Nunca digas «Deste vinho não beberei!»

Mart Production
Fotografia de Matt Bradoc

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Vivemos hoje num estranho mundo em que os vizinhos se olham uns aos outros com ar ciumento e com aquela expressão “Vós é que a levais boa!» É o resultado deplorável do desconhecimento que mantemos sobre as casas alheias. E, nesta matéria, ninguém é mais vítima deste desconhecimento recíproco do que o Padre Inocêncio.

Pobre sacerdote. Pese o adiantado dos anos, com os seus achaques de asma e do reumático e dos acessos de gota, todos lhe invejam a rotina sossegada e solitária.

«Esse», dizem as línguas compridas e os dedos estalejantes «Esse anda sempre na fresca ribeira. Ninguém o azucrina!»

E, no entanto, leitor, nada mais falacioso e despropositado.

O Padre Inocêncio arrosta como todos nós, os demais, provações e amargos de boca. Quantas vezes os seus pensamentos se inundam em segredo de tristezíssimas, e lhe sibila o peito durante as insónias, e se deixa o coração aferroar pelas tenazes malignas dos inumeráveis problemas que, corriqueiramente, lhe entram vida adentro, noite fora, alma a fundo.

Um exemplo.

Todos sabemos que ele e o rebanho de que é responsável celebraram há pouco a quadra pascal. Ouvir em confissão os paroquianos, sermonear-lhes a palavra boa das Escrituras, presidir aos cortejos da Santa Semana, organizar a equipa dos zeladores da igreja, certificar-se de que as flores brancas decoravam todos os altares, etc., não, não foi pera doce!

O Padre Inocêncio ministra as suas eucaristias de um modo solene e rigoroso. Tudo tem de passar pelo seu crivo.

Pois, leitor, ao infeliz Padre Inocêncio sucedeu-lhe no final da Missa de Ramos precisar de puxar as orelhas aos quatro jovens acólitos que, durante a cerimónia, se puseram a esgrimir as hastes de oliveira como se se tratassem de espadas. E que fizeram do Hossana uma bulha digna das melhores páginas de Alexandre Dumas.

O senhor Padre Inocêncio repreendeu-os muito. Uma missa é uma coisa séria, ou não? Seria hora e lugar para farras, porventura? Que desavergonhamento tinha sido aquele? Todos na assembleia a rir, quando deviam todos chorar, chorar de amargura em atenção à paixão de Jesus que se aproximava bíblica e inexoravelmente.

No Sábado de Aleluia, o velho sacerdote quis que se cumprisse a preceito a Vigília Pascal.

E vigiava o bom homem. Vigiava com carão severo não apenas o regresso da luz, durante a lucernário, «Christus heri et hodie, Principum et Finis…», como o comportamento dos travessos sacristães que de quando em quando (podia adivinhá-lo) se entreolhavam com um riso, com um esgar, com um subentendimento (pressentia-o) verdadeiramente malévolo.

Muito espirrou nessa noite o Padre Inocêncio. A cada atchim enterravam-se-lhe os olhos, arrascanhava-se-lhe a garganta, melava-se-lhe a voz. Tapavam-se os ouvidos. Lá tinha de erguer a sobrepeliz e retirar da algibeira o lenço encharcado de muco.

O quarteto de ajudantes lá lhe ergueu o círio e lhe segurou a caldeira da água benta, lá lhe trouxe o turíbulo e lhe levou de volta o óleo quaresmal.

Em dado momento, já numa agonia de moribundo, o Padre exclamou «Eis o cordeiro de Deus…» e ingeriu um pedaço do corpo sagrado de Cristo. De seguida, malditos espirros que não paravam, assou-se com os olhos afogados em lágrimas e ingeriu um pouco do sangue sagrado de Cristo.

E quando os paroquianos proclamavam que o mesmo Cristo não era digno de entrar em suas moradas, o Padre Inocêncio (num arranque de vómito, numa golfada sonora e aflitiva, numa cuspidela em funil que borrifou a toalha do altar, o Missal Romano e a primeira fila da assistência) devolveu-lhes Cristo inteiro!

«Bah, que puta de zurrapa!» arrepiou-se todo. E isto alto, isto para que todos ouvissem bem, que ele já mal escutava.

Mas que tinha ele afinal bebido?

Soube-se (tudo se apura onde as orelhas esticam) que os quatro mafarricos haviam, entre si, jurado substituir no cálice o vinho por vinagre. Um desavergonhamento!

«Mas olha, não fraquejaram aqueles…, aqueles… (faltava ao Padre Inocêncio o termo exato). Não fizeram como São Pedro, lá nisso… E não se atraiçoaram. Nem um só deles foi capaz de entregar os outros… Não fizeram como Judas, lá nisso, aqueles…, aqueles… (continuava a escapar o inocente vocábulo do insulto). Lá nisso, não imitaram o Iscariotes…».

E cismou o pobre homem ao longo dessa noite magnífica em que Cristo ressuscitava e a sua alergia (acirrada pelo fedor cítrico), lux in tenebris, dava aos poucos, finalmente, lentamente, sinais de se finar.

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