O choro dos mortos

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Joe Lenio
Fotografia de Joe Lenio

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Numa pequena povoação entre o Camboja, o Laos e o Vietname, os montanheses têm por costume pendurar no alto das árvores um insólito instrumento constituído por longos emaranhados de fibras atados por tiras de couro e presos a uma espécie de cravelha, que os nativos constroem abrindo orifícios em ossos de tigre ou leopardo ou mesmo viverras, e que emolduram com ripas de figueira ou paineira.

Durante a noite a humidade faz encolher as linhas paralelas e mantém-nas em silêncio. Mas assim que o sol e o vento começam a retesá-las, a floresta enche-se de um choro sobrenatural, que o nevoeiro em dispersão torna ainda mais extraordinário. «São os nossos mortos que partem outra vez» ensinam às crianças.

Os mortos hão regressar com as monções, agora é o tempo dos vivos. Metade do ano para que a memória os guarde fielmente na outra metade que há de vir.

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João Ricardo Lopes, escritor português (escritor de Portugal), escritor fafense (escritor de Fafe), nascido em 1977.

História do Padre Angélico

Vulcão, Kanenori
Fotografia de Kanenori

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Saiu de Fiumicino em direção à Sicília, como faz todos os anos. Entrando no vulcão, cujo cone fez o tempo parcialmente derruir num amontoado de lixo basáltico, põe-se a alisar o solo cinzado e sujo onde, com a ajuda de uma vara, faz perfurações para nelas sepultar bolotas de carvalho vermelho. Lança-lhes um gole de água e persigna-se. Depois é com Deus e com a natureza.

Um ato tão incompreensível pede pelo menos uma explicação excelente.

Num dos seus sonhos de juventude, a pessoa de quem falamos viu-se num bosque primitivo, em cujo chão folhas recortadas brilhavam sob o efeito da lua e onde uma neblina translúcida se mexia a cada passo que dava. Não havia aí ruídos, intrusos, serpentes tentadoras. Via-se, nesse sonho, tão velho que as suas mãos aparentavam o aspeto calcinado de raízes. E tão feliz que não duvidou que o único lugar da terra igual ao de Adão fosse um onde a terra se pudesse reinventar, lavando-se (como num banho de vitriolagem) do bodum humano.

Aos vinte e cinco anos, já depois de ordenado, deixou aqui as primeiras sementes. Agora, no miolo do caldeira adormecida, vão brotando a esmo os miraculosos troncos da sua teimosia. Ou da sua loucura. Decidiu que a localização da choupana fica para mais tarde. Quando as árvores tiverem atingido a altura de um ciclope, virá construí-la, edificar o seu eremitério, provar a modernidade do seu sacrifício.

Onde antes era uma garganta para o inferno, Nosso Senhor quererá outro Éden. Desta vez sem Evas ou répteis. Sem anjos com espadas de fogo.

Um ato tão incompreensível deve ter outra explicação que desconhecemos.

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Questões sobre o riso e sobre o humor

Fotografia de Daniel Nebreda
Fotografia de Daniel Nebreda

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– Há precisamente cinco anos dei uma gargalhada – disse assim de repente, sem mais nem quê, o meu sócio.

– Eu há sete que o não faço – atalhou o meu outro sócio. – Sete anos, cinco meses e vinte quatro dias. Quase sete anos e meio!

Frases como estas aborrecem-me. Nunca sei o que fiz no dia anterior, sucede-me frequentemente o jamais-vu e esqueço-me de datas importantes. O meu gato, por exemplo, completou o terceiro aniversário há mais de 365 dias e só disso me dei conta na passada semana.

Sou péssimo de memória. Frases daquele jaez põem-me os nervos a bulir. Como é possível a alguém recordar-se do dia exato em que tremelicou de riso? Desconfio que os meus sócios se unam às vezes para me prejudicar, também que se prejudiquem muitas vezes, sem se unirem um ao outro ou a mim, que dificilmente me uno a quem quer que seja.

Gustavo, o meu parceiro número um, objetou.

