Quando os eternos nos morrem

Herberto Helder (Alfredo Cunha)
Fotografia de Alfredo Cunha

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«A morte – diz o canto – é o amor enorme.» Herberto Helder tinha 33 anos quando publicou este verso (em Poemacto) e é irónico que essa mesma morte, ou outra morte qualquer, tenha finalmente levado um tal poeta. Essa mesma morte, ou outra morte qualquer, foi anunciada quatro dias mais tarde a Tomas Tranströmer ‒ se é possível que um poeta morra! Fica-me de memória esta sua meditação de 1983, deixada no poema «Bilhete-Postal Negro»: «Acontece, a meio da vida, a morte bater-nos à porta / e tomar-nos as medidas. Essa visita é esquecida, / e a vida continua. O fato, porém, esse / é cosido em silêncio.» (cito a tradução de Alexandre Pastor).

Quis o destino que assim fosse. Que se falasse de morte, no sentido puro que a morte pode ter, na estação em que a paisagem se enche com o branco imaculado das magnólias, com o matizado azul do agapanto, com o vermelho da amarílis, com os salpicos da serralha e das pascoinhas, com o verde da hortelã e do funcho, com o amarelo veemente do tojo. O espaço é enxuto, luminoso, celebrante. E, contudo, a morte anda-nos na boca.

É sabido o modo como Herberto Helder (nascido no Funchal, em novembro de 1930) e Tomas Tranströmer (nascido em Estocolmo, a 15 de abril de 1931) viveram discretamente, distanciados de certo ruído que lhes obscurecesse a visão do mundo, fiéis à servidão da metáfora com que definiram tão profundamente o ethos e o pathos humanos. Como tão bem notou Pessoa/ Ricardo Reis, «Cada um cumpre o destino que lhe cumpre», e eles, Herberto e Tomas, cumpriram-no, na certeza, na convicção inabalável de que a poesia fosse esse destino.

Dir-se-ia inevitável o conhecimento destes dois poetas. A muitos de nós, leitores-admiradores do seu (diferentíssimo) espaço criativo, tal encontro deu-se no universitário, em curtas seletas e traduções extraídas do Jornal de Letras, em edições muito folheadas e quase sempre sublinhadas por frenéticos lápis de discípulo. De Herberto havia a Poesia Toda, milagre de edição de que nunca consegui um exemplar! De Tomas Tranströmer havia pouca coisa. Inesquecível, porém, o contacto com a pequena recolha que nos era dada em Vinte e Um Poetas Suecos, de que fiz nessa altura, criminosamente, uma edição policopiada. Beleza plástica e contenção lírica, expressão do pormenor, domínio do inefável, brevidade e sentido de humor, eis como me chegou a poesia do psicólogo Tranströmer.

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AQUELE QUE ACORDOU COM O CANTO SOBRE OS TELHADOS

Manhã, chuva de Maio. A cidade está calma
como uma cabana. Ruas tranquilas. No céu
troa azul-verde um motor de avião ‒ a janela está aberta.
O sonho onde se dorme de membros estendidos
torna-se transparente. Move-se, tateia
pelos instrumentos da visão ‒ quase no espaço.

(Tradução de Teresa Salema, Vega)

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Não me recordo do primeiro poema que li de Herberto Helder. Lembro-me do estremecimento provocado pelo poema que principiava pelos versos «São claras as crianças como candeias sem vento, / seu coração quebra o mundo cegamente. / E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema, / pelo terror dos dias, quando / em sua alma os parques são maiores e as águas turvas param / junto à eternidade.» (sexto andamento do poema «Elegia Múltipla» de A Colher na Boca). Com fervor quase religioso, como tomado pela mesma devoção com que leem alguns os seus guias místicos, fiz-me acompanhar na última década pelo volume precioso Ou O Poema Contínuo. Li-o integralmente vezes incontáveis, certo de que vive ali o génio e o sortilégio do melhor que se escreveu em língua portuguesa em toda a sua já vasta história.

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Lenha ‒ e a extracção de pequenas astros,
áscuas. De poro a poro,
os electrões das corolas. Somente no mais escuro
não há nada. No escuro a carne é um buraco
invisual, e o que arde é o pão
no estômago, e nos brônquios
cortadamente
o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência
das imagens. O que toca o órgão mais profundo
do sopro não é a música
nem chama: apenas um dedo de mármore entre
as têmporas como
uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam
a boca, morremos afogados
no espelho, no rosto. E se a loucura um instante
levanta as pálpebras.
A grande válvula do corpo.
A escuridão, a terra.

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Tomas Tranströmer (Ulla Montan)
Fotografia de Ulla Montan

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No verão de 2012 senti um fervor idêntico, quando principiei a ler os Cinquenta Poemas de Tranströmer editados pela Relógio d’Água. Não há na poesia do sueco o ritmo torrencial, encantatório, melódico dos versos de Herberto. Há, ainda assim, a mesma subtileza dos silogismos, o poder da imagem, a afirmação da palavra poética num mundo dolorosa, progressivamente mais prosaico. Há a beleza escultural, marmórea, luminosa de verdades que, não raro nos escapam, e que representam o privilégio da revelação e da sensibilidade poéticas.

