O maior feito da nossa vida estará sempre por escrever. Assim, como quem dispõe subitamente de uma grande soma de dinheiro e não sabe o que fazer com que ela, também assim pode qualquer um de nós encontrar-se, de um momento para o outro, na situação de precisar de oferecer uma enorme quantidade de amor. Esse será, em última análise, o grande feito que nos está reservado.
Lembro-me de ouvir há uns anos uma entrevista conduzida pelo jornalista João Almeida a António Victorino d’Almeida na Antena 2 e de escutar com admiração as carinhosas palavras que o maestro deixava ao pai, de quem cuidou até à morte e por conta de quem abandonou uma carreira em Viena, na Áustria, por ser filho único e sobretudo um filho bom. Um filho bom sabe que os pais não constituem uma parte extrínseca a nós ou de nós, sabe o quanto se lhes deve do nosso passado e do nosso futuro, o quanto se lhes deve no presente, no agora, no momento em que é imperioso esquecer o acessório e focar neles cegamente o nosso amor.
Depois do curso universitário, passei quase em simultâneo a ensinar e a escrever. Durante décadas supus que residiam nesses dois verbos o melhor de mim. Ensinei a centenas de alunos, escrevi por certo milhares de textos. E eis que, de súbito, todo esse mundo didático e literário me começou a parecer uma errância frívola, uma adoração mecânica dentro de um sistema autorreferencial, sem contacto com o mundo e sem humanidade. À semelhança de António Victorino d’Almeida e de muitas outras pessoas (quero acreditar que são muitas), de um instante para o outro, precisei de coragem para riscar um caminho absolutamente novo e de nele ter incluído – quase em exclusivo – o cuidado à minha mãe, doente oncológica.
O escritor John Updike, depois de visitar uma exposição de Lucian Freud em Veneza, corria o mês de setembro de 2005, impressionadíssimo com o que ali viu e por certo se lhe revelou, anotou: «Sim, o corpo é uma coisa hedionda, sobretudo os pés e os genitais, e não menos a face humana. A carne arrasta-nos para baixo.»
Esse corpo monstruoso, esta carne que pesa e afunda são, com efeito, a nossa maior descoberta, porque vendo-a nos outros adivinhamo-la em nós, porque antecipando-a sentimo-la a pairar diante dos olhos e não divisamos já a luminosa alegria dos raios insolentes, mas uma chuva dolorosa de fosfenos. Antes dos cinquenta começamos a duvidar da nossa idade, visto que tanto nos parece que a meninice foi apenas ontem como que a terceira idade é já amanhã. «Sim, o corpo é uma coisa hedionda»!
Cuidar dos seus velhos é o que fazem muitos dos meus conhecidos. Por múltiplas e variadas razões, os nossos pais tornam-se os nossos novos filhos birrentos, filhos dementes, trementes, indefesos, deformados pela dor, atingidos pelo rancor do envelhecimento. Num correr de cortina, juntamos aos filhos que vivem a adolescência esses filhos tardios. Ouvimos queixas e resmungos de uns e de outros, negociamos com paciência infinita, respondemos às vezes com ira, depois com remorso, depois com frustração, depois com eufemismos, com metáforas, com palavras que teimam cada vez mais em não querer coser-se entre si. Cuidar dos nossos velhos é assistir em tempo real a esse filme que nos corre e cujo desfecho conhecemos antecipadamente. Cuidar deles é aprender a cuidar de nós.
O mesmo John Upkike escreveu um verso maravilhoso que sublinhei num dos seus livros de poesia: «E a morte é séria, longa e escura.»
Talvez por isso, por o saber tão bem – e ao invés de estimar os grandes arranjos florais que alguns depositam nas tumbas, ou de admirar os choros formidáveis e o luto que devotam aos seus finados – eu prefira o riso solar e as palavras serenas de António Victorino d’Almeida («O meu pai era uma pessoa extraordinária. Tenho a enorme alegria de lhe ter dado muitos anos de vida.») e sinta, como ele, um orgulho imenso por me ter tornado cuidador de quem me trouxe ao mundo, de quem se tornou para a família um símbolo vivo de resiliência e de força, um motivo de reflexão, um exemplo.
O maior feito da nossa vida estará sempre por escrever. À distância dos anos, não consigo avaliar com rigor aquilo que de me possa orgulhar. Seguramente não creio que me habite essa aura das pessoas extraordinárias pela bondade, pela beleza, pelo génio, pela perícia ou talento numa área particular. Mas aprendi nos últimos tempos que a humildade é, também ela, uma virtude. Quase como quem esbanja uma quantidade enorme de dinheiro, ou de amor, unicamente para se sentir um pouco mais longe da escuridão.
De quando em vez venho até cá acima e fico. Fico em silêncio, a escutar muito tempo as coisas que só se escutam em silêncio, sentado num lugar pertíssimo de mim, num sítio onde as palavras me parecem aos poucos pequenas assombrações, quero dizer pequenas cabeças enevoadas, minúsculos vultos sem sentido, fósforos frios que deixei de saber deflagrar.
