Ali, junto ao mar, sentindo nas costas a presença majestosa do farol, olhando à sua frente o istmo de areia muito branca e nele o enrolar da água azul, respirando longamente o misto húmido-enxuto das algas e das dunas, Céu sentiu esvaziar-se-lhe a cabeça, ou mais propriamente talvez, sentiu-se preenchida por uma sensação inefável de bem-estar. Era a mesma terna alegria que em criança experimentava no labirinto de roupas brancas que a avó deixava a flutuar nos estendais batidos pelo sol. Nesses dias (recordava-se tão bem) fechava os olhos e aspirava em haustos profundos o aroma do sabão. Nesses dias (como recordar pode ser tão maravilhoso) era como se a sua vida coubesse inteira no pátio invadido pela luz e pelo perfume.
Agora, ali, junto ao mar, a brisa do final da tarde fazia-lhe cócegas no rosto, soprando sobre ele as farripas loiras do cabelo e o pó subtil do areal. Apetecia-lhe dançar, erguer os braços, gritar, girar sobre si mesma mais e mais depressa, cada vez mais vertiginosamente, para que as imagens e os cheiros, para que as ténues variações de frio e de calor se fundissem e com eles se fundissem também o tempo e todas as memórias. Céu sentia-se feliz. Muito feliz.
O homem que ela amava fotografava-a, sorrindo. Exigia-lhe, porém, poses, postura, correção. Um atrás de outro o homem que a amava fazia disparar relâmpagos com o pequeno orifício vítreo do telemóvel. Reclamava a sua beleza, os seus olhos verdíssimos, a sua atenção, o seu corpo. Raios o partissem. Seria tão bom tê-lo apenas quieto e protetor junto a si, como o farol centenário, dentro do seu sonho desperto, a brincar consigo e com o amor e a terra, naquela dança eutrapélica e cheia de graça. Puxou-o por isso contra si. Libertou-o do objeto tirano. Beijou-o. Era preciso resgatar os dias perdidos. Peneirando-se no tecido de pequenas nuvens tardias, o sol abria linhas oblíquas. Como se dito pela primeira vez, como se fosse possível redizê-lo como da primeira vez, soprou as duas palavras com intensidade, com intenção.
Junto à costa portuguesa, nos antiquíssimos lugares onde mar e terra disputam eternamente cada milímetro de espaço, convergem belos caminhos luminosos ao longo dos quais, especialmente nos meses de verão, avançam centenas de peregrinos rumo a Compostela.
Não deixa de surpreender-nos essa visão do caminhante, não raro sozinho, bordão em riste, mochila pesada às costas, chapéu na cabeça, botas ou ténis nos pés, misturando-se aqui e além com a multidão de banhistas que vai descendo às praias, comendo gelado, espreguiçando-se nas incontáveis esplanadas que povoam o litoral.
Karen viajou da pequena cidade de Ålbaek, no norte da Dinamarca, para o Algarve, no sul de Portugal. Depois de um curto fim de semana em casa de amigos, subiu de comboio até ao Porto, a partir de cuja catedral iniciou o percurso atlântico que lhe faltava cumprir. É uma professora de línguas, especialista em idiomas raros e dialetos ameaçados, como o feroês, o emiliano-romanholo, o valão, o frísio, o iídiche, o gaélico, o romani ou o galego.
Há muito que a impressiona a língua do noroeste peninsular. Na sua húmil opinião, galegos e portugueses deviam inteirar-se do muito que possuem em comum e reaproximar-se. Não há muito publicou um artigo onde dava conta da sua concordância com as correntes filológicas mais modernas, segundo as quais «A língua galega deu origem à portuguesa e a língua portuguesa, filha ingrata, renegou a maternidade, fingindo-se fruto de outro parto».
Para si, esta variante do Caminho é mais do que um trilho medieval. É como atravessar o cerne de uma unidade antiga que continua a existir, tanto linguística como culturalmente, visto que para si para Portugal e Galiza são as duas metades de um mesmo pulsar ancestral, céltico, romanizado, distinto do modo de ser e do modo de pensar da restante Ibéria.