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FURACÃO ISLANDÊS

Não um terramoto, mas um sismo celeste. Turner, bem amarrado, podia ter pintado aquilo. Ainda há pouco, uma luva solitária passou por mim redemoinhando a muitos quilómetros de distância da sua mão. Lutando contra o vento, tenho de chegar à casa que está do outro lado do campo. Como uma bandeira, adejo no furacão. Sou radiografado, o esqueleto entrega o seu pedido de demissão. O pânico aumenta enquanto avanço aos ziguezagues, vou a pique, vou a pique, acabarei por me afogar em terra firme. Que pesado se torna tudo o que tenho de arrastar, o que será para uma borboleta rebocar um batelão! Chego, por fim, ao destino. Um último combate com a porta. Já entrei, já entrei! Agora estou atrás da enorme janela envidraçada. Que estranha e fantástica invenção não é o vidro ‒ estar tão perto e não ser afetado… Lá fora, em debandada pelo campo de lava, uma horda de corredores, vestes insufladas, gigantes e transparentes. Mas eu já não esvoaço. Sentado atrás do vidro, quieto, sou o meu próprio retrato.

(Tradução de Alexandre Pastor, Relógio d’ Água)

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É quase manhã quando escrevo estas palavras. O trissar das andorinhas e dos estorninhos enche o espaço. Penso com o espanto de um mortal na complexa roda do tempo. Nos poetas que nos morrem e no quanto lhes devemos. No que dever significa e talvez nem saibamos. Na imprecisão com que se diz morreu o poeta Herberto Helder. Na devastação de se pensar que o poeta Tomas Tranströmer desapareceu. Porque um e outro deixaram seguidores, vagos epígonos, amantes, sementes e metáforas, luz. E talvez pudesse confessar o quanto um e outro trouxeram para dentro do meu coração por vezes despedaçado e maltratado. Ou talvez devesse explicar que a poesia de um e de outro enche uma pequena parte das minhas estantes de poesia, aonde regresso amiúde, como quem pretende converter-se a uma melhor humanidade. Ou talvez pense (pensando melhor) que talvez os poetas morram mesmo e que a morte de um poeta seja talvez a morte lenta da própria humanidade. Talvez pense que afinal não são tantos assim os que se importam e os que têm estantes de poesia em casa. Talvez pense que poucos serão os que regressam a certos livros de poesia como quem regressa a uma fé, ou a uma cela, ou a um certo silêncio impermeável. Talvez a humanidade tenha, finalmente, deixado os seus poetas morrer. E queira morrer com eles e sem eles, numa infinita e incapaz solidão.

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Cheiros

Philippe Gillotte
Fotografia de Philippe Gillotte

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Algures no rinencéfalo, guardadas como numa gaveta secreta, os cheiros da minha vida. O do café, dos sabonetes, das flores de laranjeira e das tílias, do tojo, o cheiro fresco das folhagens de uma figueira, o cheiro da roupa acabada de apanhar do estendal (perfumando o espaço com o seu sabão Clarim), o cheiro das amêndoas torradas, o cheiro dos bolos de laranja no forno, o cheiro do pão acabado de cozer, o cheiro das maçãs no pomar, da hortelã e do funcho e da murta e da relva acabada de cortar nas manhãs de verão, o cheiro da praia, da maresia, das algas, das areias, das dunas, dos orégãos, o cheiro dos frutos maduros, das uvas americanas, o cheiro da lenha, do fumo das pinhas acesas, o cheiro dos livros (dos novos, forte, a celulose; dos antigos, adocicado e morno, como a luz do outono), o cheiro dos objetos revestidos a couro, da pele dos bebés, o cheiro da tinta que usa num aparo, o cheiro de alguém que nos faz tremer as mãos, o cheiro do amor… 

Algures numa parte de mim, alojada como um pinhão na sua casca pura, ajoelhada na terra, bulindo nas raízes dalguma árvore da quinta, a memória da vida respira em longos sorvos poéticos a harmonia da vida. Desde criança que assim sou. 

Não raro, espanto a assistência: 

‒ Hoje cheira a Natal. 

‒ A Natal? 

E eu precipito-me na vã tentativa de explicar que os elementos circulam livremente no espaço, ínfimas moléculas de algo físico misturado com a minha própria mitologia das coisas. Talvez seja um sintoma de hiperosmia. Talvez seja apenas a minha costela de aldeão. Talvez seja apenas a sensível loucura de preferir os elementos isolados na sua alegre individualidade. Porque o cheiro de cada coisa é um hino ao universo diferente de todos os hinos de todas as outras coisas. Porque a resposta do hipocampo de cada um de nós é uma resposta e um apelo e uma mensagem: os cheiros que amamos são a parte do universo que nos torna felizes! 