Fico e às tantas fecho os olhos. Às tantas as coisas fluem, as coisas vêm-me involuntariamente à boca, as coisas passam-me diante as retinas, atiram-se-me à nuca, coisas como os murmúrios da avó Amélia, coisas como o cheiro triste da murta nos dias que se seguem ao Natal, coisas como a castidade absoluta das suítes de Bach, coisas como a maciez dos seixos, como a cor fulminante do papel debaixo dos versos de Camões.
Vir e ficar é doloroso.
As memórias conhecem caminhos, encontram-me, convulsionam num modo de regurgitação. Estou em silêncio e sinto gente desesperada a querer falar-me, sinto pedaços avulsos de mim a precisar de paz, a pedir que os apague ou lhes dê uma morada acalentadora, que os compreenda ou que os exorcize em definitivo.
Vem-se cá acima e fica-se.
Fica-se a meditar na quantidade de fracassos. No primeiro romance por escrever. Na profissão mal encontrada. No amor que se abandonou em parte incerta. Fica-se a matutar na mole de sonhos interrompidos. No doutoramento por fazer. Nos filhos que não vieram. Nas viagens ao Japão e à Antártida. Fica-se a cismar na multidão de rostos que foi preciso conhecer e esquecer ao longo dos anos. No peso morto que se deixou atrelar aos tendões e não é a nossa pessoa e não é a pessoa dos outros e não, na verdade, a pessoa de ninguém. Fica-se a cair para dentro, como uma pedra num poço.
A avó Amélia era um colosso sem que o tenha sabido. Foi-o até ao fim, quando muda, paralítica, cega, se queixava em gorgolejos, em sibilâncias, em gestos que nos diziam que queria comunicar e não podia. Só os pensamentos a mantinham viva, suponho. Só teimando com a comida ralada, suponho. Só apertando-lhe as mãos e afagando-lhas e beijando-as. Só assim a mantínhamos no lado de cá da solidão. Só pronunciando devagar pequenas frases que o seu ouvido, suponho, aceitava ainda.
Venho cá acima e fico defronte a isto.
Diante desta paisagem de granitos e ervas ressequidas pela geada. Fico sem um pio, a escutar o vento, a deixar que o caracol dos anos que me leve e me traga de volta, sem saber ou poder replicar ao parto doloroso das imagens que se soltam deste movimento em espiral de ir e vir.
Venho e fico.
Fico, suponho, à espera que alguém se dê conta de como estou a ficar cego, paralisado, emudecido. À espera que me segurem ambas as mãos e me não deixem partir para o lado de lá. O lado de lá dá-me arrepios. Tenho pavor ao outro lado da solidão. Não sei se a avó Amélia pensava muito nisso. Nos fracassos e sonhos por acabar, não creio. A avó era um colosso. Suponho que os colossos nunca morrem inteiramente sozinhos e a avó era, sem o saber, um colosso. Suponho que só os fracos vivem atormentados por esse medo. O medo de levarem uma vida inteiramente desperdiçada. O pavor de saberem que nunca serão grandes, ou lembrados, ou apertados na mão.
Vir e ficar é doloroso.
As memórias conhecem atalhos, encontram-me, despoletam pesadelos. Ninguém imagina com que remorso. Com que furor. Com que que ódio.
Um dos meus maiores medos começou há uns tempos, subtilmente, numa das conversas em família à hora do jantar: disseram-me que nesse dia fora a sepultar a última das saboeiras da freguesia.
Não era do meu conhecimento que tivesse havido fábricas de sabão e saboeiras na terra, por isso senti uma puada cá dentro, como as que sentimos quando nos escapa algo de valioso e se mistura culpa e nostalgia em nós.
Poucas semanas depois os sinos dobraram e o meu pai, contadas as repetições do dobre supôs de imediato:
– Foi o guarda-rios, foi o Salvador! Olha, coitado, era o derradeiro do seu ofício…
Mais uma vez atingiu-me a perplexidade: desconhecia que houvesse uma profissão tão específica, tão bastantemente útil e tão autossuficiente como a desse pobre homem que levava a alma ao outro mundo.
Comecei aos poucos a tomar consciência da excecionalidade desta época em que um mundo inteiro de mesteres e modos de vida e ganha-pães personalizados morre e outro mundo inteiro de cargos e encarregados, diretores, funcionários e colaboradores varre a paisagem sem lugar a rosto, individualidade ou história para lembrar mais tarde. Ao dar-me conta deste exato momento epigonal em que o último vedor e a última jornaleira, em que o último alfaiate e a última camponesa com coragem para matar galinhas e esfolar coelhos, em que o último alambiqueiro e a última boticária se preparam para entregar ao vazio a sua arte e o seu orgulho, a sua perícia e os seus rituais, dou-me conta (por arrasto) de que uma porção imensa do espaço e do tempo em que fui preparado para viver está a ir-se, subtilmente, num voltar de capítulo silencioso, num cortejo fúnebre discretíssimo, num fechar e abrir de olhos ao serviço de uma hierarquia nova, computacional, globalizada, irrespirável, inumana, de identidades-números, onde tudo o que se faz é produto, onde tudo o que é concreto é virtual, onde todo o contentamento mói num longo bocejo eterno de-antevéspera-a depois-de-amanhã.