Uma das maiores conquistas da vida de Karen é o prazer de calcorrear a Europa e de se inteirar das maravilhas que o tempo não apagou inteiramente.
Esta manhã, por exemplo, um pouco antes de percorrer um passadiço entre cinco magníficos moinhos de pedra, viu uma mulher idosa puxar um pesado carrinho repleto de sargaço. E presenciou um pouco adiante à chegada de coloridos pequenos barcos, que (atrelados a um trator) iam escalando uma poderosa rampa até a uma lota, onde deixaram a sua pescaria confusa, no meio de uma nuvem de gaivotas e mulheres vestidas de negro.
Karen penetra agora numa igrejinha bem no centro de uma cidade ou vila, que lhe chamou a atenção pelo misto de casas de épocas diferentes, pela pacatez e limpeza das ruas, pelo número de cafés e lojas que se seguem uns aos outros, de portas tranquilamente abertas e todas com o franciscano Antonio (a que os de cá chamam de Lisboa e em Itália Il Santo di Padova) encimando prateleiras, carregando o Menino num braço, no outro os Evangelhos, em toda a sua pessoa carregando a esperança de sucesso e de bons negócios dos comerciantes.
A igreja onde entrou é realmente minúscula. Vem aqui carimbar a sua credencial, orar num templo católico na fé luterana em que foi ensinada, confirmar as informações que constam no seu guia. Karen observa o altar-mor, ricamente adornado com motivos florais, os altares secundários (de Nossa Senhora das Dores, trespassada por sete espadas agudas, do Cristo agónico, vestido de roxo, arrastando a cruz em que há de ser supliciado), os arcos, o púlpito, o brasão com as armas de Portugal, os caixotões no cimo, a capela lateral, construída (segundo apurou) em honra do Senhor dos Mareantes e em cujo teto estão pintados os doze profetas messiânicos do Antigo Testamento.
Causa-lhe desconforto esta profusão de santos, cristos, virgens, profetas, talha dourada, azulejos e pinturas contrastante com a severidade do chão lajeado, dos bancos de madeira e mesmo com o coro-alto. Choca-lhe estas esculturas barrocas, cheias de uma dor e de uma piedade absortas e postiças. Ao menos, a estátua de São Tiago é neutra: o apóstolo segura o seu cajado, a sua cabaça, a sua concha, o seu manto, o seu chapéu dobrado com a vieira estampada, a sua escarcela, sem enfatuamento, como embalsamado no pasmo de que por sua causa venham novos e velhos de todo o mundo percorrer, como esta mulher nórdica, as insondáveis veredas que conduzem às suas relíquias, esquecendo que deveriam conduzir antes ao Altíssimo.
Na primeira fila está um homem ajoelhado. Karen afirma o olhar, surpreendida de nele não ter reparado antes. Detém-se instintivamente, receando perturbar com o som dos seus passos o momento religioso. Ninguém deve interromper o diálogo de um crente com o seu Deus. É um homem de meia-idade, não se saberá precisar-lhe a idade, talvez trinta e muitos, talvez quarenta e poucos. Não possui os traços de um cristão vulgar, pois se assemelha a um qualquer homem citadino no vestir, no corte de cabelo, nas feições secularizadas e arrogantes. Nas mãos segura um mistério, um desses fios de contas que lembram um terço mais curto ou a japamala dos budistas. É notável que não esboce qualquer movimento com os lábios ou com os olhos. Os dedos tocam as pedras, mas quase não se vê girar o objeto, denotando ausência de pressa, quem sabe uma convicta conversa com o Além.
O passaporte está carimbado. Karen deve tingi-lo duas vezes por dia até ao término da sua jornada, a duzentos e dezassete quilómetros a nor-noroeste, ou se preferirmos a cinco dias de viagem.