E assim, sou feliz quando a minha caneta rescende. Quando o vinho tinge as toalhas de mesa num almoço de família. Quando um cigarro (ou um charuto) selam uma jantarada de amigos. Sou feliz quando uma essência, uma especiaria, um aroma de baunilha ou de lavanda ou de bergamota invocam velhas memórias de infância e benfazem e bem-dispõem e abençoam uma noite de solidão, ao lado de um tronco de oliveira na salamandra. Ou quando acaricio e beijo e sinto o teu corpo nu, por onde escorre subtil e macio como um pensamento, a fragrância selvagem de uma ilha do Pacífico. Ou quando, de manhã, o mesmo corpo (agora casto e quieto e mole como uma cócega) me absorve os últimos farrapos de sono e comigo se abandona a uma massagem quente óleo de jojoba. Sou feliz quando abro as janelas e uma euforia de magnólias e de ervas e terra enxuta vem limpar-me dos inexatos desesperos do inverno. Sou feliz, enfim, quando nalguma parte da etmoide, escassa como uma célula, breve como um impulso nervoso, o meu ser roubou ao vasto universo uma semelhança, um reconhecimento, um rasto da sua existência passada e futura. Algo como o cheiro dos lápis de cera. Algo como o odor do cabedal de um blusão ou de uma saia. Algo como o hálito fresco a menta. Algo como um travo de canela sobre um pastel da nata ou sobre uma taça de leite-creme… 

‒ Hoje cheira a Natal? 

‒ A Natal? 

E a audiência sorri, condoída desta doença de não reconhecer o tempo, de haver no meu olfato um erro de cálculo, de existir algo natalício numa noite de fins de setembro, quando a vaga formação de cristais de gelo me conduz por uma estrada pessoalíssima, de onde as memórias saltam como pólenes misteriosos. Porque no meu cérebro o Natal, mais do que um tempo ou um lugar, é um estado de alma! Uma espécie de labareda que as narinas instigam e insuflam. Uma teia poderosa de alusões, associações e induções, a que não sei responder senão deste modo simples e equívoco: 

‒ Hoje cheira a Natal. 

E não espero que compreendam. 

‒ A Natal? 

Porque os cheiros são, com ou sem fogo poético, estados de alma. Puros estados de alma! Todos o sabemos desde sempre, mesmo porventura não o sabendo… E, por isso, gosto deste aroma de pipocas, deste chocolate quente, desta vertigem de essências na perfumaria, desta fricção de roupas lavadas e expostas nas lojas, do ar frio à saída que nos acomete, de mistura com uma presença húmida, aparentada com o musgo ou o iodo do mar, e que é a respiração da chuva. E, por isso, ébrio dos cheiros da rua, gosto de caminhar por entre os charcos, invadido à uma por vagos rumores de bolbos submersos e plátanos molhados, padarias em laboração, essências selvagens de mulheres e homens transeuntes, anónimos, desconhecidos, à procura do seu ninho de felicidade… Estados de alma, portanto: com ou sem fogo poético, puros estados de alma… Não lhes parece?

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Gosto de conversar contigo

Frank Decker
Fotografia de Frank Decker

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Gosto de conversar contigo. Gosto da tua voz, que é meiga e cheia. Gosto dos teus olhos, caindo e recaindo sobre os meus, tão devagar como duas pedras em câmara lenta. Gosto das tuas palavras. Do teu perfume. Do modo como apanhas o cabelo e penteias as farripas tresmalhadas. Às vezes nem te oiço. Sinto apenas a percussão doce das frases a massajar-me a cabeça. E (nunca to disse) apetece-me mergulhar no teu colo, deixar que me embales, adormecer a teu lado.

A vida é tão igual a si própria. Somos todos tão escravos dela! Tão incapazes de sentir. Como se pudéssemos ter dentro de nós cabos e fios e fusíveis, em vez de sentimentos. E, por isso, um dia disse isto.

– Um dia acabamos morrendo sem termos sequer começado a viver!

E tu sorriste. Era um dia de final de outono. E tu passaste a mão pelos cabelos. Era uma daquelas tardes em que o nevoeiro parece chegar de longe e atravessar a janela e engolir tudo em nós e ao redor de nós. E tu disseste. 

– Acho que tens andado distraído, Xavier! Tens mesmo de abrir os olhos… 

E o nevoeiro vinha de longe, de fora, do fundo. Passava pela janela como um exército marchando, como uma boca devorando a paisagem, como um buraco absorvendo os pensamentos. E eu senti-me tão mole, tão aluído, tão triste que não encontrei palavras e foram elas que se disseram sozinhas. 

– Não ando distraído. Já não consigo é distrair-me. Já vivi tudo. Já sei tudo. Já adivinho tudo. A vida é a porra de uma repetição! Nem um milagre me podia salvar agora. 

E tu sorriste. E o teu sorriso era um astro frio, alumiando a anos-luz. Tocaste-me o rosto, deixaste os olhos cair, soar no imo do poço, afagaste-me o cabelo, meneaste a cabeça, disseste. 

– Estás doente. Precisas de curar-te. Essa tristeza é uma sombra maldita, a pesar toneladas de um peso morto e sem justificação. És tão bonito, pá! E tão infeliz! 

E eu sinto. Não tenho medo de sentir. De experimentar de uma ponta à outra os impulsos elétricos do medo e da surpresa e da desilusão. Nada receio. É como uma vertigem. É como fechar os olhos e ir. Já vivi tanto. E, no entanto, os teus olhos poisaram em mim e puxaram-me. Como um magnetismo sem explicação, eles alavancaram os meus olhos, fizeram-me agarrar uma réstia de luz e caminhar. 

– Gosto de conversar contigo! 

E o teu abraço é desde então uma casa. Nunca na vida tive tanto medo. O teu abraço apertado faz-me sentir desde então uma criança renascente. E eu sinto uma mistura de tortura e de prazer quando me tocas e o teu perfume e a tua voz e os teus olhos aquecem as minhas tardes enevoadas. 

