atlas e histórias universais, com Carl Sagan e Herbert Reeves, com as Memórias do Cárcere de Camilo debaixo do braço. Alcunhavam-me de Crânio e eu de néscios. As duas batalharam durante anos, na pior das guerras de difamação.

Quando nasceu a minha irmã Catarina, quando ingressei na Faculdade de Letras, o intelectual estava feito. Feito, mas com impurezas graves e falhas maiores. Não conhecia dezenas de autores portugueses (não me atrevo a cifrar a quantidade de estrangeiros), não dominava bem o inglês, não viajara, não dispunha de conhecimentos categóricos no que concerne à vida noturna, vivia recluso de ideias humanistas do tempo do senhor Damião de Góis, pese não o seguir no exemplo da erudição. Para os meus colegas de curso, apresentava o aspeto de um monge tardio e mais ou menos provinciano. E por essa razão me abastardei. Não apenas com a leitura compulsiva dos franceses, dos americanos, dos italianos, dos ingleses, dos alemães, dos russos (preferi quase sempre os que não integravam o currículo), como sobretudo com as surtidas para o jornal académico (onde frequentei tertúlias e publiquei uma ou duas crónicas de ocasião), ou com as bebedeiras na Ribeira, na Foz e na Boavista. Quase perdi o terceiro ano.

Ainda assim, e porque os amigos eram bons e muitos nesses anos venturosos, lá me endireitei e acabei a tempo. E porque precisava de silêncio e de solidão, o lugar onde me resgatei ao precipício foi a majestosa biblioteca sobre o Rio Douro, na ainda chamada «Vista Panorâmica». Poiso dos marrões, dos grupinhos de estudantes idiotas e das beldades de Filosofia, ela era o refúgio dos três ou quatro poetas que então já se afirmavam, com Daniel Faria à cabeça. E era o meu refúgio também. Como no filme de Wim Wenders, Der Himmel Über Berlin, que a saudosa professora Vera Lúcia Vouga exibia sempre às suas turmas, em Introdução aos Estudos Literários, eu imaginava-me uma dessas vozes interiores que declamavam de si para si Homero, Kierkegaard ou Noam Chomsky.

Vem-me muitas vezes à memória o profundo contraste de luz e sombra nesse espaço, uma torre com meia dúzia de pisos, onde li Dante, Petrarca, Gôngora, António Vieira, Poe, Machado de Assis, Baudelaire ou Breton. Não poucas vezes me exigiram silêncio, porque me distraio facilmente. Não poucas vezes me perdi a cismar nos rabelos e embarcações de carga que transpunham o horizonte, acompanhados pelo grito das gaivotas e pelos meus olhos fartos de Linguística, de Literatura ou de Metodologia. Lamentavelmente, não me assiste o dom da paciência que transforma homens comuns em excecionais. Fui sempre um leitor fantasista e um pouco tolo.

Em 2011 estive em Praga. Aí visitei a biblioteca do Mosteiro de Strahov, um exemplar da sua espécie que me comoveu até às lágrimas. Não é muito diferente da biblioteca do Convento de Mafra, por exemplo, mas, como muitas vezes sucede com as civilizações a norte, é mais despojada, mais pura, mais livros, mais saber, mais biblioteca! Sempre quis folhear um desses códices medievais, com iluminuras e letras em estilo gótico. Quis o destino que esse privilégio me pudesse ter sido dado em terras eslavas, nas mesmas salas e corredores por onde circularam Tycho Brahe e Johannes Kepler. E por tê-lo conseguido aí, sempre Praga morará no meu coração, como morará sempre a pequena biblioteca do Ciclo Preparatório ou a do meu quarto, onde guardo apenas os livros de poesia inquestionáveis!

Perguntaram-me há tempos se conhecia a nova biblioteca de Alexandria. Não conheço, infelizmente. Mas também esta moderna não me seduz como seduziria a outra, a histórica, aquela que desde os relatos de Heródoto e Tucídides me incendeiam a imaginação. Aliás, como as bibliotecas de Jorge Luis Borges ou a dos copistas d’O Nome da Rosa de Umberto Eco. Porque um ingrediente transforma um depósito de livros numa biblioteca, ou, na sua ausência, uma biblioteca num simples depósito de livros: a vontade de ficar, de permanecer, de regressar.