Abandona a igrejinha pensativa. Não lhe sai do pensamento a ideia de que rezar é um caminho interior complexo. À medida que se percebe o quanto é fútil mostrar, mais lhe parece necessário esconder. Ao longo dos séculos, milhões de peregrinos (reis e rainhas incluídos) chegaram à mesma conclusão: o Caminho de Santiago aprende-se muito devagar, não raro ensanguentando os pés, muitas vezes ferindo o orgulho.
O caminho de uma catedral é a passagem drástica do exterior para a sombra e depois, paulatina, a passagem da penumbra para a luz, a admirável presença do silêncio nas imagens que passamos a ver e antes não víamos por excesso de ruído. é conhecida a minha preferência pela arquitetura gótica, o meu fascínio pelo rigor geométrico absoluto, pelo deus que nelas desenhou, cortou, esculpiu, ergueu a pedra e o vidro, o metal e o próprio ar, o meu amor pela linguagem secreta das junções entre o cosmos e o corpo.
Assim que transpomos o pórtico e caminhamos pela nave lateral à esquerda, os séculos atropelam-se. primeiro, uma inscrição em inglês e latim, a lembrar o milhão de mortos do império britânico na primeira grande guerra (muitos dos quais, lê-se, jazem em território belga). depois, o colorido hagiográfico dos vitrais. por exemplo, este onde os meus olhos agora se detêm, retratando o colóquio de um monge e um secular, mesteiral, burgomestre, quem sabe, com molho de chaves na mão. mas é noutro plano, mais distante, em fundo, que me surpreende o cenário. genufletindo, um outro homem (ou mulher com vestes de homem) recebe o chamamento. o pintor fê-lo admiravelmente, fazendo descer sobre o seu rosto o traço amarelo, vivo, oblíquo (agora mais iluminado pelo fulgor da manhã de agosto) da revelação.
Fotografia de arquivo pessoal (2019)
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Percorremos o transepto, tocamos a estátua dourada do arcanjo Miguel, carregando sobre o demónio (um crocodilo, de boca aberta e dentuça ameaçadora), depois a abside, a nave oposta. aí, para lá da galilé, os crentes celebram uma missa. contemplamos o órgão e o púlpito, trabalhadíssimo, de madeira negra, formidável. acendemos a nossa vela, rumorejada com palavras de amor e petição.
Nunca sei o que sentir nestes lugares. e, no entanto, os pormenores regressam, como nós regressámos nesse dia ao coração da cidade. às vezes na luz impura, vejo-os como recortes nítidos e nostálgicos e medito sobre o seu significado.
Qualquer que ele seja, é pessoal. creio que o caminho de uma catedral é esse.
Chegámos à cidade ao início da tarde. depois de nos apearmos do autocarro, avançámos por uma espécie de pista de tartã em direção ao centro. havia um casal de russos, havia de minuto a minuto o som espaçado de uma bicicleta (todo o ruído ali, aliás), havia a memória fixa de Amesterdão, dos subúrbios húmidos onde crescem álamos e nevoeiro, do Vondelpark pejado de corvos e estrangeiros, dos quadros de Brueghel reproduzidos em calendários de bolso.
Sempre gostei de lugares onde se chega a pé aos lugares, onde as árvores e a poesia crescem juntas na mesma água e na mesma terra, digo, na mesma luz, onde o silêncio é tão limpo quanto o chão e o vidro das janelas.
Entrámos em Bruges por uma grande praça ladeada de casas antigas, hotéis, um curioso edifício feito de grandes tubos verticais por onde o vento ecoa, exportando um som indefinivelmente musical e alienígena. traçámos a nossa rota anárquica, observando as grandes cúpulas das igrejas e os nichos dos santos, fotografando o nome das ruas e as singulares numerações pintadas nas paredes de tijolo, apontando mentalmente pormenores (a rapariga das tranças a transportar os manuais escolares novos, o leão flamengo a dançar na bandeira amarela sobre os telhados, as extravagâncias de chocolate nesta e naquela vidraças).
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Caminhámos em meia lua, depois em reta, por cima de ladrilhos artísticos, através de uma pontezinha, nas traseiras de uma catedral, lado a lado com os barcos repletos de turistas.
