«No espaço de uma aula espera-se que um professor saiba, queira e possa ensinar e que um grupo de alunos possa, queira e saiba aprender.»
«Tudo o mais é admirável, decerto indelével, muitas vezes possível. Tudo o menos deve ser contraposto, esmagado com violência, como se esmaga uma barata, e varrido para o caixote do lixo.»
«Incluo entre os feios insetos do ensino a falta de respeito, as péssimas decisões superiores (provenham elas de onde provierem), a intromissão nefasta de quem não é professor e não é aluno e não respira a natureza deste anfiteatro.»
Estas e outras foram durante quarenta e cinco anos as palavras de abertura do ano escolar de que se serviu o Professor Sebastian Gruber, responsável pela cátedra de Geometria Analítica na Universidade de Tübingen.
Não consta que tivesse sido mau mestre, ou pedagogo incapaz e atávico, ou colega presunçoso e displicente, ou pessoa malquista e desprezível. Pelo contrário, era estimadíssimo dentro e fora do campus.
Todos conheciam as suas aptidões e fraquezas e o Professor Gruber conhecia-as melhor do que ninguém. Dele são, também, as palavras que a seguir se reproduzem.
«No espaço de uma aula ensina-se e aprende-se. Tudo o resto é uma perda indesculpável de tempo. E eu recuso-me a deixar que os meus alunos sejam vítimas ou beneficiários da sua expressão, em todo caso, numérica.»
Resta-nos desejar ao emérito docente as maiores felicidades, agora que, conhecida a jubilação, poderá dividir o tempo precioso da sua vida com os netos, a helicicultura e o tratado sobre fractais que vem redigindo aos bochechos.
Todas as melhores conversas começam por acaso. Foi desse modo que começou a nossa. Tu, bigodes de chocolate ao largo da boca, como os garotos (logo vi que eras um patusco!), eu com a neura (não me venhas falar das minhas neuras, sou a única autorizada a falar das minhas neuras!), por causa da entrevista de emprego.
As entrevistas de emprego anunciadas são uma vigarice. Os empregadores que precisam de publicitar entrevistas de emprego pertencem a um clube restrito (cada vez mais bojudo, embora) de facínoras, patrões da têxtil, engajadores da construção civil, uns mafiosos, uns trapaceiros, espoliadores de empregadas domésticas, recrutadores de vendedores de banha da cobra (ou, no meu caso, de produtos ortopédicos), uma cambada de intrujões sem alma (se eu fosse do governo pendurava-os a todos pelo pescoço!), uma gentinha desalmada pronta a endrominar a própria mãe (ah se fosse do governo, ou juiz, era um bulir permanente de cordas), uma turbamalta do pior feitio, sempre a enganar o pobre, a fazer perguntas difíceis, a dar-lhe esperanças… Enfim, calo-me por aqui.
E tu não me venhas falar das minhas irritações, sabes lá como estava eu nesse dia, ou melhor, nessa tarde. Nervos à flor da pele, acabada de sair daquela salinha manhosa, no piso de cima do centro comercial, naquele corredor abafado, quase deserto, às escuras, daquela sala cheio da tabaco, daquela mesa onde um tipo me mediu da cabeça aos sapatos, e tu, muito alapado na esplanada, pele irradiante, com o gelado a rodar na boca suja, de olhos fixos em mim, como se te regalassem duplamente o chocolate e o meu minivestido preto (o que julgas tu?, pensas que ia à entrevista sem dar o meu melhor?), sem uma palavra, só a olhar, como se tanto se te desse que a vida corresse de uma maneira ou de maneira contrária…
Mas vá lá, foste um querido. Reconheço que nesse dia, quer dizer, nessa tarde estava uma pilha (Para onde pensa que está a olhar? Julga que sou um bocado ou quê? E limpe essa boca, seu porco!). Tu não respondeste, fizeste tu muito bem, limitaste-te a desviar os olhos, a limpar os beiços sujos, a pedir a conta do gelado e do café (não sei como podes misturar sempre as duas coisas), a levantar-te, a ir e (por essa não esperava eu) a voltar, a postar-te à minha frente, determinado, esclarecedor.
As melhores conversas podem começar assim. Com um olhar sem rancor, um nadinha atrevido, olhos nos olhos, como quem quer explicar uma coisa e sabe o que vai dizer. Sabes como em certos dias a nossa paciência de mulheres é pequena, curtíssima, mais débil do que um fino de cabelo. Não sei como gostei logo do teu sorriso, do teu blazer (reparando bem, até nem eras mau de todo, logo ali percebi como te fica bem o azul!), dos teus dentes certinhos, da tua voz sem azedume e arroucada, sussurrante.
Olhe que é feio atingir uma pessoa assim em público, no meio da praça. De mais a mais, não estava a olhar para si, mas para o senhor que está atrás de si.
Qual senhor, qual carapuça. Essa é revelha. Mentiroso. Voltei-me para ver. Com um grande livro estendido sobre o tampo metálico da mesa, um velhinho invisual dava uma aula de anagliptografia a uma rapariga loira, que percorria cada sulco com um sorriso envergonhado. Qual senhor, qual carapuça. Mentirosão. A loira sim, a loira vistosa, que aprendia com o velhote, para lá olharias tu, meu bandido. E ainda sem uma leve viração de ressentimento, concluíste.
Como terá podido constatar, cada um faz o que quer e pode numa esplanada. Até dizer disparates. E lamento , já agora, que me tenha visto a boca suja. É só.