E é, por isso, que me orgulho de ter criado na Vila de Arões, onde vivo (no edifício da sua Junta de Freguesia), uma biblioteca. Pequena, mas funcional. Escassa, mas disponível. Incompleta, mas preparada para crescer. E é, por isso, também, que não poderia deixar de homenagear aqueles que trabalham todos os dias nas bibliotecas escolares, e que as convertem num espaço de acolhimento, de aprendizagem e de prazer. Não conheci nenhuma mais ativa, nem mais humana, nem mais bem-sucedida do que a da Escola E. B. 2, 3 do Viso, no Porto, sob o cuidado da Emília Pinho e da sua equipa. E, por isso, também ela me ficou. No coração, claro está!

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Delírios

Paula Rego, «A Sereiazinha», 2003
Paula Rego, «A Sereiazinha», 2003

           

Na cabeça enviesada de um doente passam-se coisas inexplicáveis, coisas como decerto as que descreve o senhor Brás Cubas nas suas Memórias Póstumas, labirínticas coisas que são o eco da batalha entre o devaneio e a razão, que é como quem diz entre a febre e doses cavalares de ben-u-ron.

Por qualquer motivo da minha compleição física, sou achacado a delírios, tão mais indescritíveis quanto fascinantes: sou amiúde um pássaro sobrevoando a minha casa e o meu bairro, vendo ao pormenor os vizinhos a assar pimentos e sardinhas nos respetivos fogareiros e a fazer-me sinais ameaçadores lá de baixo, como se fosse intenção minha roubar-lhes o petisco. Outras vezes, sou outra vez criança e fujo da escola, porque a minha professora tem uns horríveis lábios vermelhos e quer-me por força beijar. Não é raro ser abordado por personagens históricas, que sobem da tumba para me fazerem interrogatórios ou pedir conselhos. Já houve um que me veio pedir a devolução de dinheiro que alegadamente me emprestara… De todos o mais espantoso foi o velho Marquês de Pombal, que insistia roubar-me o telemóvel e ameaçava despir-me em público se não lho entregasse…

Recuperado destes episódios de bullying psicótico, pude rir ou ficar seriamente convencido de ser semilouco. Mas a loucura é uma caso muito mais complexo do que se pensa; quem assim o afirma é Emil Kraepelin, que diz também «alto lá e para o baile»: nem todos os fenómenos de perturbação mental são propriamente um caso de psicose, demência, neurastenia, histeria ou esquizofrenia. A febre não faz do seu portador um louco, como o livro de filosofia debaixo do braço de um estudante não o torna propriamente um filósofo.

Assim sendo, incapaz de decidir-me quanto ao que me cabe de manifestamente louco, ou ao que é exclusivamente do domínio da febre, comecei a anotar algumas dessas fabulosas aventuras, convencido de poder servir-me delas como delas se serviram nos seus livros Baudelaire ou Borges, embora num caso o absinto, no outro a cegueira tivessem dado uma ajuda preciosa no aprofundamento e correção das ideias. Simplesmente, não pude divisar até hoje como me seria útil descrever num poema o quanto fugi do sinistro Popeye (que me aterrorizou a infância e não só por causa dos espinafres odiosos), ou como dar seguimento numa novela às façanhas conjuntas com Zorro, o meu maior herói masculino até ter-se abandalhado com Antonio Banderas…

A verdade é que os meus delírios possuem pouca literatura: é lá coisa que se aproveite Dom Sebastião ser apanhado a fumar e a faltar à lição de piano? E que dizer de Afonso Henriques a levar dois estalos por faltar ao respeito à catequista? «Aqui quem manda sou eu, meu menino» — e di-lo com uma faca em riste. Não poderia explicar numa história da minha lavra porque leva o primeiro rei de Portugal um par de bofetadas da catequista, ou porque lhe chama essa terrível figura de avental «meu menino», ou porque recita ela a catequese empunhando uma faca de degolar galinhas…

Paula Rego, acostumada a visões deste calibre, dir-me-ia existir qualquer coisa de freudiano nos meus textos. E eu haveria de escutá-la com comedimento, com pundonor, com excitação. Porque me convenceria de habitar em mim, afinal, algum ADN de artista. Mas era preciso que eu soubesse multiplicar literatura a partir desses achados piréticos. Infelizmente, a única coisa que consigo é esgotar a paciência àqueles que me trazem chá e panos molhados à cama, me trocam os lençóis e me obrigam a mudar de pijama.

Pela minha parte, recupero de um fim de semana em que me fui tomado por um mistura de constipação e de gastroenterite (infundado o receio de gripe A). Na minha cabeça, como no areal repleto de despojos de A Sereiazinha, que Rego pintou em 2003, jazem incontáveis e incongruentes fantasmas de episódios mentais, que em breve serão recolhidos pelas vigorosas mãos dos meus enfermeiros domésticos.