Sobre um canal dois octogenários de mão dada abraçaram-se, depois deram um beijo. vimos sorrisos trocistas, ouviram-se exclamações em pelo menos três línguas. a tarde pareceu-nos uma cortina dourada caindo sobre os jardins. julgo que terei dito algo a propósito de Bruges ser uma dessas cidades onde gostaria de viver.
Era tarde. Adiante de Lampedusa, o homem deixou de bater os remos. Não fazia a mínima ideia de para onde ir. Pôs-se a imaginar a profundidade do mar no ponto exato em que se encontrava. Pensou também que daí a horas todo o orbe se cobriria de estrelas e que, entre elas, se avistariam generosamente anos-luz de negrume e de solidão. As ilhas mais próximas estariam a uma distância imprecisa, como nos poemas fatais de Heliodoro. Ali era o centro, o princípio e o fim do mundo. Não era fácil.
O homem não sabia porque lhe acorriam tantos pensamentos e tão avulsos. Talvez no fundo de toda aquela água imensa jazesse ainda alguma falua egípcia ou algum birreme romano, com as suas ânforas intactas, com o seu vinho e o seu azeite, com o seu garum ibérico, com os seus óleos e essências fenícias. Ou quem sabe os restos fossilizados de um dos companheiros de Ulisses. Ou dalgum soldado da primeira, da segunda, da terceira guerras púnicas. Ou dalgum dos muitos inimigos de Napoleão e de Rommel e do general Montgomery. Tantos ossos ali sepultados!
O homem não via porque não crer na possibilidade de ali intersecionar, ao acaso, eras e nomes, memórias e sensações. O seu barquito tranquilizava-se no doce ondular da luz e da maré. A viagem trouxera-o sem destino. Apetecia-lhe, não sabia bem, voltar, continuar ou permanecer para sempre assim. Não era fácil.
Recolheu os remos e deitou-se. Aos poucos foi tomado pelo sono. Apenas uma ou outra ave cruzavam o azul, onde os seus olhos viam o agitar dos fosfenos. Acudiu-lhe que se sentiria assim Augusto antes das batalhas, embalado quem sabe nas galés imperiais pelo poema de Virgílio e pelas ondas traiçoeiras do Mare Nostrum. Suetónio aludiu à narcolepsia e à cobardia deste Otávio, antes das batalhas. O homem cedia ao cansaço. Pavorosas palavras teimavam fazer-se escutar na sua cabeça. Imperador ou não, ser-se humano faz-nos descer e subir nas mais perturbadoras ilusões. Por fim, o homem adormeceu.
A cabeça conduziu-o a uma terra cuja existência desconhecia. Tantos livros investigara, tantas viagens fizera, tantos relatos conseguira interiorizar que aquele podia muito bem ser um dos lugares fabricados pela razão e pelo sonho. Talvez o tivesse descrito Platão ou Heródoto. Ou Thomas More. Ou Orwell. Ou ninguém. Mais tarde, quando tentou recordar-se, não pôde descrevê-lo como desejava.
Havia um cais, pelo menos assim lhe pareceu o ajuntamento de embarcações coloridas e oscilantes, de mastros e cordames que rangiam quase sem se mexer. Uma grande escadaria levantava-se do mar e com ela nascia toda uma cidade até a um palácio retilíneo, em cujo propileu assentavam, lado a lado, uma estátua de Apolo e outra de Minerva. Não só a arquitetura lhe parecera antiga (helénica), como os habitantes da cidade, envergavam túnicas e se cumprimentavam erguendo a mão.
O homem admirou-se de aí não se sentir estrageiro. Com efeito, também ele trajava assim, também ele trazia às costas (preso por uma fíbula) um manto vermelho. Também ele ostentava na mão direita uma bracelete de ouro e calçava as mesmas sandálias com que os outros pisavam as mesmas lajes de mármore. O homem acreditou compreender a língua que aí se falava, mas quando quis reconstituir esse sonho não soube discernir qual língua era, se vetusta e morta, se a sua própria língua que os anacrónicos habitantes falavam com enorme desembaraço.
