Cada vez que regressava, a jovem punha-se a murmurar uma indecifrável ladainha ao rio. Era uma coisa antiga, um esconjuro que aprendera em criança com velhos da sua terra. Se alguém dava conta desta crença, ela punha-se a divagar sobre os mistérios que correm debaixo das águas enevoadas e que de manhã cedo se erguem como almas em farrapos ao céu.
Em todo o caso, as orações em língua estrangeira pouco nos importam. Apenas na nossa fala compreendemos a angústia e o sentido das ameaças ou das alegrias que deslizam sorrateiramente das florestas aos rios e destes ao mar. Na boca dos outros que mal-entendemos tudo nos parece distante e frio, como garatujos que os antepassados escreveram nas pedras.
No seu escritório, cada vez mais oprimido pela carga de livros, estatuetas e objetos colhidos nos incontáveis recessos da História, o filólogo, antropólogo, poeta e religioso Carlos García-Ibañez, sorri amiúde para o vazio.
Chegou tantas vezes à mesma conclusão que não se limita agora senão a confirmar o que é para si já e apenas uma verdade apodítica: a marcha do tempo obedece a uma ordem desordenada e nós somos empurrados para o fluxo e refluxo dos acontecimentos como conchas e algas que o mar expulsa e reabsorve na praia. Só por milagre nos mantemos intactos.
Teodora era pouco mais que uma prostituta: acabou esposa de Justiniano, senhora de Bizâncio e santa. Maria da Escócia, Ana Bolena, Maria Antonieta foram poderosas rainhas e acabaram no vil cepo em que se exterminam eras, regimes, modos de vida.
As águas do devir, que elevam bailarinas a imperatrizes e decapitam aristocratas, deviam ensinar-nos alguma coisa. García-Ibañez pensa que a História adormece para reacordar na mesma cama. Os povos ganhariam em inteirar-se do passado. Mas talvez também isso fosse só um motivo mais de sonolência. Para si tudo tem de repetir-se inexoravelmente, como uma partida de xadrez que recomeça logo após o xeque-mate. E onde todos somos peões. Somente peões.
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Esperava amar e ser amado. Porém, ela deixou-o e no lugar do amor ficou o ressentimento.
Deu-se conta, no início, de que o irritavam os risinhos dos jovens casais na rua, o estalar dos beijos entre sucções bruscas (por causa da pastilha elástica), o efeito moroso de certas interjeições demasiado teatrais.
Depois tornaram-se-lhe abomináveis os operários da construção civil, rebarbando eternamente pontas metálicas. E os táxis buzinando a toda a hora e em toda a parte. E as sereias das ambulâncias. E os apitos dos elevadores e dos micro-ondas. Com o tempo, o seu ódio estendeu-se aos latidos dos cães à noite, ao miar imaginado do persa que ela levou depois do divórcio, à algazarra das crianças no recreio ou no parque defronte o seu apartamentozinho. Não tolerava os estalidos de madeira, o zumbir do frigorífico, o súbito aumento de decibéis no intervalo dos programas televisivos, o timbre metálico de certas vozes que o chamavam, interpelavam, interrogavam.
A misofonia e crescente misantropia eram nomes, uma explicação. Nada mais.
Nos sonhos, a cena do crime e o cadáver profanado, desfeito, transportado com empenho e ardil até ao alto do paredão e trinta e três vezes lançado à albufeira em trinta e três meticulosos e sinistros sacos herméticos, todo esse empenho vinha à boca e ele falava. Os pesadelos dobravam-no, enlouqueciam-no. Eram como terramotos que retorcem e amesquinham o aço.
Esse o seu castigo.
Ninguém suporta que lhe digam, especialmente nos sonhos, que até a vida indigna de um assassino o é por alguma razão. Que até para ela há um sentido, uma cura, um perdão.
No Golfo de Bótnia, a meio caminho entre a Suécia e a Finlândia, fica o arquipélago de Åland. Mika, um carpinteiro naval, trabalha em Iniö com o seu irmão Thure. Presentemente, ocupa-se com a construção de um drácar viking, mas o seu pensamento desce muitas vezes a um sonho que se repete noite após noite.