Um dos meus grandes medos é o sentir-me fiel da balança, sentir-me depositário de um mundo antigo que se despede sem adeus e até sempre, e sentir-me recebedor de um mundo outro, atroz, que me exige (para merecer estar vivo) que esqueça justamente e depressa, que oblitere, que apague pura e simplesmente essa memória decadente de trabalhos ultrapassados, de muitos nomes, de velhas histórias e sentimentos incompreensíveis, como a saudade, como o sentir falta de meter mãos às coisas e sobre as coisas, como o frémito de cheirar a terra, ou o tecido acabado de riscar pela sábia costureira, ou sentir prazer e repugnância junto das vísceras quentes e do sangue pingado desses animais que alguém, repleto de competência, acabou de degolar.
Um dos meus grandes medos é o de me sentir expulso deste outro mundo nascente, falso, hipócrita, reescrito com a lei suprema do politicamente correto e do balofo e do estéril e do artificial.
Tremo de pensar que estou na cauda de um cometa vertiginoso, assistindo à desaparição de algo a que chamam velho e inútil, mas que é, tenho de teimar, luminoso e cheio, vivo e refrescante. Tremo de sentir-me como aquele punhado de gente que assiste com lágrimas à implosão do Cinema Paraíso. Tremo de pensar que os sinos um dia talvez nem dobrem. Que um pequeno estalido ecoe eletronicamente, interligadamente, absortamente, cansadamente, nos dispositivos dos meus sucedâneos e que algum deles, um apenas, desvie um pouco os olhos do ecrã e considere pelo pequeno ângulo de firmamento acessível o sentido da existência.
No vagar da casa definia-se melhor a natureza imutável dos gestos. Era sublime, por exemplo, a luminosidade que transbordava dos dedos à roupa no estendal nas manhãs de maio. Por exemplo, a vaga tristeza súpita que descia connosco ao silêncio mais profundo de uma gaveta. As coisas ocupavam o seu lugar dentro das palavras, ao lado de outras coisas dentro de outras palavras, e vinham contra o olhar, sobre o olfato, ao toque imaculado dos dedos. Existia-se, respirava-se, decompunha-se com minúcia as formas e os cheiros, a tessitura dos tijolos, os pensamentos, o frio. Era o desabrochar da infância.
Essa infância abria uma cancela alta e vinha a correr. Trepava escadas de pedra, interrompia-se instantaneamente diante uma velha porta de madeira, em cujo rodapé espreitava o fumo escuro e a pálida luz elétrica de uma cozinha. Essa infância entrava, invadia um solo indubitavelmente sagrado repleto de objetos puídos, macios, mascarrados. Encontrava aceso o lume da lareira, o brilho dos cobres, as cerâmicas muito lavadas. Chiavam ali três grandes potes de ferro, ali onde cheirava a café fresco, onde mãos trémulas iam depositar a sertã sobre uma trempe, ali onde ardia às vezes – sobre magníficos tições rubicundos – a boa carne do fumeiro, ali onde pequenos olhos atentos escreviam já a sua escrita inócua e fascinada.
Pregado à penumbra deste primeiro espaço, a infância descortinava o claviculário surrado. Era o lugar de onde se partia para todos e de onde se regressava de todos os lugares. As vozes reuniam-se para comer, para contar o tempo, para persuadir a Providência. A infância escutava e rezava, participava na prudente litania com que se defendia a casa dos males deste e do outro mundo, ia sonolenta pelo limiar tosco dos móveis e escapava-se para o corredor. A infância escabeceava como um inseto alado, ensarilhava-se nas teias nascidas sob as traves, gemia às vezes com as velhas missagras ferrugentas das portas interiores, absorvia o aroma intenso do eucalipto, sonhava. Depois vencia o torpor, beijava as faces endurecidas dos anciãos e pedia-lhes a bênção. Depois tombava no sono imaculado dos justos.
Havia na raridade destes gestos sagazes e piedosos outro espaço de que hoje se é órfão. Outro espaço de que hoje se sente uma falta inexplicável. De que hoje se lastimava a dor incalculável. Como se de um remorso se tratasse, como de uma mutilação falássemos, como se um vazio impreenchível nos engolisse. Beijava-se e era-se beijado, dizia-se e era-se nomeado, sentia-se e era posto no âmago dos sentimentos. A infância era essa casa, essa casa-mundo, essa casa-alma, essa casa-intraduzível.