Porque definitivamente há circunstâncias com que lido mal e de que tiro escasso partido. Invejo quem o faz, ou fez, como o grande Machado de Assis, por exemplo, que levou longe o talento de fazer render a contrariedade da doença. Mas os grandes são grandes, e com a devida vénia me retiro… para a sopa de arroz.

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Das brincadeiras e dos brinquedos que nos ficam

Pascual Nuñez
Fotografia de Pascual Nuñez

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Se algum lugar mítico se conserva em casa dos meus pais, esse lugar é o sótão. Aí, mesmo debaixo das telhas, sob as traves de madeira, onde a luz elétrica nunca chegou e onde aranhas solitárias cortinam o silêncio, sobrejaz uma multidão de caixas com candeeiros, tapetes e livros de costura (pesados tomos de capa dura sem qualquer préstimo), faianças e um antigo aparelho de radiofonia. Mas aí, no meio da escuridão, onde os anos fizeram queimar cotos de vela e fósforos, resistem, também, sobretudo, as coleções! Calendários, porta-chaves, discos de vinil, pósteres (do Benfica e da Seleção, dos Pink Floyd e dos Pearl Jam), revistas das Seleções do Reader’s Digest e do Tio Patinhas. Aí, aonde sobe a luz da lanterna, como Cousteau descia com ela ao fundo dos oceanos, o tesouro principal são as lendárias malas dos brinquedos, as que guardam os espécimes adorados da infância e, agarradas a eles, as melhores memórias!

Tudo passou depressa daí em diante: cresceu-se; foi-se para a universidade; estudou-se Trubetzkoy e Martinet; discutiu-se Sartre e Camus entre imperiais e pires de tremoços; obteve-se o canudo; passou-se a cirandar pelo país, ensinando a putos malcriados aquela mesma disciplina que em miúdo se detestava; passou-se a dizer mal do Governo; escreveu-se um ou uns quantos livros; plantou-se uma árvore ou um bosque delas; viajou-se pelo estrangeiro; amou-se, sofreu-se e voltou-se a amar; de repente há uma criança magnífica em casa e alguém pergunta «O que é feito dos teus brinquedos?». E é então que a escada de tesoura regressa.

Durante anos, a entrada para o sótão (pela dispensa) foi-me vedada. De maneira que quando à sorrelfa penetrei pela primeira vez esse ambiente, onde o depósito da água e respetivas tubagens tomavam o aspeto de uma máquina cardíaca, fiquei atordoado com o recheio dos misteriosos caixotes. Era apenas um garoto surpreendido com o lugar menos visitado da casa. Mas esta tarde, ao encavalitar-me no estreito suporte que me levou de novo ao alto, senti o que sente o arqueólogo, quando ao escavar obstinadas camadas de saibro e de areia se vê confrontado com objetos que compõem toda a história do tempo. Senti o que se sente algures numa cave ou numa arrecadação, quando se reconhece e recupera em simultâneo pedaços da pessoa que fomos aos cinco, aos dez ou aos vinte anos. Senti a forte comoção que enche decerto de mágoa e de felicidade a palavra saudade, mas que é mais intensa do que ela, porque é o abalo de um reencontro – com (o toque, com o cheiro, com a textura de) objetos misteriosamente subtraídos à nossa convivência e de chofre, agora, caoticamente, resgatados da penumbra e do pó. Ocorreu-me que, ao cabo de tanto tempo e de tamanha distância, a vida paradoxalmente talvez nunca tenha existido fora do mesmo instante e do mesmo lugar onde desfilam cubos de rubik, ursos de peluche, automóveis de corrida, pistas de comboio, puzzles e conjuntos da Legos.

Cada uma dessas miniaturas da fórmula 1, cada camião, caterpílar ou carro dos bombeiros, cada jogo de tabuleiro (do Monopólio do Topo Giggio), cada jogo de cubos (em especial, o da Branca de Neve e dos Sete Anões), cada avião e cada paraquedista, cada soldado de chumbo e cada replicazinha em pvc do Dartação e respetivos colegas Moscãoteiros, cada tambor ou viola de plástico, cada ferramentazinha de metal e madeira construída pelo meu pai (sobremaneira invejadas pelos outros fedelhos da rua, por não haver quem tivesse joguetes iguais), cada um destes maravilhosos objetos transporta com extraordinária precisão os dias passados, os amigos, as conversas, as fantasias, os recantos onde em tardes pachorrentas, depois das aulas ou no verão, nos juntávamos para brincar. Cada um desses objetos foi personagem das fantasias que púnhamos em marcha na terra batida, na areia ou nos jardins da vizinhança, de onde se elevava o aroma da relva cortada e que para sempre me obrigou a associá-lo ao insuperável fascínio dos anos 80, quando as férias grandes iam de junho aos começos de outubro, e quando havia a extravagante liberdade de andarmos na rua até a noite cair ou os berros da mãe de um e de outro nos chamarem para o jantar. No verão, ao crepúsculo, a rua era disputada por grupos de meninas que riscavam os quadrados do jogo da macaca, e pelos rapazes que a riscavam com o formato de um campo de futebol. Não poucas vezes, a insuficiência de jogadores de um lado ou do outro motivou curiosas misturas, como sucedia com as canções de roda (em especial, com a «Fitinha Azul» ou com «A Borboleta Branca»).