– Tens de abrir esses olhinhos! 

E dou comigo a pensar nos teus cabelos. E a ouvir pela primeira vez as tuas palavras antigas. E a sair de um túnel terrível. E a escutar outra vez o silêncio das ervas e o rumor das coisas que havia esquecido nos meus olhos. E dou pela paisagem descobrindo-se, desembaciando-se, desimpedindo-se. E talvez me apeteça dizer-te palavras novas, enxutas, belas como grãos de cereal e puras como o toque das unhas na pele, como as tuas mãos finas e firmes. 

– Não ando distraído!

E tu, abraçando-me, acalentando-me como um sol inesperadamente crescido entre as nuvens, tu beijando-me como um milagre, tu sorrindo como um vidro amplo e sem mácula, completas a última frase. Que trago comigo. Que levarei comigo.

– És tão bonito, pá!

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Diga-me você, meu caro!

Andre du Plessis
Fotografia de Andre du Plessis

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Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, eu desempregado, tu no lar de idosos. Aquela frase soou. Certeira e inesquecível como uma reprimenda.

‒ A ruína é sempre mais feia do que bonita, não lhe parece?

Eu desempregado, tu segurando uma bengala, de pé, com olhos trocistas. Em volta um armazém de corpos tremelicantes e babosos, corpos esquecidos retomando às vezes numa grita desenfreada o caminho das dores e da frustração.

‒ Que lhe parece esta velharia toda?

Eu desempregado, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Eu sem voz, aquecendo as mãos desamparadas de um avô a quem o Alzheimer veio furtar os últimos farrapos de lucidez. Eu acabrunhado, aturdido, com a alma pesando-me na alma, como um cacho de melancolia. Eu atrozmente perseguido pelo inverno de uma ponta à outra ponta das paredes. Eu desejoso de me tornar numa centopeia e de poder esgueirar-me por uma fresta. Eu desempregado, em fuga. E tu quieto, vertical como uma âncora suspensa. Em proa. Agudo como um discurso da consciência.

‒ Já viu bem a miséria que nos espera?

Foi por esta altura que nos conhecemos. Que cruzámos palavras. Que estreitámos a distância. Que aprendemos o preço da amizade. Essa que nos obriga a mentir e a falar verdade e a mentir como só na verdade se mente.

‒ Nem tudo na velhice é forçosamente mau, não acha?

Tu muito sereno. Tu muito contido. Tu muito senhor das palavras que, ditas no momento exato, ficam gravadas para sempre. Tu com um sorriso enigmático, quase de mofa, quase de simpatia, quase feliz, quase pungente.

‒ O senhor parece tão bem disposto!

E as velhotas guinchando, chorando, batendo palmas num estertor de loucura. E os velhos, com os coturnos calçados, com o fio de baba, com a lágrima ao canto do olho, enquanto as funcionárias, sempre com voz estridente, sempre fingindo euforia, vinham meter-lhes a sopa na boca, rapar os iogurtes, acomodar-lhes os travesseiros.

‒ Tem aqui tantos amigos!

E tu sem resposta. Tu mordendo o lábio, cheio de intenção. As sobrancelhas franzindo, aconchegando um pensamento satírico, com vontade de me mandar à merda. Tu incapaz de acreditar na piedade voluntariosa. Tu sereno e belo como um mestre grego. Aproximando-te. Mastigando a verdade. Pondo-me a mão no ombro.

‒ Um dia saberá distinguir tão bem a vida da morte, que lhe parecerá insuportável o tempo perdido…

‒ Como assim?

‒  Lá chegará! Lá chegará…

E eu desempregado, à procura de um norte. E tu desprotegido, à espera do fim. Um de cada lado, agarrados à mesma visão, como as duas serpentes entrelaçadas de um caduceu.

‒ Vejo que é bom rapaz. Pena é não ser lá muito esperto…

Foi, sem dúvida, por esta altura. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, embaciando-as, fechando-as numa estranha obscuridade de cinzas e pó. Eu asfixiando, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Tu aos ziguezagues, atravessando um corredor, saindo para o quarto.

‒ Ou talvez seja mais esperto do que parece… E me julgue tolo!

Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro cobrindo os ossos. As horas caindo na penumbra depressa de mais. A noite caminhando como uma sombra gigante sobre os olhos. Foi assim que nos tornámos íntimos. Cheios de retórica. Irmanados pelo mesmo parágrafo de tristeza e de amor. E nunca pude responder-te. Nem agora que morreste e te levam baloiçando, fechado num enigma de mogno, com a cruz ao cimo, feia e sinistra, brilhando, prometendo a eternidade…

‒ Não é feliz aqui?

Eu desempregado. Tu calado, voltando-me uma última vez o rosto, com aquela última frase na ponta da língua, como a despedir, como a dizer, como a perguntar.

‒ Diga-me você, meu caro: o que é a felicidade?

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O senhor administrador

Adalena - typist
Fotografia de Adalena

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«Não suporto gente desprovida de talento» repetia o Sr. Administrador. Aquelas tempestades porta adentro metiam medo. Éramos todas raparigas engraçadas, escolhidas a dedo. Todas recrutadas nas melhores escolas industriais da região, política da empresa, bonitas, muito asseadas, com o curso feito. Um orgulho. O Senhor Administrador, com aquele ar severo, até se esquecia de dizer «Bom dia». Entrava e era o pânico!

