
O velho Malojo entrou na cozinha com as giestas secas e duas laranjas apanhadas pelo caminho. Roubar fruta não era pecado, pecado era deixá-la aos pássaros ou a apodrecer nos ramos. Dobrou as giestas de modo a caberem no fogãozinho e pôs-lhes lume. A névoa azul encheu a penumbra até à soleira, vogando entre as paredes mascarradas e o teto baixo. Depois colocou a cafeteira encardida sobre a placa de ferro, procurou o frasco da chicória e trouxe-a para cima da mesa. Possuía ainda o suficiente para duas ocasiões. Pão também lhe restava algum, assim como toucinho, e juntava a tudo isto as duas formidáveis laranjas trazidas da propriedade do antigo patrão.
Quando a noite vinha, gostava de ligar o aparelho de rádio e de se entreter com as notícias. Também gostava de chocalhar as ave-marias convencionais e de soltar as suas duas ou três lágrimas de cada novo dia. Ligou, portanto, o aparelho e pôs-se à escuta. Era a hora de ouvir e rezar.
Do outro lado do mundo, na realidade a somente duas centenas de quilómetros de distância, os craques da Seleção preparavam o desafio com a França. Ronaldo em dúvida constituía indubitavelmente o tormento do apressado jornalista. Sempre o fado dos portugueses, sempre o nunca poder contar com a sorte para nada, sempre a miséria de sofrer até ao último instante, a ver se sim se não.
Depois, noutro tom, o mesmo jornalista fanhoso informou que prosseguiam as buscas da Judiciária no escritório de um conhecido empresário do futebol e na sede dos clubes mais importantes do principal escalão. A mesma descarada vergonha do costume, pensou o velho Malojo. Isto vai mal, a roda do mundo está empenada, uns a trabalharem por uma côdea, a terem em casa mulher e filhos para manterem, outros com categoria a pilharem milhões.
O velho Malojo não se dera conta ainda de que os pais de família já não sustentavam sozinhos o rancho e que as mulheres, entretanto, se tinham transformado em pais de família. E também que o Estado, o Estado que lhe enviava todos os meses duzentos e trinta e oito euros, fazia as vezes dos pais de família, sustentando o rancho, incluindo as mães e também os modernos pais de família.
Mas não teve tempo para lamentar o mau estado o futebol. A Renascença mudava o foco da atenção dos ouvintes, seguia para Fátima onde de seguida se iria recitar o terço.
O velho Malojo espreitou à porta. O céu admitia entre as suas tonalidades cores tão diferentes como o magenta, a púrpura ou o laranja, ou mesmo o negro-carvão de uma banda e na outra o azul celeste, o azul ferrete e de novo o negro, à medida que o horizonte se afastava do lugar do sol posto. Naquele barranco não morava mais ninguém. Ele era um eremita. Deus, Nosso Senhor, dava-lhe o bastante para sobreviver, para ser digno, para não alimentar ambições ou sobressaltos. De algum modo, pensava o velho Malojo, a sua vida era privilegiada, ele tinha tudo, aquilo era como viver no paraíso.