Não me venhas falar tu de mau humor. Nem de vexames, muito menos do que senti nesse instante (onde estão os buracos no chão quando precisamos deles?). Nem de como e quando sucedeu ao certo a peripécia de estarmos os dois, lado a lado, de um momento para o outro, a gesticular, falar, rir, dizer muitas vezes «claro», «exatamente», «tem razão». Nem como terminámos a rir outra vez, a trocar números de telemóvel, a começar com «tu» onde até há pouco era «você», a embaraçar um aperto de mão logo corrigido por um beijo (um beijinho), o teu perfume com o meu perfume, a tua pele com a minha pele, encarnados os dois, esquecidos do olhar fixo e dos bigodes de chocolate, da neura e da aluna loira de braille.
Nem sempre a vida nos corre bem. Vê só o que uma desgraça pode trazer à vida de uma pessoa. Se é uma boa história? É uma excelente história. De fadas não será, mas das que contamos com gosto, sim. Esse dia, perdão, essa tarde nem prometia grande coisa, mas a vida é assim, carambolamos, às tantas uma inexplicável leva de sucessos faz-nos girar noutro sentido. Não gozes comigo, vá lá, eu gosto que gostes de mim, não me fales em mau aspeto, olha lá os teus bigodes de chocolate, meu porquinho, foi assim que nos conhecemos, qual humor de cão (ou de cadela) qual quê, todas as melhores conversas começam por acaso, foi assim que nos conhecemos, é uma excelente história, de fadas não será, mas das que contamos com gosto, sem dúvida!
É difícil recompor em palavras os tiques do professor Arcílio Pinto. Diria que o tornou famoso o costume de bater com as costas da mão direita na boca e a ir empurrando ao nariz e pela testa fora até à sonora fungadela final, com que se despedia do espasmo e se concentrava de novo em nós, caloiros estupefactos.
Diria ter-se nele tornado não menos conspícuo o escancarar da boca, quando travava as frases com nomes em P.
– … eis portanto aí, grosso modo, a génese do hodierno pensamento.
Fazia-o numa imitação perfeita do Marlon Brando mafioso.
– … isso, meus caros e minhas caras, é o que se estatuiu chamar de paradoxo!
Com a mesma expressão circunflexada dos bóxeres.
– … em suma, esse o sistema de Parménides…
A tudo sobrepunha-se o arregalar dos olhos.
Arregalava-os muito, num gesto de perplexidade, para dentro dos livros, como se neles tivesse encontrado, de súbito, uma bizarria, um escândalo, uma condenação.
Fechava com ímpeto a edição do Para além do bem e do mal. Os olhos exorbitavam-se-lhe uma última vez. Fuzilava a plateia. Nietzsche, Heidegger, Sartre ter-se-iam encolhido connosco, assustados e arrependidos. A voz cavernosa de Arcílio Pinto compensava o gestuário destrambelhado.
Não havia território seguro na sala. Nem muito lá trás, na penumbra do auditório, onde os boémios e repetentes (encolhidos, assustados, arrependidos) se esforçavam por não existir.
– O cavalheiro de barba, na terceira fila a contar do fim, à direita: o que me diz deste problema?
Havia uma infinita peculiaridade nos problemas do professor Arcílio. Lembro-me de uma conferência:
– Imaginem os senhores e as senhoras a seguinte situação: de manhãzinha, quando estão a tomar o pequeno-almoço, dão-se conta que as duas partes da embalagem A Vaca que Ri não coincidem no lugar do logótipo, no código de barras, nas informações da empresa. Os senhores e as senhoras, que nunca haviam reparado nessa minudência, dão-se conta que não conseguem sair de casa nessa manhã sem acertar a informação que ficou nas duas metades da embalagem. E porquê, não me dirão?
O professor Arcílio Pinto batia, então, com as costas da mão direita na boca e empurrava-a, entre fungadelas, até ao cimo da testa. Esperava a resposta. Nós também.
– Porque o sentido estético é latente, emergente, intrínseco à condição humana. Meus caros senhores e minhas caras senhoras, o sentido estético, que em última instância é amoral, concita um princípio de ordenação das coisas…
O cenho abespinhava-se-lhe.
– E eu pergunto se tal princípio não é ele próprio uma moralidade? Mesmo que em potência?
Lá estava o P, a palavra potência, a pausa dramática, a boca escancarada (um escancaramento horrível de trombótico), o raciocínio tortuoso, a expressão snob de académico, a vontade de rir à vez com a vontade de esbofetear.
– Essa moralidade educa a consciência. Um dia em lugar de uma embalagem, temos uma animal abandonado na rua, um mendigo, uma mulher maltratada… E, então, a consciência impede-nos de arredar o pé, de desviar os olhos, de não agir.
Há dias, numa das minhas deslocações profissionais, reencontrei o velho mestre de Introdução à Filosofia do Conhecimento. Tão igual a si mesmo que senti um abalo. Tão igual a si mesmo que senti quase o terror de um déjà vu. Caminhava calmamente pela alameda universitária, com a mesma sacola de couro, a mesma repa desordenada sobre a fronte, a mesma fisionomia de génio doido.
Aposto que não se reformou. Aposto que os caloiros de agora ainda o veem a fungar e a arregalar os olhos. E a trazer à luz do dia filósofos renitentes, autores de afirmações e teses que talvez quisessem desdizer, renegar, guardar no sepulcro do pó.
– A menina de echarpe bordô, na antepenúltima fila: o que nos pode dizer sobre a dúvida hiperbólica de Descartes?
Aposto que o professor Arcílio Pinto massacra, ainda, com Nietzsche, Heidegger e Sartre. E que lá bem no fundo do auditório, numa nesga de sombra, algum boémio treme, ainda, rezando para que não o chamem a depor, a testemunhar a sua insuficiência em silogismos e epistemas, a merecer uma reprovação…
Foi um baque, quase arrisco confessar uma saudade. Os senhores e as senhoras, claro está, entendem. Entenderão.