Empolgavam-me a cabra-cega ou o jogo dos cowboys, o jogo da caça ou o esconde-esconde. Quando éramos poucos, entretínhamo-nos com um humílimo o jogo do galo ou com os berlindes. Não me recordo naturalmente de todos os jogos em que participei ou do nome que lhes dávamos. Mas recordo-me da miudagem algazarrando rua abaixo, rua acima, ocupando as casas em construção, encontrando esconderijos nos sítios e lugares mais bizarros, dessa miudagem que se procurava sem medo, rancor ou manias, que partilhava com a mesma alegria um carro telecomandado (recebido de um tio de França) ou um simples carrinho de linhas, daqueles de madeira, que as mães gastavam no tempo em que as mães ainda sabiam usar a agulha e o dedal…

Tristemente estes jogos, essa miudagem, aqueles dias encantadores desapareceram. Primeiro devagar, depois tão depressa que mal pude compreender como se desmoronava o melhor dos mundos.

Ao descer as terríveis escadas em V perguntam-me risonhos se sempre encontrei os meus brinquedos. Uma estranha perturbação impede-me de responder, de compreender sequer o que seja encontrar um tal tesouro. Se pudesse; se houvesse um tal primeiro prémio de lotaria; se me fosse dada a oportunidade de trocar tudo o que conquistei por um regresso, ainda que breve, a tais dias distantes… «Sim, sim, sim… os brinquedos estão bem guardados. Melhor é que assim continuem, onde e como estão»!

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Coisas de fedelhos

Jacek Komorowski
Fotografia de Jacek Komorowski

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Dificilmente cabem na nossa memória coisas tão importantes como as que nela entraram pela porta enorme e pelas frinchas da infância, coisas tão vagas como aquela vez em que nos puseram em cima de um triciclo no jardim relvado para fazer uma foto artística, ou tão profundas e inesquecíveis como aquela outra ocasião em que um avô nos acordou de madrugada e nos levou consigo à pesca, no rio.

Diga-se que era um rio enorme, fumegante, rodeado de incontáveis variedades de árvores caducas e de pinheiros, onde havia uma pontezinha antiga, ao estilo romano, bem como uma azenha, já com a sua roda e rodízios bastante desgastados. Essa ida à pesca ficou-me gravada de tal modo nas profundezas do meu ser que posso ainda agora, sem grande prejuízo de sentimentos ou esforço de cabeça, recuperar o estilo da cana, as galochas verde tropa o cantil, o barrete e toda a panóplia de minudências usadas para apanhar as trutas: os carretos suplente, os anzóis coloridos, a caixinha com a linha ou o engodo, diga-se uma pequena lata com vermes repelentes, que eram a delícia da pequenada…

O rio, que hoje não é tão enorme, não é sequer grande, exceto nos dias de inverno, em que ganha alguma da antiga expressão assustadora, já não tem pescadores nas suas margens. Aconteceu-lhe a desgraça das fábricas de tintos e dos campos de cereais, que o empestam de químicos e de outras impurezas nauseabundas. Não há peixe que sobreviva a tamanho aviltamento, nem gente capaz de protestar comigo contra os novos empresários de cinco à coroa, quando a convoco a protestar na rua, ou a pedir contas ao Ministério do Ambiente. Vermes mais asquerosos do que de antigamente ocupam lugares poderosos, contra os quais pouco se pode fazer. E, assim sendo, deixou de ser possível recuperar a idílica imagem de avós e netos juntos, enfrentando o frio da manhã, conversando intimidades e esperando pacientemente o momento de triunfo em que um corpo prateado vem morder o isco e dar luta até emergir por fim às mãos experimentes do maior herói que pode haver em nossas vidas!

