
O que têm em comum João de Panónia e Aureliano de Aquileia, o missionário David Brodie e o romancista Pierre de Menard, o assassino Avelino Arredondo e o poeta Ollan, a bela Ulrica e Abenjacan (o Bohkari), a vingadora Emma Zunz e um velho professor de Cambridge, que fortuitamente encontra o seu duplo jovem, no mesmo banco diante o rio Charles?
Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo ‒ Borges ‒ conheceu o mundo há 115 anos, em Buenos Aires, neste dia 24 de agosto. Ele, um dos maiores/ melhores contistas de todos os tempos, anotou um dia «Não sei se sou um bom escritor; penso ser um excelente leitor» (Prólogo de Biblioteca Pessoal)[1]. Falsa ou sincera, a modéstia de Borges é gritante, já que a sua obra constitui um caso raro de criativa reformulação de tópicos e temas literários. Como ele próprio escreveu, «Se o Universo consta de um número finito de termos, é rigorosamente capaz de um número infinito de combinações (…).» (História da Eternidade). Os textos que nos deixou são do mesmo modo, metonimicamente, um recombinar constante de temas e de termos, em que afirmou a singularidade do seu génio.
Depressa identificamos as suas obras-primas. Contos como «O outro», «O espelho e a máscara», «A noite das mercês», «Utopia de um homem que está cansado», «O Livro de Areia», «O imortal», «Os teólogos», «A casa de Astérion», «A busca de Averróis», «O Aleph», «A Biblioteca de Babel», «História de Rosendo Juárez», «O outro duelo», ou «Evangelho Segundo São Marcos» (só para dar alguns exemplos) evidenciam as linhas mestras de uma narrativa repleta de incursões bibliográficas (sem dúvida, bibliófilas), personagens fabulosas, círculos e labirintos, bibliotecas e desertos, paisagens exóticas e alegóricas, símbolos e grafismos, duplicações e perplexidades, erudição e criatividade. Borges será um tanto hermético (a complexidade do pensamento coincide pouco com a ligeireza), mas é igualmente um Ícaro, que quis alçar a sua visão a tudo o que jamais existiu, um homem sedento da vertigem do saber e da síntese, como se deduz da leitura de um dos seus melhores textos, porventura dos mais difíceis também: «(…) o lugar, onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do globo, vistos de todos os ângulos. (…) Então vi o Aleph (…). Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos deleitosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o facto de todos ocuparem o mesmo ponto, sem sobreposição e sem transparência. O que viram os meus olhos foi simultâneo: o que transcreverei a seguir, sucessivo, porque a linguagem assim o é.» (O Aleph).
Mas o culto e oculto Borges, o homem discreto e cego que não logrou o Nobel da Literatura, que albergou nas veias sangue judeu, gaúcho e português, além de contista, ensaísta, professor, bibliómano e bibliotecário, foi um poeta. Numa nótula sobre A inteligência das flores de M. Maeterlinck confessou que «Do espanto nasce também a poesia.» (Biblioteca Pessoal) e esse espanto disseminou-o ele numa obra poética em que sublimou os átomos da vida e do sonho, do belo e da força (à semelhança, do que antes dele, havia feito Walt Whitman em Canto de Mim Mesmo): «No meu secreto coração louvo-me e justifico-me: / Testemunhei o mundo; confessei a estranheza do mundo. / Cantei o eterno: a clara lua que regressa e as maças do rosto que o amor prefere. / Comemorei com versos a cidade que me cinge / e os arrabaldes que me desterram. / Eu disse assombro onde outros dizem apenas costume. / Perante a canção dos tíbios, acendi a minha voz em poentes. / Os antepassados do meu sangue e os antepassados dos meus sonhos / exaltei e cantei. / Já fui e sou.» (poema «Quase Juízo Final», Obra Poética, vol. 1). Sobre a distinção poesia/ prosa cristalizou este pensamento, de que me apoderei com entusiasmo: «Suspeitei uma ou outra vez que a distinção radical entre a poesia e a prosa está na diferentíssima expectativa de quem as ler: a primeira pressupõe uma intensidade que não se tolera na última.» (História da Eternidade).
Admirador de As Mil e uma Noites (que colecionou em diferentes versões), de Swift, ou de Kipling, de Tomas de Quincey, Stevenson, Poe, Wilde, de Dostoiévski, Melville, Eça de Queirós (a quem comentou O Mandarim), de Kafka, Herman Hesse, Henri Michaux ou de Dino Buzzati, Borges procurou na literatura universal de todos os tempos (ele que estudou o Gilgamesh, a Ilíada, a Eneida, as kenningar islandesas, os escritos medievais europeus e árabes, a poesia oriental) o mesmo assombro, o mesmo exotismo, a mesma paixão pelo insólito que deixou transparecer nos versos citados e em praticamente toda a sua obra ficcional.