Vê-se a velejar pelo espelho tranquilo das águas na costa continental, com as pequenas casas vermelhas de madeira a espreitá-lo desde os prados. É já muito velho. A família reúne-se para o ver partir. Ele entra numa cápsula futurista, espécie de grão de ervilha todo em vidro, e o estranho objeto sobe então em direção ao espaço a grande velocidade. Viaja entre planetas e asteroides, vê o movimento de aproximação e afastamento dos grandes corpos celestes, das luas, dos anéis de gelo. Não precisa de alimentar-se, nem de satisfazer quaisquer outras necessidades fisiológicas. Não precisa sequer de respirar.
Penetrou no campo da eternidade. Assim como está, assim se manterá para sempre. Distancia-se cada vez mais da Terra e daqueles que vieram despedir-se. A morte é um caminho infinito para o além e o além é o afastar-se cada vez mais daqueles que ama ainda e de que sente já saudades insuportáveis.
Desperta todas as madrugadas com lágrimas nos olhos. Noora, felizmente, dorme. Não seria fácil explicar-lhe este enredo onírico e, sobretudo, a repetição do pesadelo.
«E se a morte for exatamente aquilo, a solidão total no tempo e no espaço!»
Quando regressa à oficina, já o dia despontou. Trabalhar a madeira com a enxó e com a plaina costuma ser revigorante – esta novíssima embarcação é uma encomenda especialmente cara e desafiadora. Mais ainda quando decide velejar entre as ilhas e ilhotas vizinhas até Mariehamm, sentindo o fustigar do vento frio e o movimento do sol na água que tudo reverbera e ilumina.
Mas a sombra do pesadelo reapodera-se de si à medida que a noite cai. Chega a ter medo de adormecer.
Ao sol está agora uma roupa tão branca que parece, sob a força do primeiro, uma cascata de lâmpadas acesas. O jovem padre olha-a enternecido. Gosta de contemplar a castidade onde quer que ela se encontre.
Na sua terra natal, a esta hora cheirará ao preparo das cozinhas, a alho e a azeite, a refogados e a estrugidos. Em breve rescenderá a peixe frito. No lugar onde costumava beber o seu café matinal, três esquinas adiante da velha Sé de pedra basáltica, ver-se-á o recorte da costa no Atlântico, a sombra azul das ilhas desertas, e há de misturar-se no corpo atento de quem ali um instante repousar o lume roxo dos jacarandás, a aragem das casuarinas e araucárias, o travo vestigial e amargo do café, o paladar doce do papel velho, o ruído manso dos transeuntes na Baixa e pela marina.
Mas vive agora na grande cidade. Aqui são o rio e o Cristo gigante de braços abertos que dominam a sua atenção. E essa luz forte que chega a doer. E esse rumor indecifrável de um milhão de coisas simultâneas e em conflito entre si.
O padre bem se esforça por anotar ideias, juntar frases, trazer de volta o seu dom. Depois do serviço religioso, vem até esta parte. Caminha largos minutos a pé, em absoluto silêncio, procurando absorver a paisagem. Visita os jardins, vê os telhados, escuta os barcos no meio do azul. Os novos paroquianos saúdam-no. Ele acena-lhes. A brisa de junho é macia, impregnada no aroma das tílias.
Morar aqui não é assim tão diferente de viver lá.
E, no entanto, a poesia ainda não regressou. A sua alma verdadeiramente virá quando ela vier, somente quando ela chegar. Entristece-o saber que assim é e que assim será. É uma espécie de pecado mortal que não pode sequer confessar.
Numa aldeia do Congo, um pescador sai todas as manhãs para o mar sobraçando, com as redes, um livro de poemas. Regressa a casa com um par de peixes e o ar de extenuado de quem presenciou um prodígio. Os vizinhos admiram-se com o seu lucro nunca mais do que humilde e com a sua expressão cansada. Se lhe perguntam porque não procura servir-se de outras redes ou de mergulhá-las noutras águas, o pescador responde invariavelmente que «A perfeição é a arte da espera.»
Uma mulher amava outra mulher, que amava um homem que amava a primeira das duas. Ao longo das suas vidas amaram-se em tempos e lugares distintos, mas nunca juntos na mesma cama. O que teria acontecido se o fizessem não o saberemos. Talvez se tivessem aniquilado com o ciúme. Ou cedido ao erotismo mais belo e mais feroz.
Amar é um verbo terrível, não raro com significados dissonantes e até opostos.