Do mesmo modo, não percebia como pôde caminhar entre as ruas amplas da cidade incógnita sem se perder. Ou como descortinou sobre certa porta esculpidos os números 3, 6 e 9 (e não, por exemplo, a versão romana III, VI e IX). Mesmo sem compreender o absurdo desse pormenor, viu-se a entrar e a demorar-se na prelação de um matemático sobre eles. Havia nas palavras daquele sábio uma teia de significações, de associações, de perfeitas combinações entre os três e respetivos múltiplos. Observou na sala três pequenas mesas alinhadas, seis estantes repletas e nove retratos na parede (reparou de imediato nos de Arquimedes, Copérnico e Einstein). Havia seis janelas, seccionadas tanto na vertical como na horizontal em três partes, perfazendo cada uma delas portanto nove vidros. Havia frescos, retratos, bustos alusivos às nove musas, às três graças, aos deuses olímpicos (seis pintados à direita, seis à esquerda). Ali zumbiam três computadores, onde seis alunos (aos pares) indagavam profundas cadeias de informação, indiferentes à palestra. Também ali nove velas ardiam em cada um dos três enormes candelabros que iluminavam o espaço. E viu um fresco enorme, onde os nove círculos do Inferno, as três cabeças de Cérbero e as seis cabeças de Cila se desenhavam com cores sombrias. Ao rememorar tudo isso, o homem sorriu, dando-se conta da profunda algaraviada mental que jamais poderia pôr em palavras. E reconheceu o orador. Era Nikola Tesla. O mundo podia ser representado por uma cabana infinita, onde os números 3, 6 e 9 atavam pontas geométricas, dentro das quais a vida se organizava infinitiva e infinitesimal. Mas nenhum lógica podia unir aquele inventor àquele lugar.
Aturdido pela mescla e pela quantidade de informação, o homem desejou pertencer a outro espaço. Sentiu a respiração faltar-lhe. Era como quando na universidade, antes do esgotamento, se deixava vencer por dúvidas e por questões sem resposta. Temia soçobrar dentro de si mesmo e de enlouquecer.
Não muito depois, sem transição, viu-se no vislumbre de pórfiro e de jaspe de uma praça.
Encimando outras portas, havia letras, símbolos, garatujos, legendas, cunhas hieroglíficas, frases lapidares, anotações, alienígenas, logótipos de marcas internacionais. Numa rua mais ampla abria-se o mercado. Aí vendia-se um pouco de tudo: impressionantes granizados de uma mole de cores e de sabores, livros, quinquilharia, material informático de primeiríssima qualidade (maravilhosamente espelhado, delicado e plastificado), pizas, fruta, artigos de couro, peixe ao retalho, toda a sorte de pedras semipreciosas, perfumes, discos de vinil, cartazes antigos e moedas de todas as proveniências. O mercado, ordenado na sua desordenada aglutinação de elementos, eternizava-se. Era uma babel. O homem sentiu náuseas.
Percebia-se que a humanidade, na densa pegada sobre o tempo, é ácida. Aquele lugar possuía algo de caravançarai e de europeu, de fascinante e de repulsivo. Até a melhor arte é assim, visto ser artificial e resultado de um pensamento. Ao contrário da natureza, que é perfeita e holística, a criação humana é fragmentária e imperfeita, absurda e derivativa.
O homem flainou um pouco até se deter em frente de uma citarra enorme, em exposição numa espécie de tenda bélica, entre punhais, bestas, fundas, revólveres, lêiseres e sílexes do início do Antropocénio. O toque da lâmina, macio e gélido, era a face da morte. Talvez nela residissem ainda microscópicas presenças daqueles que por ela perderam a respiração. Segurava nas mãos não apenas um símbolo, mas uma concreta demonstração da perversa inteligência da humanidade. Mais uma vez, uma espécie de enjoo deu sinal de si.