Por muitos anos pensei que me morrera ela, desfeita de cima a baixo pelo sinistro braço do caterpillar. Pensei nessa casa-entulho que os camiões transportaram como uma sombra para parte incerta. Essa casa devolvida aos caboucos e ao cheiro alcalino do saibro, restituída ao desenho ancestral do seu quadrado de terra. Essa casa que outra casa afundou para sempre, debaixo de betão e toneladas de metal.
Mas não. Essa casa onde a infância respira ainda não morreu. Nem a imagem dolorosa do seu desmantelamento pôde destituí-la da sua geografia encantatória. Nem as malditas quelíceras das máquinas puderam abafar as suas vozes benditas. Nem os seus velhos puderam partir – eles que renascem a cada instante na exatidão singular dos gestos que lhes repetimos. Será sempre a casa. Como esses velhos serão sempre uma memória infalível, uma memória que regressa no vagar das sombras e nos enche a boca como uma canção longínqua.
Ah, essa casa não morre.
No vagar da sua esquadria, os gestos eram sublimes, tristes, maravilhosamente esculpidos. Abriam, por exemplo, a terra e sepultavam nela sementes poderosas. Narravam, por exemplo, com palavras poucas e inquestionáveis – à noite, ao lume, no bojo do silêncio – a história de Branca Flor. Nada possuía verdadeiramente esse mundo. Ele era senhor de si. Tudo recaía em nós paulatina, singelamente, como camadas de um amor impossível de corromper. Existia-se, respirava-se, sobrepunha-se sem pressa as minúsculas células do tempo, as formas e os cheiros, a tessitura dos tijolos, os pensamentos, o frio. Era o desabrochar.
Os poetas pobres veem as coisas de um modo que significa alquimia. Tocam-nas e transformam-nas em ouro, ou devolvem-lhes o ouro que têm, mas que (coisas singelas que são, coisas do seu estatuto social, coisas que os olhos dos poetas ricos desprezam) passam por insignificância, tolice, apontamentos de pé rapado.
César Vallejo foi um poeta paupérrimo. Peruano de nascença, andou por este mundo fora colhendo as maçãs da sua miséria. Em Paris, os poetas ricos miravam-no com o mesmo espanto apavorado com que em Braga, nas esplanadas, os poetas ricos atingiam Sebastião Alba, outro mendigo. Há, também, poetas mendigos. Poetas que, literalmente, mendigam pão e, volta e meia, uma cachaça.
Yannis Gitsos, Yourgos Seferis, Paul Celan, Tonino Guerra sentiram a fome. Todos por causa da guerra (dos combates, das perseguições, da prisão). Allen Ginsberg e Charles Bukowski conheceram-na, igualmente, em virtude do alcoolismo, das drogas, do oposicionismo político exacerbado. O caso mais dramático, seguramente, o de Anna Akhmátova, a resistente russa que padeceu toda a série de agruras que o estalinismo pôde infligir. Antes dela, Czesław Miłosz conheceu as agruras do gueto de Varsóvia, que recorda no poema magnífico “Campo di Fiori”. Foram poetas pobres, um ou outro remediou-se, mas humildes sempre, irónicos quando possível, geniais cada um à sua maneira
Em Portugal, a história da poesia é a história da pobreza pura e dura. Cultivaram-na reis, nobres e aristocratas, mas sobretudo gente sem eira nem beira. Camões, Bocage, Gomes Leal, Pessoa foram poetas sem dinheiro. Sá-Carneiro foi um poeta rico, cujo suicídio teve provavelmente algo que ver com o spleen da capital francesa e com a condição anómala de ser filho de burguês abastado para quem os seus avanços literários nada significavam. Sophia foi aristocrata, mas conheceu os apertos financeiros que os opositores de Salazar sofriam quando ousavam perturbar as malhas do regime. Nem todos puderam ser Antónios Ferreiras, Diogos Bernardes, Sá-Mirandas. Nem todos puderam viver dos subsídios generosos de suas majestades ou podem viver dos prémios literários que as fundações, câmaras municipais e juntas de freguesia entregam amiúde. Ou do beneplácito das grandes editoras.
Por lá, como por cá, há uma imensidão de poetas a contar os cêntimos e a contemplar as coisas irremediavelmente belas que a natureza tem para oferecer, do mais lírico e humílimo que possa encontrar-se pelo caminho, enquanto se faz pela vida e se arranja um ganha-pão decente, sem privilégios ou cunhas partidárias, ganha-pão despido de toda a espécie de adorno e enliças políticas, sociais ou familiares. Ainda que estendendo a mão a quem passa, como esse célebre Ulisses Santiago que conheci no Porto (nos idos da Faculdade) a quem dei cem escudos a troco de um amontoado de versos escritos a tinta verde.
