Nausícaa

Fotografia de Annie Spratt

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No final das férias, a alegria extinguiu-se já no semblante de muitos turistas. À medida que a praia vai ficando deserta, com os detritos infelizes que nela abandonaram milhares e milhares de forasteiros descuidados e egoístas, o rosto de Nausícaa parece acender-se. Chegou a sua vez, o seu tempo, a sua paz.

As manhãs de setembro revelam um longo areal branco voltado para um mar cor de chumbo, um e outro a necessitarem de si, da sua fala mansa e desapressada, dos seus olhos benévolos que tudo observam, das suas mãos diligentes e sensíveis correndo sobre a crista escorregadia dos rochedos. Aí deixaram restos de plástico e restos de alumínio e pedaços de vidro e de cartão e de ráfia e redes e tecidos esgarçados e tiras de borracha e mais plástico e mais despojos de alumínio e mais esquírolas ameaçadoras de vidro.

Nausícaa extrai das poças, da linha da salsugem, do manto das areias, dos altos e baixos da maravilhosa duna sem fim todo esse lixo detestável. E cuida das anémonas feridas, das aves pelágicas, das madeiras quebradas nos passadiços, dos canteiros selvagens onde o funcho-do-mar e os rabos-de-lebre e as camarinheiras e a amófila sobrevivem ao vento, ao sal e às incursões malignas dessa gente faminta de fotografias e de admiração.

– Pobres criaturas, como estais tão ressequidas, tão cansadas, tão moribundas!

Em setembro as manhãs orvalham, o frio resvala pela corola, pelas folhas espinhentas, pelo caule antipático dos cardos. O nevoeiro avança e recua, abrindo e tapando no horizonte a linha lisa das águas.

A bondade não deve ser confundida com indulgência, nem esta com a cobardia.

No mundo dos homens há uma paleta tão vasta de comportamentos que pode um poeta pintar quadros repletos de verdade e de justiça, equilibrando-os entre o bem e o mal absolutos.

Nausícaa não pensa nisso. Se alguém a observa, vê-a neste preciso instante a recolher com todo o cuidado formas pontiagudas de vidro e carcaças amolgadas de metal, agarradas como bisso, como sórdidos intrusos, como presenças infames, às rochas nuas, indefesas, subjugadas da sua pequena ilha.

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