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Uma das secretas alegrias ao nosso dispor – aprendi-o apenas na última etapa da minha vida – é a serena beleza da luz nas manhãs em que o sol, sem pressa, sem violência, sem fulgor demasiado, cai no vidro das janelas e o interior da casa se vê, de repente, alcançado por uma espécie de graça indizível em que claridade e sombra acordam paredes, móveis, espaços vazios, papéis caídos no esquecimento, retratos, pequenos sons que concitam uma paz sem palavras, ordenada, casta e limpa.
Sentimos, como nos quadros de Vilhelm Hammershøi, o habitar do silêncio: o branco diáfano das portadas, os caixilhos de madeira, as salas iluminadas pela obliquatura dos fotões, a firme mas dócil presença do infinito exige de nós o melhor de que somos capazes. Sentimo-nos rente a um corpo despido que nos toca devagar e devagar nos despe, obrigando-nos a conhecer palmo a palmo a natureza daquilo que existe ao redor. De alguma forma, como nas paisagens tranquilas de Vilhelm Hammershøi, a luz é um poema prestes a nascer.
Ora, neste tempo de rancorosas traições à verdade, de deserções à justiça, de raivosos ataques à ética, esta pequena paz matinal é um vestígio do Paraíso. Dito de outro modo, é o que nos permite suportar o peso quase insuportável do mundo distorcido e venenoso, pondo-nos a comunicar com algum quinhão intocado da alma, como se dela emanasse ainda o poder e a força que permitem os estremecimentos da pele, ou o simples verde das ervas que cheiram mais alto, das árvores que farfalham mais vivas, do pão e do café que nos aguardam numa mesa impecavelmente branca e inocente. Diria que é uma sorte termos tudo isso, ainda tudo isso – repito – ao nosso dispor.
01.03.2025
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