O escritor argentino é ele próprio um caso assombroso ‒ insólito ‒ de reinvestimento literário. Ou, se preferimos, de devoção pela literatura. Não se limitou a ler a obra dos outros, a comentá-la, a publicá-la (envaidece-o ter dado à estampa o primeiro conto de Julio Cortazar), a procurá-la e a adquira-la em edições de toda a espécie ‒ incluindo raridades bibliográficas (como as que enuncia no conto «O outro»). Borges criou a sua escrita dos outros!, como se a sua própria literatura mais não fosse do que uma falsa História da Literatura, ou como se a História da Humanidade mais não fosse do que uma cíclica remissão para a Literatura.
No conto «O Livro de Areia» fala-nos de um livro que não tem «princípio nem fim»: «O número de páginas deste livro é extremamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última.» Em «O imortal» reproduz o manuscrito de um legionário romano que alcançou a Cidade dos Imortais, algures no deserto africano, onde Homero (um dos muitos da tribo dos trogloditas), lhe explica a simetria do mundo, isto é, «O conceito do mundo como sistema de preciosas compensações»: «Existe um rio cujas águas dão a imortalidade: noutra região qualquer haverá outro rio cujas águas a apaguem.» Em «Pierre Menard, autor de Quixote» (no livro Ficções), deparamo-nos com um exercício monográfico (com toda a secura, objetividade e erudição do estilo) onde se dá conta da «empresa complexíssima e de antemão fútil» do autor francês de «produzir umas páginas que coincidissem ‒ palavra por palavra e linha por linha ‒ com as de Miguel de Cervantes», porque (e a frase é uma das inúmeras que facilmente citaríamos a Borges) «Todo o homem tem de ser capaz de todas as ideias…». Por sua vez, em «Os teólogos» ‒ um dos mais extraordinários que compôs ‒ recria, decalca, sugere a disputa de dois teólogos cristãos, cuja escrita originou não só o ciúme, como a condenação de um e o castigo do outro, numa espécie da roda da fortuna, alegoria da própria instituição literária, do sucesso e do fracasso, da glória e da desgraça, que pode um texto e um autor conhecer ao longo do tempo.
O leitor borgesiano sente-se perdido na multiplicidade de situações, citações e alusões em que a realidade textual parece confundir-se e acoplar-se à realidade extra-textual. Depressa aprenderá a suspeitar e a desvalorizar a verdade dos factos narrados e a preferir o deleite da verosimilhança (mesmo que no domínio do fantástico). Depressa se dará conta que o grande leitmotiv de Borges é a alegoria do labirinto, da mise en abîme: «Não despertaste a vigília, mas um sonho anterior. Esse sonho está dentro de outro, e assim segue até ao infinito, que é o número de grãos de areia. O caminho que terás de fazer é interminável e morrerás antes de teres despertado realmente.» (conto «A escrita de deus», O Alpeh).
O estilo transgressivo de Borges revela-se, por outro, na extrema facilidade com que ‒ promovendo a indefinição de géneros literários ‒ constrói os seus textos. Quem lê a sua História da Eternidade apropria-se de um conjunto de ensaios que convocam o estilo narrativo (a voz que condensa a informação chega a parecer a voz de um narrador de ficção). Em contrapartida, os seus contos estão pejados de notas bibliográficas e transcrições, semelhantes em tudo às que se exigem ao discurso ensaístico. Deleita-se o autor em sublinhar os seus próprios pensamentos, citando fragmentos e autores que o ajudaram a criar o seu próprio texto, porque «Durante muitos anos acreditei que me seria dado conseguir uma boa página mediante variações e novidades. Agora, completados os setenta, julgo ter encontrado a minha voz» (confessa no Prólogo d’ O Relatório de Brodie).
Termino, declarando Borges um dos numes do meu panteão. As afinidades não se discutem, nem se explicam. Quando delas me dei conta pela primeira vez, escrevi o conto «A Solidão de Borges» (texto que mantenho inédito), onde não apenas o homenageio (tomando-lhe de empréstimo o gosto pela transgressão e pelo fantástico), como experimento a mesma dose de gozo pela subversão da realidade, ao ficcionar o encontro com ele (morto em 1986) na Lisboa dos nossos dias.
Admiro-o profundamente, leio-o amiúde, cito-lhe palavras cheias de luz, como estas que poderia subscrever uma a uma: «Ao longo do tempo, a nossa memória vai formando uma biblioteca díspar, feita de livros, ou de páginas, cuja leitura foi uma felicidade para nós e que gostaríamos de publicar. (…) Os professores, que são quem dispensa a fama, interessam-me menos pela beleza do que pelos vaivéns e pelas datas da literatura e pela prolixa análise dos livros que se escreveram para essa análise, não para o prazer do leitor.» (Biblioteca Pessoal).
[1] Sirvo-me das edições portuguesas da Quetzal.