Lembro-me bem. Exigente, coca-bichinhos, sempre a catar o erro ortográfico, o acento a menos, a vírgula a mais, muito perfumado (colónia 4711, explicava a Genoveva, que nessas coisas sabia mais do que as outras!), sempre muito autoritário… O perfume invadia as mesas alinhadas, fazia ricochete nas teclas e nos carretos, atingia as folhas dactilografadas. Mesmo nas nossas costas, nós víamos o Sr. Administrador da cabeça aos pés, altivo, louro, com os óculos de osso, olhos azuis, lindos de morrer, o rosto impecavelmente escanhoado, o casaco escuro, com o monograma dourado, os sapatos de pele. Tão novo, o Sr. Administrador. Tão adulto. E nós temíamos-lhe as entradas de rompante na Secretaria. Adorávamos que entrasse.

Nós, raparigas escolhidas a dedo. Tão indefesas. Prestes a quebrar. Aquele perfume do punha-nos a cabeça a andar à roda! Aquela voz autoritária, sem se exaltar, aquele sotaque estrangeiro, arrastando os erres, «Não suporrrto gente desprrrovida de talento». E nós cheias de susto. Nós muito felizes, sempre à espera que o Sr. Administrador entrasse. E nos olhasse olhos nos olhos. E nos bafejasse com o hálito fresco da pasta medicinal. E nos dissesse «Isto precisa de ser retificado!» Ah, aquele sotaque ficava no ouvido: «Prrrecisa de prrrestar mais atenção, Alzirrra!»

Eu queria ser atriz. Mas não pude. Queria ter sido escritora. Mas não me deixaram. Nem professora. Nem hospedeira da TAP. De modo que dei por mim a chorar no princípio. Mas depois habituei-me. Depois gostei um pouco mais. Trabalhar na empresa era uma espécie de passaporte. Abria-se portas com o cartão, a fotografia, o número mecanográfico, a assinatura maravilhosamente caligrafada do Sr. Administrador no cartão: Hans Emanuel von Rosenstock! Ia-se ao médico e havia um aceno de aprovação. Ia-se a tribunal e havia uma vénia respeitosa. Na paróquia, ao fim de semana, davam-me passagem. A empresa era um mundo à parte. O Sr. Administrador, como todos os alemães da sua família, tinha muita aceitação. E nós, que o detestávamos a princípio, começámos a gostar do Sr. Administrador. Algumas de nós, quer dizer praticamente todas, ou seja todas, tínhamos aquela fantasia das meninas. Sonhávamos em segredo, sem mostrar a pegada.

O meu pai queria-me para o Ricardo. O meu foi engenheiro na FRINIL antes de se reformar. E o Ricardo, que era engenheiro também, ficou no lugar do meu pai. Bom rapaz. Vinha lá a casa, trazia doces, trazia flores, gostava de conversar com o velhote, de o consultar, de beber aguardente, café e chocolate Toddy. O Ricardo era segundo a minha mãe «O melhor de dois mundos». Bonito, elegante, nunca dizia palavrões, era do Sporting, não se metia na política, ganhava bem…

Mas a Genoveva confessou-me que o Sr. Administrador gostava de uma de nós. Como o sabia ela? Fácil: a Genoveva sabia sempre tudo! Aquela amiga do Barreiro, que lia as cartas, dava-lhe todo o tipo de informações. Além disso, a Genoveva tinha amigas nas duas margens e pelo país fora. Havia sempre uma que a ajudava a resolver um problema. Se era por causa de um negócio, ligava «àquela que trabalhou no gabinete do Doutor Teixeira Pinto». Se precisava de uma consulta de otorrino, lá seguia com o dedo o número apontado na agenda. Se era um ajuste de contas, telefonava a uma amiga que conhecia um amigo que mexia os cordelinhos na Polícia Internacional. E eu admirava e temia a Genoveva, sempre tão expedita!

Pois a Genoveva garantiu-me uma vez, enquanto vertia o chá e eu me engasgava com o bolo de limão, que o Sr. Administrador gostava muito de uma de nós em segredo. O Ricardo também me amava em segredo. Quer dizer, não tanto assim. Porque, ao contrário do Sr. Administrador, o Ricardo era um pouco infantil e trapalhão. Babava-se a comer, fumava Kentucky, e começava muitas vezes frases por «O que uma mulher precisa». E nunca acertava! De resto, era um rapaz jeitoso. Percebia muito de contas e de cabos elétricos. O meu pai estimava-o. A minha mãe insistia:

‒ Este rapaz é o melhor de dois mundos, Alzira!

Não tivesse queimado os meus diários, saberia dizer a data certa em que aquilo foi… Eu escrevia. Poesia, diários, coisas de rapariga… Muitas vezes pensei no cabelo loiro, nos olhos azuis, nos lábios finos de serafim, no hálito limpo do Sr. Administrador. Estava sozinha na Secretaria, ele entrava de rompante, ficava mudo, com uma folha nas mãos, olhava-me olhos nos olhos, e depois agarrava-me, beijava-me com fervor, confessava:

‒ Querrro-te, Alzirrra! Querrro casarrr contigo, Alzirrra!