– É muito fácil e facílimo. Dei essa gargalhada por volta das dez e um quarto no dia dezasseis de julho de mil novecentos e oitenta e oito, quando da rua dos Hoteleiros me dirigia para a do Arsenal, no cruzamento com a rua da Boavista. Vi a minha ex-mulher a cambalear de bêbeda. Penso que o amante se tinha aborrecido dela. É ou não engraçadíssimo apanhar a ex meio despenteada, seminua, aos esses, hem?

Venâncio, o número dois, confiscou-me a palavra.

– Ora. Eu não vejo qualquer problema em trazer na cabeça uma lembrança dessas. É uma como as outras. Um tipo fixa as coisas numa ordem de importância. Se o teu inimigo te quer matar com uma bomba e o embrulho lhe explode nas mãos antes do envio, tu ris-te com gosto, ou não? E há uma lápide num cemitério à espera que lhe deponhas ao pé uma rosasita. Assim nunca te foge o sentido das coisas…

Estas conversas a três lá no escritório dão-me arrepios.

Não posso afirmar que saiba a data recente em que casquinei, esgargalhei, ri a bandeiras despregadas. Ou o secreto e escarninho motivo por que o fiz. Sou daquelas pequenas almas que escancaram a boca a humor fácil de uma anedota inocente ou com as facécias do gato caseiro que nos surripia esforçadamente um bocado de carne do prato.

Não consigo escarnecer, confesso, da voz roufenha do Venâncio, nem das carranhas que o número um conserva, infantilmente e amiúde, nas fossas nasais. Suponho que os meus sócios saibam mais do que pode o riso do que eu.

Não atino com as circunstâncias exatas da minha última gargalhada. Como é possível?

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Oblívio

old woman, Marnix Detollenaere
Fotografia de Marnix Detollenaere

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Sobre a cómoda ficaram a caixa de madrepérola com os medicamentos por tomar, a pagela da Sagrada Família, os sobrescritos fechados com as contas, o branco sujo do pó. Cristo continua pregado na cruz, o coração em sangue de Maria continua pingativo, o Santo António não se alterou, não se cansou, não cedeu um milímetro com Jesus no braço. Do mármore, a todo o cumprimento dele, perpendicularmente, sobe a lâmina emoldurada do espelho. A idosa olha-se, detém-se, escava com os olhos a pessoa que diante de si responde sem perguntar, inquire sem replicar.

Depois de muito tempo é-se outra vida. Na beira da cama o corpo equilibra-se mal.

Quando se regressa a casa, vozes há que voam desordenadas na concha do ouvido. Não se preocupe, minha senhora, tudo se resolverá. Precisa de alimentar-se, compreendeu? O seu filho não voltará a pôr-lhe as mãos em cima, dou-lhe a minha palavra de honra. Há vozes, mas tão opacas como o olhar através do nevoeiro, como o vidro onde o pó lentamente acamou, como o pequeno quarto às escuras que espera do seu inquilino eterno uma explicação, uma fresta de luz, um sinal de que não morreu.

O que dói não é o velho corpo macerado. O que dói é esse não poder não doer, essa dor infiltrada em tudo o que é nervo, espírito, amor de mãe ofendida.

São horas de fazer alguma coisa na cozinha.

O que terá restado no miserável frigorífico ferruginoso, nas velhas estantes dos armários, nas bolorentas fruteiras quase vazias? É preciso limpar a casa, obrigar os músculos a um derradeiro sacrifício, impor uma ordem à existência cansada. Olha-se ainda, sem palavras, sem ruído, sem compaixão ou ódio, sem tristeza ou saudade. É-se alguém preso a um corpo e um corpo preso ao tempo, como um resto de sabão que se deixa esquecido num tanque. Como um tanque de água estagnada e podre. Como um tanque vazio. Como um tanque meio desmantelado, onde em tantas tardes e noites e manhãs se lavou o rosto.

No princípio é o verbo, no fim é-se um verme. A anciã segura nas mãos a fotografia que lhe tiraram há muito, com o marido e o filho. Não sabe quem sejam os três que ali se juntam, nem que acaso os juntou.