Além disso, uma impressão de frio (cada vez mais indisfarçável), foi tomando conta de si. Era como se uma película húmida e desagradável o cobrisse da cabeça das aos pés. Não conseguia compreender completamente esta mudança, tanto mais que ali, naquela estranhíssima cidade o sol parecia irradiar imutável e velho, como um deus lá no alto.
Para toda a parte, de toda a parte, iam e vinham rostos. Rostos que o olhavam, que o ignoravam, que lhe provocavam impressões desencontradas, rostos de mercadores e de solitários, rostos de velhos e de imberbes, rostos de mulheres e de servos, rostos impressivos e expressivos, todos eles belos e serenos como personagens de um filme de Bergman.
O homem desceu. Havia agora um edifício em forma de zigurate, à base do qual os seus pés o levavam. Não era já uma bela construção, mas uma difícil passagem pela miséria de homens e mulheres que se acantonavam nas varandas e terraços: proscritos, ladrões, leprosos, prostitutas, refugiados, órfãos, mendigos, idosos lamurientos, mutilados, desdentados, descabelados, fétidos, gente repleta de fealdade, chagas e abomináveis traços de loucura. Era um gueto, um depósito de lixo humano, através do qual o caminho se mostrava perigoso e obsceno. Lanços de escadas abruptos faziam-no ter medo de cair. Era preciso olhar, quando os olhos não queriam ver. Era preciso pensar, quando a cabeça queria esquecer. Era vertiginoso e sujo. O homem chegou ao fundo.
Na exata aresta em que findava o último degrau de granito, principiava um chão paupérrimo de terra batida, desidratado e empoeirado, infeto. Começava aí um cemitério de tendas, que se multiplicavam a perder de vista pelo serpentar do leito de um rio seco. Os seus passos tornaram-se inseguros. Por mais que se esforçasse por manter o equilíbrio, sentia-se cambalear. Algo vertiginoso insinuava-se no seu sonho, pese não o descortinar ainda. Uma algazarra, um alarido, um estertor, uma gritaria súbita fê-lo arrepiar-se. No meio do pó, por entre farrapos arrastados, cresceu a figura de um rinoceronte, que corria a toda a brida na sua direção. O homem paralisou. Ouvia os grunhidos coléricos do animal, possuído de um rancor sem limites. Via o chifre em riste derribando à sua passagem fios improvisados de roupa e corpos negros anémicos. Eram rugidos medonhos, cavernosos, como se proviessem não de uma boca, mas de uma tuba. Que aflição!
Foi neste preciso ponto que o homem despertou. O barco balançava com força, com o vento que se levantara, com a agitação da maré, com a proximidade de um enorme navio de carga que não parava de roncar, avivando-lhe os deveres da mareação.
Lançou os remos de novo à água e pôs-se a batê-los atarantado. O grande animal de carga passou. Ao fundo, avistavam-se já as luzes da ilha de Linosa. Seriam sete e meia, oito horas. Uma fragata da Guardia Costiera deslocava-se mansamente no seu encalço. Que pesadelo! Desde que abandonara o trabalho em Pádua, não sentia tamanha desconsideração por si próprio.
A noite, como uma capa, pesava-lhe nos ombros. Mais do que nunca, prostrava-o a ideia de que a sua vida era um perfeito naufrágio. Os remos supliciavam-no, porque a corrente o arrastava para uma zona de rochedos. Lutava contra ela, como se por fim tivesse encontrado um sentido para a sua existência sexagenária.
O grande holofote da Guardia Costiera cortou as águas, muito para além de si. A cerca de meia milha, a estibordo, empurrado para os mesmos escolhos observou um bote e uma multidão de coletes amarelos. O homem percebeu que a guarda acelerava em sua perseguição. A voz do comandante replicava ordens, palavras duras, avisos. Eram africanos.
Ficaram nessa mesma noite detidas em Agrigento, num centro de controlo de emigração. Eram noventa e quatro (sete das quais, crianças).
Resgatado na mesma fragata, o esgotado professor Silvio Graziani (dadas e recebidas todas as explicações e recomendações) foi deixado tranquilamente na praia de Pozzolana, no mesmo porto e à mesma hora em que o último ferry da vulcânica Linosa descarregava os derradeiros passageiros e viaturas.