Mas eu queimei tudo. Foi na altura em que o Doutor Oliveira Salazar ficou doente. A minha mãe também ficou doente nessa altura, uma desgraça nunca vem só; estava tão certa de que a minha vida ia mudar para sempre… A Genoveva convenceu-me a ir com ela ao Barreiro. As cartas diziam tudo. Via-se o destino nelas tão nitidamente como se vê do Cristo Rei uma mulher a estender a roupa numa janela de Alfama nos dias de primavera. O Sr. Administrador amava uma de nós, ia deixar a mulher, preparava-se para desafiar as leis dos homens e de Deus… E eu tinha a certeza que era de mim de que ele gostava!

‒ Este rapaz é o melhor de dois mundos, Alzira!

E eu sonhava com a proeza. Sonhava acordada, por causa das insónias. Sabia que aquela embirração, aquela dureza, aquele modo de me repreender não passava de fogo de vista. Podia jurá-lo. Podia senti-lo. Em breve me tomaria nos braços. Quase vomitava com a ansiedade. As minhas colegas iriam odiar-me. O Ricardo iria odiar-me. Os meus pais iriam odiar-me. Mas o apelido von Rosenstock podia muito! Depressa me perdoariam, me admirariam, me temeriam!

Foi quando a bomba caiu. O Sr. Administrador, o admirável empresário a quem os ministros e bispos vinham com mãos ambas apertar as mãos, fugiu do país. Fugiu para o Brasil. Fugiu é uma palavra excessiva. Talvez deva ficar-me por um esgueirou-se. Viajou. Na bagagem levou milhares de contos de reis, os nossos salários, os lucros e as dívidas da empresa, o futuro e a Genoveva!

‒ Querrro-te, Alzirrra! Querrro casarrr contigo, Alzirrra!

Chorei todas as noites durante muitas noites. O Ricardo vinha, como um cachorro triste, consolar-me. Havia de encontrar outro trabalho. Ele mesmo metera uma cunha na CUF. Depois bebia aguardente com o meu pai, depois café de chicória com a minha mãe, depois chocolate quente comigo:

‒ Este rapaz é o melhor de dois mundos, Alzira!

De modo que nunca mais acreditei em adivinhos, bruxos, videntes, astrólogas, cartomantes, quiromantes, magos e médiuns. Casei-me com o Ricardo, com quem fui sempre infeliz, a quem nunca dei um único filho, com quem nunca partilhei afinidades, a quem nunca perdoei que fosse mole, meigo, bom rapaz! O Ricardo morreu há dez anos. A Genoveva morreu há um ano, contaram-me. O Sr. Administrador, regressado ao país entretanto, morreu ontem. E a mim, que não chorei a morte do Ricardo, a quem a morte da Genoveva nem alegrou nem entristeceu, doeu-me como uma facada a notícia…

‒ Querrro-te, Alzirrra! Querrro casarrr contigo, Alzirrra!

Nunca ter recebido aquele tratamento por tu do Sr. Administrador, ter sido desprovida de talento (daquele talento que torna uma mulher mulher, amada, desejada, única, divina!), agora que o levam, balançando no caixão, dói-me como a minha própria morte… Queria ser atriz, escritora, professora, hospedeira, mulher, mãe. Quis o destino que tudo isso fosse com os diários para o fogão. Talvez as cartas mo tivessem revelado, acreditasse eu em adivinhos, bruxos, videntes, astrólogas, cartomantes, quiromantes, magos e médiuns. De modo que dou por mim a chorar outra vez. Mas depois habituo-me. Tenho a certeza que sim. Tenho a certeza que sim…

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O homem que pedia cigarros

Foto: Tatsuo Suzuki
Fotografia de Tatsuo Suzuki

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O homem chegou e sentou-se na mesa ao lado. Suspirou. Fê-lo tantas vezes e tão fundo que conseguiu a minha atenção. Foi o bastante. Endireitou a posição da cadeira de modo a ficar mais próximo. Sorriu. Pediu um cigarro. Dei-lho. Não tardou a contar-me a sua vida.

‒ O meu problema são estes dentes de merda!

Mirei. Uma boca combalida com hematomas e roxidões suspeitos, um sorriso feio, esburacado, agarrando dois dentuços sobreviventes, tortos como estacas de uma paliçada em ruínas.

 ‒ O que lhe aconteceu? Caiu?

O sorriso, que não lhe saíra do rosto, aprofundou-se. No refluxo dos lábios, viam-se agora as gengivas dolorosas, inflamadas, rubicundas, onde cicatrizes hemorrágicas testemunhavam uma enfermidade que nunca eu vira.

‒ Não. Tenho é a boca toda lixada!

Duas pessoas quiseram confirmá-lo. A segunda era uma senhora devota da Marie Claire. Exibiu aquele ar de quem acabou de engolir comida estragada. O homem sorriu-lhe também. Não desgostou que nos tivéssemos interessado por si, que o olhássemos de soslaio, que franzíssemos o nariz, que lhe reprovássemos a vida. O homem (via-se!) apreciava que o mundo lhe estendesse uma mão. Que o mundo lhe estendesse ao menos um dedo!

‒ Isto está a dar cabo de mim, sabe?