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Mar

Fotografia de Janet Swanson

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Ponho o mar à minha frente e decido um grande silêncio. Não há maior bem do que calar todas as ressonâncias de que o vento é capaz na nossa boca e por dentro dos nossos olhos e nos confins da cabeça. Elidir um a um todos os sepultuosos ruídos em que morremos quando proferimos alguma palavra, esmaecer até ao nada uma atrás de outra todas as imagens que nos governam desde a infância, apagar o poder das teias cerebrais como quem se enlouquece com uma tesoura entre os dedos. O mar vem aos poucos, apodera-se dos rochedos em agulha e do cheiro seco do areal, transpõe a pérgula e a linha dos metrosíderos, coabita o espaço e o tempo que é, sem que o entendamos completamente como, um adormecimento, uma fragilidade, a própria ideia de deus soprando de novo nas impérvias narinas de Adão.

Só assim renasço. Só assim, atingindo a chã existência de mim mesmo, vergando-me até rastejar e ser argila e cair – repito – no grande silêncio de uma morte. É preciso morrer. Ponho o mar à minha frente e morro. Muitas vezes morri nesta vida. Foram deus e o mar, a mistura de ambos, o sopro que num é o outro, sei lá, foram deus e o mar quem me trouxe de volta muitas vezes – repito – nesta vida.

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Obrigado!

Céu e João Ricardo
Foto de arquivo pessoal (2022)

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Mesmo que ao cair do dia, mesmo que moído pelo grande cansaço das pequenas rotinas mortíferas, mesmo que de modo um tanto atabalhoado, mesmo que pedindo ajuda a Ástor Piazzolla (a quem sempre devi tanta poesia), mesmo que incorrendo no risco da estapafurdice, mesmo que e mesmo que, venho aqui dizer-te, Céu, que não esqueci a data aparafusada ao espaço que hoje marca o calendário: desde 1 de setembro de 2018 passaram os anos bastantes para tão bem nos conhecermos e nos desafiarmos mutuamente a amar. Se a alguém é possível reconhecer o abençoado encontro com a vida, é a mim que compete falar: sou um homem feliz, um homem consciente da sorte que me coube em sorte, um homem afagado pelo muito afeto e pela insuperável cumplicidade dos teus gestos e das tuas palavras. Devo-te um empenho maravilhoso, um companheirismo inexcedível, uma amizade e uma presença indestrutíveis. Cinco anos não é muito, mas é mais do que todos os anos que gastei vivendo-os sozinho ou sofrivelmente acompanhado. Devo-te muito, creio até que nem sempre disso me dando conta. Se, ainda que tardiamente, e cansado, e embrulhado em frases toscas, e ouvindo Piazzolla, me é possível escrever uma só palavra, quero nela inteirar todo o meu carinho por ti e a profunda estima que te tenho: OBRIGADO!

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Via-se bem

Mulher idosa, por Panfil Pirvulescu.
Fotografia de Panfil Pirvulescu

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A velha, via-se bem, lacrimejava. Não havia meio de acender o fogão maldito. Já por duas vezes os dedos trémulos haviam precisado de imiscuir-se no buraco do serrim e de retirá-lo aos bocados. Recolocou o bastão numa das bocas e pela terceira vez, via-se bem que com irritação, pôs-se a peneirar a serradura para o seu interior. Depois com o cabo da foice começou a comprimir as aparas lentamente no espaço em volta. Vinha-lhe à cabeça a história do aerograma: que dor tão funda para aquela família! Retirou o bastão com cuidado, de modo a aguentar o espaço aberto no miolo do serrim e de seguida lançou pelo largo orifício um bocado de papel a arder. Era uma tarde inusualmente fria, não se recordava de um julho assim. Curvou-se mais um pouco e recomeçou a soprar. Fazer deflagrar a chama exigia perícia, paciência, temperança. A velha não tinha filhos, mas não os ter tido não significava que não se doesse da dor dos outros. De dentro do tubo mole das aparas começou a crescer uma língua de fogo. Dentro da cozinha às escuras, o fumo rodava, entretanto, mais espesso, mais azul, mais implacável. Fazia arder os olhos. A velha, via-se bem, chorava.