Os poetas pobres veem as coisas de um modo particular. Talvez não vejam o orvalho entre as rosas rubras e aveludadas do seu jardim, mas o orvalho poisado em grandes gotas (que lembram prata líquida) sobre a folha carnosa das couves e das alfaces. Ou talvez vejam de manhã cedo (caminhou o dia os primeiros metros no horizonte) o rasto iluminado dos aviões e se recordem do fio de baba dos caracóis e associem ambos num verso pobríssimo como “aviões segregando a sua baba translúcida”. Ou talvez assistam ao acender das fogueiras nos campos de uma qualquer terreola e se lembrem de outonos passados, evocando avós maravilhosos (com o podão à cinta e botas de vitela calçadas) que os levavam pela mão até ao lugar onde o trabalho os fixou para sempre, muito perto de uma azenha revolta, presa nas névoas e no som do açude, muito perto de uma coluna de fumo no interior da qual a lenha seca produz chamas vermelhoalaranjadas e uma memória pura de afeto. Talvez escutem, caminhando a pé, o som das escrevedeiras, o pio triste das gralhas, a algazarra das levandiscas e saibam com elas iniciar ou concluir uma homenagem à infância.
Ou talvez vivam na cidade e testemunhem o lento dobrar de esquina dos idosos desvalidos, solitários, deixados ao deus-dará, para quem um gesto de amor pode ainda valer tudo e significar que a vida longa não foi (não é) em vão. Talvez não lhes passe despercebida a indigência encapotada das famílias modernas, das que não alardeiam a sua situação e não buscam subsídios (das que trabalham todos os dias do mês e levam para casa salários de merda) e têm todas as contas para pagar. Os poetas pobres conhecem muitas histórias destas. Costumam sentar-se nos bancos de jardim, conviver com outros pobres, ler e ouvir-lhes as assombrosas existências de carne e osso. Talvez se deem conta (como deu Pablo Neruda nas minas de Antofagasta) do terrível mundo que fica para lá ou para cá do palco iluminado de todas as falsidades e estatísticas. Os poetas pobres veem a olho nu e talvez seja por isso que veem melhor, mais a direito, mais dentro, mais fundo.
Pessoalmente, sinceramente, verdadeiramente, não suporto a escrita dos poetas que não vejam as coisas que têm de ser vistas. Dos poetas que comunicam sem ideias, que se glosam a si mesmos, que multiplicam palavras. Dos poetas que cavam dentro da sua própria vaidade e expelem coisa nenhuma. Desses é o reino da Terra, quem sabe do outro reino também. Mas a mim não me apanham a louvaminhá-los. Não apanham!
De algum lugar obscuro da minha memória vêm-me chegando por estes últimos dias saudades da antiga Escola Montelongo, onde frequentei o 5.º e 6.º anos, o Ciclo, como então lhe chamávamos, escola nos arrabaldes da cidade, pobre, sem cantina, sem ginásio, com uma escadaria larga que nos levava da cave ao piso superior por entre corredores mal iluminados, onde se abriam as portas das pequenas salas (a sala 1 e a sala 6 eram minúsculas) e onde o grande tesouro não se chamava “campo de jogos” (um baldio irregular, com duas balizas ferrugentas e mal equilibradas, hoje sede da Guarda Nacional Republicana), mas a biblioteca.
A biblioteca era fria, silenciosa, no remanso do rés-do-chão. Do lado de fora das suas janelas gradeadas crescia um silvado no meio de um cemitério de mesas e cadeiras partidas. Tinha três filas de mesas alinhadas e uma D. Lurdes maldisposta ao comando, sempre com o aquecedor ligado, sempre com a mão pronta para um tabefe profilático, sempre com os olhos vigilantes e maus correndo por cima dos óculos e a avisar.
– Quero tudo no sítio!
Era aqui que nos conduzia duas a três vezes por período o professor Miguel Monteiro, o mais extraordinário mestre que encontrei nesse tempo, para podermos desfrutar da leitura silenciosa, do livro que bem entendêssemos, da estante que mais quiséssemos. Só então os fechados armários se abriam. Só então, quando as lâmpadas fluorescentes brancas se acendiam todas, se podia olhar melhor e mais fundo a floresta de lombadas e se extraía das estantes repletas algo como A ilha do tesouro, As aventuras de Tom Sawyer, As viagens de Gulliver, A menina dos fósforos, O príncipe feliz, O rapaz de bronze, Como se faz cor-de-laranja, Histórias de um bichinho qualquer, tantos outros… A rancorosa funcionária (obrigada a levantar-se e a abandonar a TV Guia) rodava a grande chave metálica, fazia silvar o nariz e punha os olhos de lado, como se os quisesse escorraçar das órbitas, seguríssima de que não ia ficar nada no sítio. Era um assombro, podíamos por fim colocar as mãos no cofre. Indiferente ao desagrado da senhora, o temerário professor continuou a levar-nos àquele canto umas quantas vezes por período, permitindo assim que nos déssemos conta de como aqueles livros cheiravam extraordinariamente a madeira envelhecida, do quanto as ilustrações são poderosas etiquetas mentais, da dolorosa separação de uma página quando nos devora a curiosidade e a campainha soa.