Havia uma mítica ressonância associada à palavra truta! Apanhar uma truta era o mesmo que ver o capitão do Benfica levantar a Taça no Jamor. Era mais do que isso. Era ver confirmados os méritos desse velhote que dava lições de vida e percebia um pouco de tudo e que nunca falhava: em segredo rezava para que não falhasse, sem ele perceber, exatamente como um adepto fervoroso reza na bancada para que a sua equipa não o deixe ficar mal… Depois, quando regressávamos os dois a casa para o almoço e com o poderoso peixe nas mãos, garbosamente em riste, vinha todos ver bem “o que era pescar!”

— Temos aqui homem! Temos aqui homem para a cana, sim senhor!» – repetia o avô, pondo-me a mão nos ombros, para me gabar os méritos de ajudante e a vocação de pescador domingueiro.

Mas ajudante era-a também noutras coisas, a bem dizer em tudo. E quando a ajuda não me era pedida, forçava eu a que ma aceitasse ele, até mesmo quando se tornava um estorvo de tão solícita. Porque empoleirado lá no alto, a podar, ou a bater nos aros de alguma pipa, muito concentrado na sua tarefa de agricultor e tanoeiro, via-se o ancião a braços com a ferramenta que eu lhe surripiava, de tanto querer imitá-lo. E era então uma pachorrenta irritação apelando a minha avó que tomasse conta de mim.

— Maria Amélia, Maria Amélia!…Leva-me daqui o dianho do moço!…

Preciso de explicar, em respeito à verdade, que na casa velha, pulando e correndo, entrando e saindo pelas portas quase nunca fechadas, trepando pelos bardos ou lurando ervilhais havia não um mas um bando de diabos! Éramos com efeito meia dúzia de primos nascidos na mesma altura, que punha em alvoroço a bicharada das cortes, os galinheiros e a mansa passarada no meio dos campos… Minha avó, já então a contas com a artrose, incapaz de suster tanta ruína de cultura e o cacarejo histérico ameaçava de longe com o pau da bengala:

— Anda, meu mafarrico… quando te apanhar, vais tê-las todas juntas!

Ou, então:

— Quando a tua mãe vier, vais tê-las certinhas. Ai vais, meu bandido!

Raramente havia o ajuste de contas prometido, talvez por alguma falta de memória, aliada à perda de destreza locomotora. Ou talvez porque passada a violência do crime, num estardalhaço de ovos partidos ou cebolinho arrancado, viesse o ato de contrição. Lá ia o réu, de orelha baixa, guardando ao pau alguma distância prudente, pedir perdão.

— Ó Vó, desculpe!

— Anda aqui, moço, que eu não te oiço bem!

— Não vou… que você bate-me!

— Meu manca-mulas, vais apanhá-las! Vais apanhá-las certinhas… É como dois e dois ser quatro!

Escuso de explicar que todos juntos, ou dois, ou três sequer, fazíamos guerra à paciência de um santo. Porque dois, ou três, ou todos juntos, parecíamos magnetizados por uma criatividade facínora que nos escapava em estando sozinhos. Não era propriamente raro algum vizinho vir dar sinal lá em casa do netinho que se havia guindado a um ramo de pinheiro, ou que fora comprar um maço de Definitivos à tasca de Porinhos. E era aí um ai-jesus, com muito e bem aplicado puxão de orelhas, respetiva notificação aos progenitores e consequente bofetada da grossa! Porque, repito, todos juntos éramos o diabo em cuecas…

Guardada nessas memórias, como num estojo de mogno, resiste uma das mais pícaras peripécias que é possível narrar. O meu leitor divirta-se com ela.

A minha tia Alexandrina fazia parte dos zeladores da paróquia, assistindo-lhe entre outras tarefas a de ir buscar religiosamente todos os sábados de manhã o reforço das hóstias, que deveriam ser consagradas e oferecidas no serviço religioso do fim de semana. Era um tupperware cheio delas, embrulhado num pano carmim de veludo, que ela depunha no aparador cuidadosamente, longe do nosso olhar, ao lado do terço de madrepérola e do seu missal de bolso.

Ora deu-nos do mafarrico a infeliz ideia de irmos destapar o tupperware, esvaziar o recheio e alimentar uma carnavalesca missa, celebrada na cozinha de lenha pela minha prima Madalena. Para improvisar os sagrados ícones, demos olhadura em volta confiscando tudo o que se parecesse com eles, desde um castiçal a um caneco de alumínio, ligeiramente assemelhado ao cibório que havia lá na Igreja. A missa durou e durou, com a chusma de pecadores percorrendo de joelhos o soalho e respondendo, como se a coisa fosse a sério, ao blasfemo convite da comunhão, para mais untado de Tulicreme, para ter mais graça:

— Corpo de Cristo?

