Pausa

Héleboro, Helleborus, Natal, Christmas
Fotografia de Annie Spratt

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Por fim a pausa.

Reconhecemos uma pausa quando trocamos o café pela poesia grega, quando trocamos a poesia grega pelo jardim.

Herman de Coninck, poeta e jornalista belga de que cujo sentido de humor gosto bastante, escreveu que num texto maravilhoso, dedicado à mãe, que «poesia tem a ver com a duração» e que é preciso «deixar que as coisas ganhem bolor / deixar que as uvas se transformem em álcool». Dito de outro modo, é bom chegar ao final de um lancil, olhar para trás, compreender o tamanho da nossa jornada e ficar quieto.

Trocar o ruído da cafetaria pelo longo tropel dos cavalos e pelo estrugir das armas em Homero constitui um excelente exercício de quietude, mas exíguo se comparado com a luminosa perfeição das heléboros ou do azevinho nestes dias de Natal.

De repente, tudo em volta se parece excedentário e absurdo. Pausar é regressar à justa medida da nossa alma, deter o passo seguinte (o passo em falso) e compreender como Coninck, no já aludido poema, «Tu és o relógio: o tempo passa / mas tu ficas».

21.12.2024

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Arcaísmos

Denis Doukhan
Fotografia de Denis Doukhan

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Poucas coisas me entristecem mais do que a sensação de me estar a tornar velho, velho precoce, velho engolido por um tempo recente, apostado sem clemência em destruir pedaços do humanismo que considera arcaicos, como a pena, a compunção, a castidade, a cortesia leal, a busca paciente, a amizade desinteressada, os gestos sãos, o prazer do silêncio e as saudades, a inteligência intuitiva, os poemas difíceis, o bricabraque, os termos que a língua materna e ancestral fossilizou e a língua franca existe serem lançados fora, como um corpo defenestrado e aleivoso.

Dou por mim a beber café à pressa, a ler pouco, a conversar às escondidas, a apanhar um raio de sol numa nesga, a riscar na agenda afazeres que jamais vou conseguir concretizar, a sentir-me um estorvo no meu próprio corpo, entre os meus pares, contra toda a expetativa que eles e eu formulámos acerca de mim e deles. Porque essa velhice de que falo atinge os antigos e os novos, os idosos e os adolescentes, eu e os outros, todos que fugimos de ver a realidade.

Suponho que os arcaísmos são um reservatório imenso de amor, de vitalidade, de verdade, de autenticidade que precisamos de resgatar. Suponho que não seria mau reintroduzirmos obséquios e donaire no quotidiano, de assumirmos uma coragem e uma galhardia que os nossos avós nos deixaram e que hoje, por culpa da ditadura das modas, da globalização, do apanágio de toda imensa ramificação da cultura pop politicamente correta, e engajada, nos não deixam exibir. Como se escrever ou dizer merda, por exemplo, representasse um atentado inaceitável ao pudor e não gostar da hipocrisia woke nos fizesse merecer o mesmo destino das estátuas derrubadas dos ditadores.

Enquanto isso, podemos fingir que somos civilizados, equilibrados e moralmente íntegros. E aceitarmos que nos palmem a História, ou a reescrevam, e nos impinjam conceitos equívocos e nos apaguem a língua. Tudo em nome da paz e da harmonia universais. Como no jogo das cadeiras, aquele que se atrasar, perde o assento e é expulso!

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A nossa própria imagem

Foz do Douro
Fotografia de arquivo pessoal (2024)

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Num dos poemas de No Tempo Dividido, Sophia de Mello Breyner Andresen escreve à laia de inscrição: «Que no largo mar azul se perca o vento / E nossa seja a nossa própria imagem».

O mundo pelágico era para a poetisa, como comummente se sabe, um espaço demiúrgico, quase religioso, de onde imergia a sua força criativa, o seu fascínio pelo tempo antigo (que era igualmente o seu fascínio pelo futuro indesenhável), mas também o seu gosto pessoalíssimo pelos povos que, tendo sulcado esses mares do passado longínquo (os gregos, em particular) nos deixaram a sua arte, a sua beleza, o seu nu e, neles (como na ontologia de Heidegger) o nosso destino.

Os poemas de Sophia constituem, sem exceção, exercícios de incomparável lapidagem. Lemo-los hoje com o relativo esquecimento a que toda a obra é votada depois da morte do seu autor. Mas, também por isso, os redescobrimos mais veementes, mais maravilhosamente esculpidos, mais verdadeiros. Lemo-los como uma extensão de nós mesmos, como se sentados num banco de jardim entre os troncos retorcidos de árvores gigantes (como estes metrosíderos da Foz do Douro) nos parecesse mais real o largo mar azul que tempos à nossa frente e vagueasse o nosso próprio espírito por entre essas ondas e aroma da maresia, e entre o corpo sentado e o espírito viajante existisse algo inominável. Algo como a nossa própria imagem olhada duplamente ao espelho.

24.11.2024

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Às escuras

vincent-nicolas
Fotografia de Vincent Nicolas

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Quando chegava a casa dos campos, era noite já. Acendia o candeeiro a petróleo, punha a lareira a arder, raspava um fósforo e com ele beijava o pavio arrefecido das velas, uma em cada quarto.

Vivia só. Odiava que os seus mortos caminhassem entre o outro e este mundo às escuras.