E pausou.

‒ No outro dia o meu irmão levou-me lá a casa um bife. Mas não pude comê-lo, por causa destes dentes de merda… O que vale é que estavam ali uns gatos… Atirei-lho. Só comi o arroz e as batatas…

E pausou de novo.

‒ Se você me pudesse arranjar outro cigarrito!

Dei-lho. A rapariga do café aproximou-se. Veio explicar ao homem que não podia importunar os clientes. Que precisava de ir-se embora. Que não voltasse. Que o patrão não o queria lá. E o homem fez uma momice, um sorriso doido, como se aquilo acabado de escutar fosse um jogo e ele tivesse principiado a divertir-se muito. O meu caderno, escancarado como uma porta inútil, registava meia página de coisas cuidadas, frases com brilho, ideias promissoras. Não podia agora compreendê-las. O homem fez uma vénia com as mãos juntas, como quem faz a súplica a um santo. A rapariga expirou pelo nariz, contrariada. Recolheu a chávena na mesa entretanto abandonada pela senhora impertinente e regressou ao interior. Uma hora de trabalho (como foi possível?) reduzida num piscar de olhos à inconsistência das cinzas… O homem quis ser agradável (lia-se-lhe nos olhos a vontade de querer saber). Perguntou.  

‒ O senhor é daqui?

‒ Sim. Quer dizer, mais ou menos…

Apontou para o isqueiro. Emprestei-lho. As mãos muito magras deram-me a impressão de estar a conversar com um moribundo. Arrisquei.

‒ Isto faz-lhe mal! Não devia fumar tanto!

‒ Não, não… Os cigarros são porreiros, tiram-me as dores todas…

Um casal chegou. A rapariga julguei reconhecê-la da televisão: sem devolver qualquer vestígio de empatia pelo mundo, devorou o espaço em redor multiplicando sons. Percebi que o meu refúgio naquela esplanada havia cessado. Uma nova espreitadela ao caderno fez crescer a labareda da frustração. Detestei-me. Detestei o desgraçado que, cadeira com cadeira, continuava a sorrir e a soprar o fumo numa espécie de êxtase. Detestei a fulana arrogante. Fiz menção de sair e de me despedir.

‒ Bem, muito gosto em conhecê-lo!

O homem levantou-se para me apertar as mãos.

‒ Muito gosto, meu senhor!

O desconforto foi indizível. A beata queimava-lhe quase os dedos. A tarde tornara-se subitamente fria, como muitas vezes sucede na passagem das estações. Consultei o telemóvel, ocorreu-me um contacto, teclei. Do outro lado, uma voz recebeu-me, acalentou-me. O homem erguera-se. Apanhava desprevenido o casal. Pedia tabaco. A rapariga, elegante, com a cigarette espetada entre o indicador e o médio, continuava a falar sem lhe voltar o rosto. Do outro lado do telemóvel, a voz confirmava o encontro para as cinco. O carro continuava ali mesmo, sonolento como um cachorro. Entrei. Abri os vidros. A rapariga da televisão exaltava-se, arremessava com desprezo a beata para o jardim. E o homem mergulhava. Como um nadador, como um pai aflito, o homem lançava-se em sua perseguição. O desconforto foi enorme. Ele, triunfante, saltando no relvado como um doido, estrafegando com os dois dentuços, esforçava-se por reacender o corisco. Do outro lado do telemóvel, a voz despediu-se. Fiquei mudo. A voz perguntou-me se tinha ouvido. Disse que sim. Estava bem, sim. Estava combinado. E o homem desapareceu como tinha vindo. Em direção ao nada.

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O António

Rui Pires
Fotografia de Rui Pires

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Estou a vê-lo, ao pé de mim, a desembrulhar consoladamente caramelos de fruta, sentado na soleira da porta, com as calças arregaçadas, socos nos pés, a tesoura da poda presa à ilharga, numa presilha de couro, como um polícia com o cassetete. Nunca compreendi essa necessidade de ter sempre à mão a tesoura da poda. Nem as calças arregaçadas. Nem os bolsos cheios de rebuçados. Era o seu modo de enfrentar a vida, suponho. Mastigava como um macaco, depressa e de um modo desajeitado, enfiando de quando em vez os dedos na boca para soltar a massa pegajosa que dentro dela rolava e se colava ao palato. A mulher era má. Estou a vê-la também. E a ouvi-la. Esbracejando, insultando o silêncio das oliveiras, ofendendo o conforto demorado do sol. ‒ Os insultos são pedradas às vezes insuportáveis.

‒ O velhote fechava os olhos, igual a um gato mandrião, deixava-se entregue aos pensamentos e ao resto açucarado do último caramelo. Parecia cambalear para dentro de uma redoma. Podiam chegar de fora os piores palavrões, queria lá saber…

Eu gostava muito dele. Além de partilhar as guloseimas, ofereceu-me certa vez uma tesourinha da poda. E uma presilhinha de couro. E uns tamanquinhos com as tachas brilhantes dos tamancos novos. Éramos amigos. Vizinhos, sim, mas amigos! Esbanjava dinheiro como esterco, acusou-o até ao fim a megera. Para ele um amigo está acima dos centavos. Aliás, aprendi a palavra centavo numa das novas conversas. Porque nós tínhamos conversas no intervalo da sorna. Conversas como as que se têm no meio de um ofício. Quando se zangava, e zangava-se de um modo silencioso com a mulher, sempre com a mulher, o velhote ia para o campo e levava-me consigo. Por causa desta coisa de ser amigo de alguém zangado com a sua mulher, sofri também da sua revolta silenciosa e das sonoras imprecações da D. Etelvina, para quem eu era o ajudante.