Atracou o seu pequeno barco a uma boia de amarração. Nessa altura já não se sentia confuso. Em rigor, não já sentia nada, nem sequer se valia a pena sentir. Era apenas tarde, muito tarde.
. El 1 de septiembre de 1730, entre 9 y 10 de la noche, se abrió de pronto la tierra a dos leguas de Yaiza, cerca de Chimanfaya. Desde la primera noche se formó una montaña de considerable altura de la que salieron llamas que estuvieron ardiendo durante diecinueve días seguidos.
Relato de Andrés Lorenzo Curbelo Perdomo, cura de Yaiza, intitulado Diario de apuntaciones de las circunstancias que acaecieron en Lanzarote cuando ardieron los volcanes, año de 1730 hasta 1736
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Ao quarto dia entranhámo-nos no centro-sul da ilha: de manhã Tinajo, à tarde San Bartolomé, Tías, La Gería, Uga, Yaiza. volto a espantar-me com a limpeza e brio dos lanzarotenhos, em cujas povoações não permanecem muito tempo à solta o maldito plástico ou o maldito ruído. fotografo a estrada, uma reta gigantesca que, submergindo de quando em quando num declive, reaparece quilómetros mais à frente, até se perder de vista, muito longe, no sopé de uma das escuras montanhas que por cá proliferam. depois fazemos um desvio para subir lentamente, de curva em curva, até ao lugar onde nos recebe um diabo de pernas escancaradas e braços abertos, cauda pontiaguda, a segurar uma tábua com a legenda PARQUE NACIONAL DE TIMANFAYA.
Dominada por vulcões sucessivos, a paisagem repete-se. talvez por isso, a boca procura agora mais fundo para dizer melhor, para dizer diferente. esperamos uma hora, apeados, dentro do carro, numa monstruosa fila que quase não avança, observando os cones que se multiplicam de lés a lés, de cores tão vivas como o açafrão e o ocre, o vermelho, o laranja, o verdete, ou o marrom, cores muito misturadas, sotopostas, em estrias, em cachos, escorrendo umas sobre as horas. esperamos. às vezes a beleza cansa, facto blasfemo mas verdadeiro. esta beleza confunde os sentidos. não, não há palavras para ela.
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Entramos no que chamam Islote de Hilario, centro nevrálgico do parque onde o visitante pode estacionar a sua fatigada viatura, dar satisfação às premências humanas, observar em círculo toda a extensão do fenómeno geológico que alimenta este poema, embarcar num autocarro turístico, assistir à prova de fogo, pasmar-se com o jorro de água fervente cuspido a meia dúzia de metros de altura, descansar, comprar recordações. fotografo quase com obsessão, aqui, ali, além, o calor aperta (nada que se compare aos quatrocentos graus que sopram da boca da terra), tu trazes os bilhetes, também nós viajaremos pela estreitíssima rota asfaltada, entre píncaros e vales, a que chamam Vale de Tranquilidade.
Pelos vidros sujos chega-nos o bizarro elenco que as colunas de cinza fabricaram, fileiras de chaminés e maciços de lava, estranhas formas nodosas e retorcidas que lembram fósseis, crateras e encostas policromáticas, minerais, inóspitas, lunares, nenhuma tão bela como a Caldera del Corazoncillo. assim o diz a gravação que escutamos em castelhano, inglês e alemão, a que nos recorda a grande erupção de 1 de setembro de 1730, a narrativa dramática do padre de Yaiza, a lenda do eremita Hilário, os povoados férteis sepultados debaixo de toneladas de magma.
Não sabemos decidir se é este lugar um hino à vida ou à morte. prometi escrever sobre o assunto. tanto tempo depois, a dúvida mantém-se.
