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Antoine de Saint-Exupéry, malogrado piloto francês que o mundo inteiro conhece como autor das frases magníficas de O Principezinho, escreveu no seu Diário a entrada seguinte, datada de 21.06.1944.
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Entre os povos tuaregues de Marrocos e da Argélia, um estrangeiro descobre que as palavras valem mais sendo menos, sendo maior o silêncio que as separa umas às outras. Também aprende que o cheiro das dunas e o efeito de um chá de hortelã (bebido quase a ferver no pico do dia) podem abrir, na sua cabeça obtusa e dorida, corredores profundos e misteriosos.
Esse forasteiro aprende que o valor de um homem é o preço das suas imagens. Das que flutuam dentro dos olhos e que, muitas vezes, são a renascença das suas memórias. Da coragem de regressar aos antigos sonhos, aos impulsos que as noites continuam (impoluta, legitimamente) a segregar dentro de si.
Um homem civilizado desce as províncias de França e os Pirenéus, deixa para trás as velhas fronteiras da Ibéria e atravessa a boca do Mediterrâneo, adentra-se no deserto e torna-se aos poucos um resgatado, um coração limpo, uma criança posta de novo no sussurro da existência.
Esse homem que se arrisca no desconhecido não descobre um simples tufo de ervas no percurso que faz ao longo de milhas. E, no entanto, acorda à medida que as percorre. Não encontra um poço de água ou uma sombra ou outro animal diferente da sua montada. E, porém, jamais se sentiu tão desperto ou tão próximo das formas de vida. Toda a imundície colada ao corpo e todo o lixo aninhado nas partes da sua alma são como que lavadas na fricção contra as milhentíssimas luzes das areias que o vento faz deslizar facilmente.
Quando, de um instante para outro, nuvens de pó se erguem do erg e quase sufocam a paisagem e a sua garganta, esse homem vindo de fora vê como os imazighen resistem cheios de nobreza, tapando sem queixumes o rosto envelhecido e encostando a cabeça respeitosamente ao dorso do dromedário que conduzem.
Um estrangeiro compreende que é no pó que os olhos veem mais longe. É no meio das tempestades que os olhos alcançam a chamazinha do espírito julgado perdido.
Na confusão dos elementos vinca-se nele a certeza de que viver não é um jogo, mas um privilégio e de que não existe outro caminho para a vida senão livrarmo-nos de todas as mentiras que a luz fulminante do deserto denuncia.
Entre os povos nómadas, um homem sedento da verdade escuta frases demoradas.
«Se queres a vida dos outros, entrega-te às cidades. Se queres a tua vida, entrega-te à solidão!»
Demora de facto a atingir este pensamento.
Por isso, um estrangeiro vem. E não regressa.
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