— Amém!

Estranhando o nosso coletivo silêncio e sempre agarrada à saudosa bengala, assim nos foi a avó a todos encontrar…

Dispenso de adiantar conclusões, como a feia descompostura de nossa Tia, ou as bofetadas, ou o castigo de ir detalhar tudo ao senhor padre em confissão (que tapava os lábios e enchia as bochechas coradas, cada vez eu que lhe explicava de novo a ideia do Tulicreme), ou a proibição expressa de mexer no que quer que fosse da tia Alexandrina, de resto a única que não contribuíra até aí (nem mesmo depois daí), com qualquer rebento seu para o nosso vistoso e conhecido grupelho de traquinas…

Dificilmente cabem na nossa memória coisas tão importantes como as que narrei. E passando por elas, tão de leve quanto é possível passar os dedos por velhas folhas de cartapácio, sinto crescer desta saudade uma inexprimível luz de vida e de amor, só possível divisar com a distância e com a adultez. O meu leitor saberá do que falo, não o duvido, e por isso me compreenderá esta alegria triste, de pessoa que olha e não vê, procura e não encontra, e no entanto e no entanto encontra, como numa miragem ou numa alucinação…

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Ingrid, alguma verdade é ainda possível

All i have is this picture in a frame (Rolland Flinta)
Fotografia de Rolland Flinta

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Ao entrar no aeroporto de Arlanda, de regresso a Paris, pude constatar uma vez mais o primoroso sistema de organização de transportes sueco. Em muita da sinalética espacial lê-se a palavra hub, que significa grosso modo coração de uma rede de comunicações, viárias, aéreas, marítimas, mas no caso também digitais, cibernéticas, por satélite. Os suecos, como todos os povos do norte da Europa, viajam muito, viajam depressa, viajam com conforto e dentro dos horários. Nada que me tivesse apanhado de surpresa. Mas sobretudo viajam discretamente, desatentos aos parceiros de banco ou de carruagem. Usam ostensivos e poderosos headphones que lhes concedem o dom do ensimesmamento ou, aos meus olhos talvez, o terrível autismo que é a capacidade de ninguém trocar palavra com ninguém durante, digamos, uma viagem de duas horas…

Quando comentei com Ingrid esta caraterística tão luterana, espantou-se que ficasse muito admirado por “ser assim na Suécia”, porque julgava que era assim em todo o mundo civilizado. E não via nesse individualismo um sinal de frieza, antes de emancipação.

– Desde o período da fome, ou talvez mesmo antes, ninguém se mete na vida de ninguém. Não toleramos sequer a ideia de que alguém se intrometer na nossa vida, ou muito menos que nós nos intrometamos na vida de alguém…

– Mas, e se alguém, por exemplo, precisar de uma palavra amiga?

– Então, deve marcar uma consulta no médico… percebes?

Ocorreu-me que num país como Portugal esta convicção pudesse ser interpretada como um feroz sinal dos tempos modernos, muito distante daqueles dias em que era possível assistir a uma animada conversa entre vizinhas à varanda, ou a um ternurento oaristo junto a um carro de feno. Mas ocorreu-me também que em Lisboa, numa estação de metro, nada é diferente do que acabo de assistir neste país belo e frio.

– Ingrid, sou de uma região onde ainda é possível despoletar um colóquio animado com um perfeito desconhecido, a propósito do tempo que faz, sobre uma notícia lida em voz alta no jornal, ou por causa de um gato que sai disparado do interior de um talho com um pedaço de fiambre na boca…

Ingrid ri, ri com vontade do meu gato sorrateiro afiambrando a sua oportunidade, como um desses vadios que rondam os cais de todas as cidades de mar. Mas presume anacrónica, para não dizer improvável, uma vida urbana capaz de reunir ao mesmo tempo universidades, hospitais, bares, cinemas, teatros ou museus e gente que sem mais nem quê se volta na cadeira de café e pede ao senhor da mesa ao lado para tomar parte num coro de protesto contra o governo ou contra o árbitro de futebol tendencioso…

– Garanto-te que no Norte de Portugal não é nada estranho que duas pessoas, que nunca se viram em toda as suas vidas, nem se conhecem de lado nenhum, possam entabular uma saudável cavaqueira sobre o assunto mais inesperado e mais banal que possas imaginar. Chegarão por certo, e no andamento dessa conversa, a partilhar intimidades…

– Não posso acreditar!

E di-lo num inglês que traduzo mal, porque deveria antes verter num NÃO POSSO  ACREDITAR!