Este início de setembro tem-me feito recordar algumas alegrias esquecidas. Por exemplo, o facto de andar nos autocarros da João Carlos Soares & Filhos L.da todos os dias (era preciso picar um passe com um número contado de viagens). Por exemplo, a mochila vermelha carregada com os manuais escolares novos (brilhantes, cheirosos, desafiadores, comprados na Papelaria Avenida do senhor Diamantino Pereira (conservo, ainda, os de Português desses anos distantes). Por exemplo, a satisfação de aprender uma língua estrangeira (no meu caso, o francês) e de poder decifrar os enigmas dos vulcões em Ciências, e de superar a paralisante confusão de xis e ípsilones em Matemática. Gostava de Estudos Sociais e de História, detestava a gramática (a morfologia e a sintaxe, em particular) e era um zero a Trabalhos Manuais, disciplina onde precisei de empregar uma grande dose de improviso, mentiras e promessas para me aguentar na positiva. Odiava Educação Musical, outra deceção da minha vida escolar, provada que ficou a minha completa imperícia em matéria de flautas, xilofones, tambores, leitura de pautas, interpretação de semicolcheias, escrita de claves de sol, cantoria.
Gostava de histórias. Gostava de espreitar a arrecadação, onde permaneciam cheios de humor (e de pó), os esqueletos humanos. Gostava de desenhar (embora me faltasse qualquer coisa de verdadeiramente artístico). Gostava de folhear os manuais e de por eles ver o mundo – as ilhas selvagens do Pacífico, repletas de cones expulsadores de lava; as belas cidades e comunas de França, com os seus vinhos e os seus queijos; os castelos e mosteiros de Portugal, especialmente os medievais (que já então sobremaneira me encantavam). Gostava de sair a correr para o Pavilhão Gimnodesportivo ou para as piscinas municipais, um e outras significando liberdade. Gostava de correr, de marcar golos, de saltar nos aparelhos, de nadar, de fugir ao trampolim e aos saltos mortais (que me trazem ainda hoje pesadelos).
Mas gostava, sobretudo, da sensação de início. Nesses dias de setembro, como nestes dias de setembro, comprados os novos materiais, organizada a capa (com os seus separadores de plástico colorido da Âmbar), preparado o estojo, o começo acarretava um misto de ansiedade e de esperança, de fé e de algum temor. Tudo dependeria (como depende hoje) das pessoas com quem nos iríamos cruzar. Se o professor Miguel foi um mestre, outros o foram também (a professora Germana Longo de Ciências da Natureza, a professor Clara de Educação Visual, a professora Ana Maria de Matemática, a bela professora Adília de Francês do 5.º ano). Outros o não foram, de tal modo nos oprimiam com o autoritarismo (jamais esquecerei o giz disparado por certa professora à testa de uma colega no fundo da sala), ou de tal forma nos desconcertavam com o seu laxismo.
Gostava nesses dias de começo de outono de pensar que um dia saberia educar os meus filhos com amor, rigor e uma boa coleção de livros. E que eles, tal como eu, amariam a quietude da sala de aula tocada pela boa luz matinal. E que eles, tal como eu, saberiam lidar com os erros e com os fracassos próprios, depurando pacientemente as suas virtudes.
Tenho os livros, não os filhos.
Não sei se o lamente, se apenas me satisfaça com o ensinar os outros. Com a expetativa, ainda assim, de que um dia algum dos meus alunos me recorde com a mesma nostalgia imensa com que falo destas coisas, e talvez me associe a uma ou a outra conquista obtida nas paredes da sua escola, a quem em jeito de balanço conceda a luz de uma dádiva, e não (como tantas vezes parece) a fama imerecida de uma prisão.
No imaginário português, a árida e despojada Lanzarote é “a ilha de Saramago”. De resto, em lugar nenhum senti a presença de um escritor tão veemente como na casa em que, nesta ilha, viveu ele com a mulher, Pilar del Río.
Com efeito, A Casa (na Calle de Los Topes, 1, em Tías), pareceu-me no final dessa manhã de 29 de agosto de 2018 um nimbo literário, juntamente com a Biblioteca que (quase contígua, do outro lado da pequena estrada) recebe os muitos milhares de livros, revistas, cartas, manuscritos (não contando as estátuas, estatuetas, óleos) que o nobel colecionou em terras canárias. É bastante provável que muitos saramaguianos viajem a este lugar em primeira instância a partir dos seis volumes dos Cadernos de Lanzarote e que, lendo-os (se o preço da curiosidade não for menos do que o medo de fazer umas férias em solo lunar), se sintam tentados a comprar um bilhete de avião e a conhecer o extraordinário chão vulcânico que de Arrecife se estende a Haría, Ye, Guatiza, Orzola, a Caleta de Famara, a Caldera Blanca, a Yaiza, Uga, La Geria, a Las Breñas, a Los Charcones, à Montaña Roja, a Playa Blanca.