É sempre bom chegar a esta praia, desagrilhoar-me do carro, seguir longamente pela marginal, pedir nesta e em nenhuma outra casa um café tirado, bebê-lo às escondidas do mar, deixar-me em paz, como um desses áceres ou plátanos da anterior avenida, com a sensação de que sou um derrotado mas um herói, cansado mas digno, silencioso mas cheiinho de palavras (às quais dou ordem para se absterem, enquanto o café aquece), descontente mas satisfeito, sem pressa mas ansioso por regressar ao cheiro forte da salsugem. Regressar é sempre bom, ótimo, revigorante.
«Deseja mais alguma coisa?»
Desejo, sim. Em primeiro lugar, libertar-me da gente estúpida (é impressão minha, ou a gente estúpida vem sempre morar para o pé da nossa porta?). Em segundo lugar, prender-me definitivamente aos gestos de excelência, às pessoas maravilhosas que os sabem interpretar, como essa garota que me não sai da cabeça, cuja história me repetiram há dias.
«Olhe, professor, então não é que um desses meninos com trissomia se apaixonou por ela! Todos a fazerem troça no recreio e ele a chorar. Então, a garota foi ter com o menino, limpou-lhe as lágrimas, abraçou-o, deu-lhe a mão e levou-o…»
Gosto de vir também por esta razão. Para estar comigo, para pôr estas narrativas na ordem (a nossa cabeça é um caderno caótico), para descortinar lógicas submersas nas máscaras que as coisas vestem todos os dias.
«Aqui tem o seu troco, senhor…»
Gosto da sensação do frio, da brisa veemente que me faz inchar o casaco de náilon e me enche o rosto com salpicos de espuma. Gosto destes prédios à retaguarda, calados, inofensivos, como molduras de vinhetas de banda-desenhada. Gosto destas palmeiras baloiçando, baloiçando agora e sempre que aqui estou, fazendo-me sentir em território amigo, mesmo se o outono obscureceu já demasiadamente a paisagem.
«De modo que a rapariguinha, esta mesma de que estamos a falar, teve um acidente na sexta-feira à noite. Um horror…»
Os ténis têm, é incrível, o seu modo automático de me guiar, de me levar sem que os sinta. Nem dou pelos semáforos deixados para trás, do paredão e dos pescadores solitários, do farol, das rugas de água verde acinzentadas (além quase negras), que crescem e se desfazem no molhe, pelas gaivotas que me vistoriam com o seu movimento circular, pelas folhas de jornal com restos de castanhas assadas que civilizadamente algum transeunte deixou de presente ao mundo.
«A coitadinha tirou carta há tão pouco tempo. O carro ficou debaixo de um camião, todo desfeito, professor! Morreu logo ali! Uma rapariguinha tão boa, tão educada… Um horror!»
Nem damos conta.
As palavras atam-se-nos com perícia. Por mais que as expulsemos, elas têm um modo muito seu de voltar. E nunca vêm sós. Trazem imagens, memórias, cenas inverosímeis. Como este magote que se acotovela do lado de fora da janela da mercearia, onde o senhor da funerária cola o fúnebre papel debruado de preto, com a sua cruz, com a foto, com o nome da rapariguinha bonita, com as informações imprescindíveis, com a dor da família enlutada.
«Sempre lhe digo, professor: vão os melhores e os filhos da mãe ficam, nunca lhes acontece nada… Passam sempre entre os pingos da chuva… Não percebo!»
Não demora a chuva.
Gosto deste lugar, do modo como a cabeça se me enche aqui de vazio. Nem damos conta de como a cabeça precisa tanto do vazio, tanto do silêncio, tanto da sombra, tanto de se apagar como se apaga às vezes o azul do mar debaixo de nuvens tão carregadas de dor como estas nuvens aqui!
«Tenho muita pena deste rapazinho deficiente, nem imagina! Ainda não percebeu bem o que sucedeu à amiga…»
É sempre bom caminhar sem destino, o casaco mais apertado, a tarde levando-me para muito longe (nunca sei para vou nestas tardes em que me vejo sem âncora), o frio lavando-me, a cabeça cada vez mais leve, os ténis voando (em breve estarei noutra dimensão), o mar sempre ao lado, o mar correndo quem sabe, às tantas, dentro de mim.