Explico o significado afetivo da palavra cavaqueira, intraduzível como tantas palavras que, retendo alguma semelhança com outras palavras, não significam exatamente o mesmo. E ao detalhá-lo com pormenor, com recurso ao folclore bairrista de uma cidade como Porto, Braga ou Guimarães, dou-me conta da espécie de criaturas proto-históricas com quem me imagina convivendo diariamente esta bela loira de olhos azuis, e que agora me ouve desfiar peripécias da minha terra como extraídas de um alfarrábio das Mil e Uma Noites

– Compreendo que as coisas aqui tenham evoluído tremendamente. Basta ler os contos de Selma Lagerlöf ou de Stig Dagerman, ambos nascidos na província, para percebermos o avanço da secularização na Suécia, da capital para a periferia…

– Secularização?

– Sim, secularização de uma sociedade, que era ainda há pouco mais de um século profundamente dependente da agricultura e das tradições… Olha, ainda não há muito li as memórias de Tomas Tranströmer e ele di-lo exatamente nesses termos…

– Bem, julgo que não teria esta conversa com o Lasse ou com muitas outras pessoas que conheça, João. Embora respeite a tua paixão pelo medievalismo, não creio que a Suécia se tenha propriamente esvaziado de espiritualidade… Ou de religião… Pelo contrário, somos um país cheio de múltiplas crenças em pacífica convivência…

Sim, sim, sim! Agrada-me discutir factos, apreender ideias, pôr à prova a verdade das minhas próprias convicções. Ingrid, uma jovem professora de Malmö em trânsito por várias cidades da Escandinávia, seduz-me profundamente com esse seu perfume de saber nórdico, que sempre se apõe e nunca se impõe, igual a um avô, ou a um amigo, que nos ralha sem jamais levantar a voz. Mas preocupa-me que esta geração de europeus, ofuscados pele denominador comum da americanização (outra forte palavra esgrimida entre nós), não seja capaz de albergar o antigo, o autêntico, o tradicional, nem esteja predisposta a preservá-lo das múltiplas invasões que o ameaçam…

– Falas dos chineses, dos islâmicos, dos indianos ou dos africanos?

– Ingrid, falo somente daquilo que não é capaz de dialogar connosco! Daquilo que invade a Europa e não a respeita!

– Dos chineses, dos islâmicos, dos indianos e dos africanos, portanto?

— Penso que entre eles haverá quem possa significar uma ameaça à Europa, sobretudo os extremistas, como se tem visto! Mas prefiro não designar grupos, porque sabemos que isso é uma questão complexa e provavelmente mal delimitada…

— João (e delicia-me o esforço de ditongar a palavra Joau), existe preconceito e é esse preconceito a verdadeira ameaça àquilo que chamas de “integridade europeia”. Se é que há uma “integridade europeia”.

– Corro o risco de ser mal compreendido…

– Porque o Breivik fez o que um dos teus terroristas não foi capaz, certo?

Sinto-me cansado. Viajamos para o Parque Nacional de Dalby, num Volvo de última geração, devidamente credenciado por uma entidade independente, a quem cabe a responsabilidade de zelar pelo bom funcionamento de um sistema que preconiza a segurança como prioridade absoluta. E, no entanto, sinto que é esta segurança que não deixa ver ameaças ideológicas e, decerto também económicas (que Diabo, como não falar delas, se vivo num país cheio de dívidas), espreitando já dos nichos dos bairros operários das maiores cidades de uma das melhores nações do mundo. Ou começo a duvidar de uma qualquer minha paranoia (e quando digo minha, digo nossa, do sul).

– Admito que precisamos de prestar algum cuidado em relação a grupos de estrangeiros muito específicos… Mas a alma deste país é a tolerância. E a tolerância é uma conquista que não se pode desperdiçar de qualquer maneira… Compreendes?

Compreendo, evidentemente. Mas eu não disse outra coisa, nem penso noutra coisa desde que iniciámos esta curta viagem para sul. Pelo que volto atrás para clarificar, para impedir males-entendidos.

– Sou profunda e sinceramente aberto à convivência com outras culturas, aliás muitas vezes desafiei a minha gente a respeitar a diferença e calar anedotas e comentários racistas… Mas não me sinto tranquilo neste momento, em que pessoas vindas de fora não respeitam as leis estabelecidas por séculos de luta e apuramento ideológico, por constituições soberanas e por sã convivência das suas comunidades.

– Falas, por exemplo, daqueles que obedecem somente à xaria?

– Sim, Ingrid. Esses, por exemplo!