Os Cadernos falam de Lanzarote, mas não tanto como gostaria. O volume maior desta escrita diarística incide sobre as relações e questões que o autor alimentou (simpatias, antipatias, querelas, indignações, convites, idas e estadas em eventos literários, notas partidárias, glosas de toda a espécie a respeito do dia a dia social e político do país – olhado à distância, mas com a precisão – e do mundo), mas também sobre o amor a Pilar e aos cães da casa, sobre o maravilhamento do eu na relação tumultuosa com o cosmos, sobre efemérides, sobre uma frase colhida, sobre um pensamento, sobre uma confissão vinda a propósito do ruído do mundo ou vinda do silêncio purgado da sua alma. Todas as alusões à terra lanzarotenha me fascinam, inversamente aos apontamentos da sua agenda social (às vezes fastidiosos, quase sempre narcisistas).
A Casa de Saramago, Lanzarote
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De entre as geniais descrições que Saramago entremeia na meia dúzia de Cadernos a respeito da ilha, uma sobremaneira me toca e me parece súmula perfeita do que nela há de beleza cruel ou de corajosa resistência.
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Há em frente da casa um morro a cujo cimo se chega por uma encosta suave, mas que, do outro lado, desce abruptamente sobre a planície que se estende até ao mar. (…) No geral dos dias, a paisagem que hoje dali se vê é escuta, com o chão coberto de troços de lava triturada pelas estações, uma vegetação rala e rasteira, amarelada, de longe quase invisível, continuamente sacudida pelo vento. Os muros baixos de pedra seca já não dividem as antigas parcelas em que se cultivava o trigo, a batata, o tomate. Agora apresentam a figura de um tabuleiro de xadrez mal desenhado donde os reis, os bispos e os cavaleiros se foram a melhor vida, e de onde os peões emigraram para irem ganhar o pão no turismo da costa. Tem chovido com abundância nestas semanas. Como sempre, por toda a parte, reverdecem logo as ervas, ainda sombriamente porém, como e nas seivas viesse misturado algo do negrume calcinado da terra. Vou até ali de vez em quando (…) e julgava conhecer o morro passo a passo, com os seus restos de velhos muros onde se escondem, rápidas, as lagartixas, e onde esquálidos arbustos lutam contra a ventania, mas hoje, num rebaixo, fui descobrir dois algibes que antes me haviam parecido simples amontoados de antigos escombros. Subi aos tetos abobadados e espreitei pelas frinchas das pedras mal ajustadas. Havia água no interior, uma água verde, imóvel. Não existem nascentes perto (quase não as há em toda a ilha), portanto toda aquela água caiu do céu, alguma é destes dias, outra do ano passado (…). Quando regresso a casa olho para trás. Ai estão os algibes, tranquilos como uma ruína, indiferentes ao deserto em que os abandonaram. Vendo-os assim, guardando o que lhe foi confiado, compreendi a razão por que a estas cisternas chamamos arcas de água. Ao dizer arca, ao dizer água, estamos a dizer tesouro.
(1 de janeiro, Cadernos de Lanzarote IV)
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Durante um certo período de tempo, a minha irmã mais nova e afilhada viveu em Lanzarote, também. Por sua culpa, errei por lugares que me confundiram os sentidos e me fizeram disparar centenas de vezes os relâmpagos das máquinas fotográficas e do telemóvel: Las Nieves, por exemplo. Por exemplo, o Miradouro del Río (donde nos fere o azul claro da Graciosa e o profundo do oceano). Por exemplo, ainda, a Cueva de Los Verdes. Ou a vista ocre do La Corona (o maior cone vulcânico desta terra). Ou as vinhas escuras de La Geria, aninhadas em craterazinhas e aconchegadas em muretes de basalto. Ou o poderoso e avermelhado Parque Nacional de Timanfaya, com a sua imponente massa de lava solidificada. Ou os férvidos Hervideros. Conheci estes lugares como se conhece, deslumbrado, alguém que nos volta a cabeça do avesso. Absolutamente convencido de que também aqui viveria para a escrita, decerto não tanto como o cosmopolita Saramago, mas talvez como Hilário, o eremita.
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O escritor português soube rodear-se de um conforto notável. Da janela do seu antigo escritório alcança-se sem custo o mar. Na penumbra do espaço, brilham não só as lombadas dos livros e as vitrines, onde ficaram aprisionadas as suas canetas, mas igualmente o Atlântico ao fundo e as ramagens das araucárias, das alfarrobeiras, dos encefalartos do jardim. Na piscina da casa, nas suas varandas generosas, ou na Biblioteca a que me referi acima (conspícua, aconchegante, ampla), José Saramago soube criar uma teia imensa de vozes e de amizades, de que dá conta nos diários. Lanzarote, com o seu cenário exótico de cinzas e piroclastos, com a secura do seu corpo velho (onde apenas os catos e as balsamíferas de eufórbio suportam ser plantas), com a sua costa acidentada e de fortes contrastes cromáticos, tornou-se para as visitas de Saramago um motivo extra para regressarem. O escritor português gostava, de resto, de as receber na sua casa. Mais ainda se portugueses fossem.