Ajudante! Uma honra sem limite! Cada um, de cada lado da mesma árvore, cada qual a zelar pela produção, pelo bem-estar do horto, pelo salário da casa. As peças de xisto queimavam os olhos, refulgindo a luz de julho, e eu muito solidário, o xis dos suspensórios imitando o xis dos suspensórios do mestre, a ouvi-lo falar da sua própria meninice, dos tempos incompreensíveis em que se fugia da guerra e se comia uma malga de sopa ao jantar sem mais. Era como um avô narrando uma fábula. E eu como um neto prestes a adormecer no embalo da narrativa. O velhote tinha um jeito danado para seduzir, com uma voz feérica, uns olhos serenos, um riso de malandro! Tanto me ensinava a estacar feijão e pimentos, como a fazer doce de amoras em folhas de videira! A mulher detestava-nos esta cumplicidade.

 ‒ Ó Tónio, rais te partira! 

Escabroso pretérito mais-que-perfeito. Foi com ela que o aprendi. Megera! Estou a vê-la, com olhar impiedoso, a medir as suas rasas e meias rasas de milho, a queixar-se do marido displicente às freguesas do azeite, lambão, preguiçoso; e ele, sem dar cavaco, a regar as cebolas; e eu, atento já ao mundo, a sonhar com o futuro, a querer ser engenheiro, a magicar em tratores e searas de centeio, a semear estradas ondulantes de pão, como as que o velho António me descrevia nas suas historietas do Alentejo natal! As minhas férias ressoavam pelo lajedo à cata de raposa (e nunca o bom do homem quis armar uma esparrela, não fosse o animal cair às mãos erradas), subiam às parreiras para apanhar os aviões de papel transviados (voar era um sonho comum, só muito mais tarde me dei conta), desciam às salgadeiras para provar presunto, entravam nas capoeiras para surripiar ovos de codorniz e das fêmeas de garnisé, abriam os pipos para os lavar do sarro, fechavam os à puridade (debaixo de ordens precisas) armários e gavetas onde se ocultavam tabletes de chocolate amargo, chocolate proibido, francês, vigiado pela patroa até ficar esbranquiçado e incomestível, chocolate que o meu amigo fazia questão de salvar e de dividir comigo! Éramos, em suma, uma dupla! Ele, o mentor, Eu, o ajudante!

 ‒ Ó Tónio, rais te partira!

E o António esquivava-se, levando-me pelo braço até às leiras fofas do quintal, onde acabara de mergulhar os bolbos dos jacintos e das orquídeas. Porque as flores, como os convidados para uma festa, se preparavam então com tempo e com amor. E todo o ano os narcisos, as açucenas, os lírios, as violetas eram um espalhafato de perfume e de cor, atraindo os abelhões e os poetas porvindouros. Tanta memória se me alumia no correr das palavras!

Uma manhã fui parado à saída da porta pelo meu pai. Nesse dia não pude correr para casa do casal de lavradores. Nem nesse nem no outro, nem nos outros a seguir. Palavras de um léxico frio, incógnito, nasciam de todos os lados como ervas daninhas: vascular, cerebral, coma, máquina, defunto, velório, funeral, campa, cemitério. Esperei que o meu pai me deixasse correr de novo para casa do velhote, com a foice no coldre, os tamancos nos pés, livre e feliz como esses pardais comuns que nos escoltavam as caminhadas pelo meio dos campos e dos montes. Passou tempo, demasiado tempo, até que tornei a ver o António; e quando mo deixaram ver, ele tornara-se uma fotografia oval, sépia, encastoada numa lápide onde (havia descoberto já o milagre das letras) o nome ANTÓNIO BRÁS MARRAFA se fazia acompanhar de números e de belas frases odiosas, que não pude senão compreender e odiar!

A quinta tornou-se um baldio gigante. Mais tarde um loteamento. Depois um feio arrabalde de prédios brancos, que se tornaram sujos e degradados. A velha foi levada para o Porto, por uma filha igualmente áspera e azeda. Não soube rigorosamente mais nada acerca da sua existência. De resto, só as palavras a trazem, por defeito, por arrasto, como neste instante, em que fecho os olhos e me deixo embalar pelo suco pegajoso dos caramelos Penha, comprados num dos últimos mercados de café da minha terra. A quinta, que era um paraíso, desfez-se em múltiplos cacos, que não resisto a apanhar. Nenhuma tarefa, nenhuma missão me foi alguma vez dada com tanta dignidade: ser o ajudante, prolongar a memória, coser uns aos outros os trapos dessa vida passada, sorrir, mastigar ao mesmo tempo tantos rebuçados que seja preciso enfiar os dedos na boca para os libertar.

Vale muito a pena! O sol é morno, a luz forte (como no interior de um poema), a redoma bela e silenciosa, indiferente a tudo o mais, como num sonho, como numa história começada pelo «Era uma vez».

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