Em casa também se debate literatura

Fotografia de Rafaele Corte

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– Não!

Joachim Meyer disse não como quem decapita o ar com uma espada.

– Não! Existe uma enorme diferença entre ambos!

E pôs-se a atingir com os olhos o canteiro das belas begónias que viriam depois desta neve tardia, a qual fazia pesar os torcidos de ferro fundido que suportavam o vidro da estufa.

– Sempre gostei da escrita de Michael – ripostou Christine. É um homem superelegante e fala bem.

– É uma avelã chocha…

– Oh, Joachim!

– Christine, lês mesmo um tipo que repete metáforas românticas vomitadas há três séculos desde Wordsworth e que não sabe quem foi Wordsworth? Um tipo que cola hífenes para disfarçar a pobreza de vocabulário? Que lê os seus poemas como um gato com um cio, mas incapaz de dar-se conta das redundâncias e da verborreia e de um mau verso «o inverno transforma as paisagens», ou do fedor dos próprios dentes?

– És cruel, Joachim!

O inverno na Baviera não transforma a paisagem, apenas a cutila bastante e a apaga num azedume por vezes alcoólico. Apaga-lhe o tom alaranjado das longas florestas que sobem com o Isar até ao Danúbio e afugenta das bocas o sorriso que teriam outrora os autores das litografias. Aqui o branco não se distingue do branco. Meyer vê o focinho de uma raposa e pensa nas suas begónias sepultados no nada, escuta o crocitar das gralhas e pensa em Schumann, discute com a mulher e sente uma vontade irresistível de beber. O mundo monocromático e gélido é uma merda.

– Existe uma enorme diferença de talento entre Michael e Johann. Uma enorme diferença.

– A tua obstinação. Bolas…

– Johann escreve devagar e bem, com luz, mas sem fogos de artifício, medindo as palavras e colocando-as em ogivas delicadas como um pedreiro nas catedrais.

– Juro, não entendo a tua raiva a Michael…

– É um balofo. Escreve muito e mal, aparelha ideias ocas e anda sempre atrás do aplauso.

Christine olhou a neve. O gentil precipitar dos seus flocos recordava-lhe alguma coisa antiga, repleta de graça e de amor, talvez o incipit de um desses admiráveis contos de Jacob e Wilhelm Grimm.

A literatura é um destino terrível, imbricado de bifurcações, onde facilmente dois companheiros de jornada se perdem. Há sempre o caminho da direita e o da esquerda e nunca se pode saber com um mínimo de certeza o que nos espera do outro lado das boscagens.

O inverno na Baviera não transforma a paisagem. Somente as almas, que lhe perscrutam o branco e às vezes divisam palavras, outras vezes passamanes feios a fingir que o são.

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