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Maria Alzira Seixo chegou hoje, vem passar uns dias connosco. De cada vez que vou ao aeroporto esperar um amigo português tenho a curiosa impressão de estar a recebê-lo no próprio limiar da casa, como se toda a ilha de Lanzarote fosse minha propriedade, e não apenas estes dois mil e poucos metros empoleirados no alto da encosta que desce de Tías até Puerto del Carmen… Mais curioso é o sentimento de responsabilidade que me leva a desejar que o visitante só leve de cá boas recordações, isto é, que, dia e noite, o tempo, o céu, o mar e a paisagem tenham estado perfeitos, que o vento não tenho soprado demasiado, que nenhum turista distraído ou mal-educado tenha atirado uma lata de coca-cola ou um invólucro de cigarros vazio, que nenhum residente – canário, peninsular ou estrangeiro – tenha infringido o código não escrito que o manda comportar-se como exemplo de civismo quotidiano, que para isso, acho eu, é que temos o privilégio sem preço de viver neste lugar.
(14 de setembro, Cadernos de Lanzarote III)
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Que Lanzarote me haja parecido um paraíso é assunto discutível. A minha afilhada sorria, se e quando eu o afirmava categórico, chapinhando nas águas quentes da praia de Famara com a alegria e os planos de um garoto. Existe na ilha e no arquipélago uma dureza de que os forasteiros mal se dão conta. Há três anos lia e corrigia o manuscrito de O Moscardo e Outras Histórias, escrevia nessa paragem, diante uma lua cheia magnífica, as duas narrativas que fechariam o livro («José, Pilar» e «Famara»). A varanda noturna dava-me a impressão de que entre os vizinhos (em cujas garagens abertas se acendiam churrascos e se brindava de cerveja na mão) existia ainda uma unidade ancestral, perdida nas nossas cidades e aldeias. Os garotos corriam e jogavam à bola descalços, algazarrando de um modo que acordou a minha própria infância. Era como assistir ao passado em direto, como ter regressado a um aconchego inesperado, como ter ali à mão de semear o sossego, a jovialidade, a leveza de que se precisa para viver bem e escrever melhor.
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Mas a Catarina advertiu-me que o dia a dia não é fácil. Falta tudo aqui: água, carne e verduras, comodidades que noutras partes são banais. E o clima é duro, por vezes insuportável. Falou-me da calima, essa praga do deserto de que outrossim Saramago dá nota.
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Lanzarote não é sempre o paraíso. Ontem amanhecemos com o céu tapado pela calima, um ar espesso e soturno que transporta para aqui, por cima de cem quilómetros de oceano a poeira do Sara, e nos põe à beira da sufocação.
(25 de março, Cadernos de Lanzarote III)
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O que comove na Lanzarote de Saramago é o sentido de que uma terra inóspita e desconhecida possa ser a nossa casa. Exilado de Portugal, do Portugal cavaquista (é bom não esquecer), o escritor encontrou a sul, a mil e quinhentos quilómetros de distância o seu refúgio, o seu espaço, o seu tempo. Em Lanzarote viveu os 17 anos finais da vida, aí viu-o mundo o viu ressurgir, do chão, da cinza, colecionando pedras e miniaturas de cavalos, escrevendo alguns dos seus romances mais conspícuos. “Lanzarote não é minha terra, mas é terra minha”, escreveu. E talvez por isso também Lanzarote vê José Saramago como um dos filhos distintos e dele se orgulha.
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Quando os meus olhos, atónitos e maravilhados, viram pela primeira vez Timanfaya, quando percorreram e acariciaram o perfil das suas crateras e a paz quase angustiante do seu Vale da Tranquilidade, quando as minhas mãos tocaram a aspereza da lava petrificada, quando das alturas da Montanha Rajada pude perceber o esforço demente dos fogos subterrâneos do globo como se eu próprio os tivesse acendido para com eles romper e dilacerar a atormentada pele da terra, quando tudo isto vi, quando tudo isto senti, achei que deveria agradecer à sorte, ao acaso, à ventura, a esse não sei quê, não sei quem, a essa espécie de predestinação que vai conduzindo os nossos passos, o privilégio de ter contemplado na minha vida, não uma, mas duas vezes, a beleza absoluta.
(28 de abril, O Último Caderno de Lanzarote)
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É este o Saramago que idolatro. O homem que se serve do seu formidável talento para compor poesia com palavras cirúrgicas. Tal como a ilha que o acolheu, também o escritor português nos conduz por caminhos acidentados para nos desafiar a outra vida, a outro destino, a outra beleza que não mirra com a idade e antes com ela revigora. Em lugar nenhum podia Saramago ter cicatrizado tão profundamente a sua dor de homem desterrado. Nenhuma terra podia ter recebido filho mais grato e fecundo. Mãe e filho de um acaso. E ainda bem.