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O monge do fogo divino

Simone Eufemi
Fotografia de Simone Eufemi

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Albericiano era camponês. Aos quarenta e cinco decidiu deixar os campos, o pecúlio e a mulher para se juntar aos monges de uma ordem menor da província de Lucca.

Os filhos, todos maiores e casados, não acharam bem nem mal. À esposa não fez aquilo mossa, porque um marido negligente significava o mesmo que uma lareira sem lume. Os vizinhos aproveitaram o caso para encher a boca, satisfeitos por se verem livres de um focinho tão difícil, com crenças tão teimosas, multiplicado em gestos tão irrespondíveis.

Albericiano depressa preferiu o retiro das penhas ao interior pouco amistoso do mosteirinho onde o receberam.

Jejuava amiúde. De tal forma que o ventre mal se via. E orava. Orava com o silêncio, com os olhos, com as mãos. Para viver bastava-lhe a beleza dos restolhos, o orvalho das ervas, as penas e o pelo dos bichos que acariciava e que sabia serem duplos de Deus, se é que Deus visitava sítios como o penhascal onde se acoitou.

Nasceu a lenda de que Albericiano não precisava de se alimentar, nem sequer de raízes e gafanhotos como João Batista. Contava-se que convertia as criaturas perdidas das falperras (trânsfugas, salteadores e assassinos) em homens de fé. E que curava não apenas gafos e tuberculosos, mas todos os que definhando da cabeça ou morrendo de desgosto o procuravam.

E, no entanto, em toda a sua existência não proferira uma palavra, uma única palavra. Porque Albericiano era mudo.

Contavam que ele se nutria do fogo divino.

Como o brilho do luar sobre as folhas mádidas dos carvalhos, o monge alumiava sem tocar e ensinava sem falar.

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Cinzas

Nastya Kkvokka
Fotografia de Nastya Kkvokka

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Gosto de tocar as cinzas, de sentir o leve esboroar da sua forma frágil erguendo às narinas um olor distante de madeira consumida pelo fogo e dias de chuva e janelas altas sobre um horto de infância. Gosto de as varrer do ferro fundido da salamandra, ou do fogão, de usar um guardanapo humedecido com farrapos dessa matéria insubstancial para polir os vidros e até os metais. Gosto da limpeza que me fica quando dela liberto o espaço e à sucede saturação o ar limpo da sua ausência.

Gosto de olhar as minhas mãos e as minhas unhas manchadas, bordejadas, sujas pelo pó daquilo que existiu e se entrega ao nada sem protesto.

Desconheço texto mais belo sobre elas do que o que escreveu Robert Walser, integrado num livrinho magnífico, intitulado Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos. Apetece quase ler esse texto como uma oração, como o delírio de um eremita, como uma provocação silenciosa àqueles que (como nós) vivemos inteiriçados de orgulho e confiança nas coisas materiais. Eis um excerto: «A cinza é a humildade, a insignificância e a própria inutilidade e, muito em especial, ela própria está impregnada da crença de que não serve para nada. Pode alguém ser mais instável, mais fraco e mais pobre do que as cinzas? Dificilmente. Existe algo que poderia ser mais indulgente e tolerante do que elas? Muito pouco provável. A cinza não tem caráter e está tão afastada da madeira como o desânimo do triunfo.»

Quantas vezes nos sentimos como essa cinza de Walser. E quão especial podemos ser!

13.11.2024

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Poesia

Toa Eftiba
Fotografia de Toa Eftiba

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POESIA

Há muito que leio, escrevo, coleciono e amo a poesia. As minhas estantes amparam um número considerável de volumes escritos nesta arte que os antigos gregos diziam consagrada a Euterpe e cujo interesse cresce com o passar dos anos, à medida que me dou conta do incrível poder da liberdade deste ποιείν (poein): liberdade de pensar, liberdade de sentir, liberdade de dizer.

Hoje, nas minhas aulas, raro é o aluno que escolhe um poemário para a sua leitura lúdica e autónoma. Muito raro aquele que propõe aos colegas a leitura de uma obra poética de Sophia, José Régio, Miguel Torga, Antero, Pessanha ou até de Florbela Espanca ou Eugénio de Andrade (que, pese os «maus tempos para o lirismo», como escreveu Bertolt Brecht, ainda vão aquilatando algum sucesso). Raríssimo aquele que me confessa gostar, ou sequer compreender por intuição, este género literário.

Talvez, por isso, amargurado por também esta crise, por esta lenta extinção de amor, vou pensando cada vez mais obsessivamente num modo de preservar Homero e Hesíodo, Vergílio e François Villon, Whitman e Emily Dickinson, Federico García Lorca e Anna Akhmátova. Num modo de os fazer sobreviver à grande catástrofe do esquecimento e, sobretudo, ao cataclismo da indiferença. Porque o tempo me vem ensinando que as grandes batalhas pela sobrevivência do espírito estão quase condenadas numa sociedade brutalizada e brutal, prosaica e suja dos sentimentos aos cubos de cimento que pisamos na rua.

É preciso cuidar da poesia com urgência. Urge, como no grande silo das sementes de Svalbard, resguardar o mais extraordinário poder que detêm (conjugados) o cérebro, o coração e a coragem humanos. Simplesmente, no lugar de grãos, devemos calafetar versos no seu interior.

10.01.2024

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