A minha condutora fica pensativa, faz o volante deslizar suavemente ora para a esquerda ora para a direita, acompanhando as curvas e contracurvas de uma estrada decalcada de algum anúncio publicitário. A sensação de conforto contagia, a cada quilómetro percorrido faz-nos desejar pertencer a ela para sempre, como não tivéssemos nascido senão para obtê-la e fruí-la e defendê-la com unhas e dentes. Mas isso porque nasci em Portugal e não na província de Skåne… E ao pensá-lo, enquanto os olhos de Ingrid se concentram na condução, dou-me conta da terrível cortina que principia a remover-se diante os meus próprios olhos. Porque esse conforto que me embriaga, faz-me divisar por momentos a aspiração que, sem dúvida (e outra não podia ser), divide e sempre dividiu todos os povos que existem e existiram sobre a Terra.

– Penso que a posse do conforto demarca insanavelmente aqueles que toleram daqueles que se rebelam e extremam posições…

– Desculpa, amigo, não percebi!

– No fundo no fundo, o que distingue as civilizações é a posse do conforto ou a agonia de ter de lutar por ele. Os que sempre conheceram um conforto, igual por exemplo ao que sinto aqui dentro do teu carro, não precisam de lutar em nome de nada, nem de Deus, nem de uma qualquer ideologia. Porque o conforto é o máximo a que podem aspirar na sua existência humana. Já o encontraram. Ao passo que todos os outros, os que não podem aspirar a mais do que uma desforra divina, ou a uma desforra bélica, ou a uma desforra qualquer, esses nunca poderão transigir com os afortunados. É uma questão tão simples, Ingrid…

– Tão darwiniana, queres tu dizer!

– Exatamente!

Suponho que obtive algum alívio, porque as argumentações improvisadas me deixam sempre prostrado, a meio caminho do que penso e do que gostaria de poder dizer. Mais ou menos como alguém que tivesse penetrado na escuridão de uma mina até meio do seu percurso e não sabe se deve regressar ao princípio, ou se pelo contrário deve avançar até ao fim…

Suponho, também, que no final de cada conversa me fica este desconforto. Um desconforto irritante, porventura análogo ao que sentiram os amantes da ciência após o descrédito das leis deterministas e o advento de Einstein ou Heisenberg. Falo do velho catecismo das minhas convicções, das velhas ideias feitas, que repetidas em voz alta se começam a parecer estúpidas, serôdias e incompreensíveis. E o desconforto é o resultado de duvidarmos agora de tudo.

– Achas-me uma pessoa provinciana, não é verdade, Ingrid?

– Não, amigo. Penso que és uma pessoa atenta. Talvez devêssemos estar mais atentos a tudo o que nos rodeia… seguir-te o exemplo!

– O exemplo?

– Sim. Imitar essa tua atitude inquiridora, ou inconformista!

Fico calado, observando ao largo o Atlântico, o mesmo Atlântico que conheço desde bebé, estranhando quiçá ver-me tão longe de casa. Além, as ruínas de um antigo forte, tão semelhante aos escombros que adornam a costa portuguesa, também ela permeável a milénios de itinerância e invasões. Acontece-me muitas vezes: preciso de tempo para digerir e aceitar o que é ainda provisório, rebelde e novo. Não tão novo que o não devesse ter pensado antes. Ter pensado, por exemplo, nos gloriosos séculos de escravatura infligidos por um império que nos encheu de vaidade e de igrejas. Porque tudo é relativo e cruel, quando visto e pensado à luz soberana de um ângulo diferente… E é como se prova haver entendimentos terrivelmente dissonantes nas nossas palavras.

Ingrid estaciona o carro. Sorri complacente a tudo o que em vinte minutos de caminho se disse e contradisse. Mas já as palavras voam para o limiar do esquecimento. Uma fila de visitantes aguarda a compra do ingresso, famílias inteiras câmaras a tiracolo, disfrutando do sol macio de um verão curto mas vívido e limpo. Penso nos poemas de Lindqvist, nas belas descrições que aqui, agora, se tornam carne na minha própria carne.

Agora, um mês depois, ao entrar no aeroporto de Arlanda, de regresso a Paris, pude constatar uma vez mais o primoroso contraste dos suecos com os outros povos. Seguros da sua segurança, respeitam-na em vez de a defenderem histericamente como os americanos, ou de a contestarem violentamente como os latinos, por exemplo. E tudo isso é uma impressão difícil de articular em pensamento, ou sequer em palavras.

Julgo que passamos a vida a influenciar-nos reciprocamente, sem podermos jamais encontrar o norte magnético de alguma verdade. Se fosse possível existir alguma.

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