Os rapazes iam para África a mando do governo. Iam e às vezes não voltavam. Como se governavam lá não o sabia a velha, que fora sempre apenas senhora do seu mundo, enterrada desde a infância nos campos e nos montes, nas singelas coisas das pessoas simples. O filho da Aninhas foi dos tais: levaram-no de pé e trouxeram-no dentro de um caixão selado com chumbo. Uma mulher, ainda que velha e solteira, dói-se dos destinos funestos dos outros. Na solidão da cozinha podia soltar as lágrimas, ainda que lágrimas dolorosamente paridas no silêncio lágrimas e talvez estéreis. Sobre as bocas do fogão colocou as grelhas e sobre as grelhas as pequenas panelas enegrentadas. África é longe, a infância é longínqua, a morte é ainda mais distante, ainda mais intransponível. Pobre rapaz!

À hora habitual, a moça subiu o lanço de escadas e deu a fala acostumada.

– A bênção, madrinha!

– Oh, filha, Deus te abençoe!

– Venho da casa da Soledade. Venho parva…

– O que foi?

– Não sabe o que aconteceu ao Sê Pereira e à Aninhas?

– Já soube, filha. Já soube…

– Chegou um aerograma da Guiné, do Torcato.

– Já sei, filha. Já sei…

A velha regressou ao bolso do avental. Limpou o canto dos olhos com o mesmo pedaço de tecido esquálido onde se assoou a seguir. Seria um daqueles gestos mecânicos que repetimos sem pensar. Depois serviu-se de uma bacia com as batatas e a cenoura que descascou com uma tristeza doente. Que espinho para uma família receber um aerograma do Ultramar um mês depois de fazer o funeral ao filho que o enviou!

– Acho que foi para uma gritaria ontem à noite. Coitados…

A velha soergue o rosto sem dizer nada.

– O Torcato mandava dizer que estava bem, que graças a Deus já pouco faltava para acabar a comissão… que neste Natal já cá estaria para casar com a Rosalina e começar a construir a casa…

Lá atrás, num dia de nevoeiro, uma mulher bastante jovem vê-se engolida pelo desespero. Uma outra, mais adulta, sopra sobre um pedaço de pedra, onde o serrim teima em não arder. «Tudo se há de arranjar, tem calma rapariga.» O fumo circula como uma cortina ofensiva, dá volta às paredes mascarradas de uma cozinha onde o mais belo fruto da vida está guardado, envolto num cobertorzinho macio. «Tem calma, rapariga. Tudo se há de arranjar. Essa criança terá um pai e uma mãe e tu terás uma vida pela frente.» «Como será isso?» «Confia em mim. Se vais para a França, deixa-a a comigo. Tudo se há de arranjar.» «Vossemecê o que fará com o menino? Cria-o por mim?» «Não te aflijas. Nosso Senhor pensa em tudo, ele há de ter pai, mãe e casa.»

– Ai, madrinha. Uma pessoa fica maluca. A Aninhas queria tanto que o marido livrasse o Torcato da tropa… Dinheiro não lhes falta, nunca faltou.

– Sabe Deus o quanto ele tentou.

– Olhe que não é o que se diz por aí…

– O povo o que sabe? O povo fala com peçonha, que é para isso que o povo serve.

– Oh, madrinha. Se ele quisesse… O moço ainda agora estava vivo!

– Cala-te, rapariga! Não sabes da missa a metade… O Pereira bem quis untar os beiços a muita gente, mas os do governo não deixaram…

A noite demorava. A velha retirava de outra bacia as folhas carnudas da troncha para as inspecionar. As palavras, via-se bem, saíam-lhe penosas, amaras, pesadas. O nariz, via-se bem, pingava. Os olhos, via-se bem, pareciam pedrinhas em brasa. Uma devastação nova caía ali, como um pesadelo renascido. Talvez dissesse à rapariga para meter um punhado de caruma e uma pinha na lareira e umas achas e um toro. Não se lembrava de uma tarde de julho assim tão fria.

Dentro da sua cozinha, apenas alumiada pelas duas bocas do fogão rudimentar, sentia-se fulminada por uma estranha traição. Vinham-lhe sempre à cabeça o aerograma, as esperanças do rapaz, as malditas quelíceras da guerra, os homens do governo que arrancavam filhos às famílias para os lançar na imensa África dos caixões numerados e chumbados. A velha, via-se bem, secava a amargura. Era preciso, em todo o caso, suportar a vontade de Nosso Senhor, fazer o caldo, sobreviver.

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