«E para quê?»

Monoar Rahman
Fotografia de Monoar Rahman

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Huldrych Fritz-Meier era obcecado pela exatidão.

O correr das palavras numa carta não poderia admitir atentados à caligrafia ou à ortografia, tal como o tempo mostrado nos seus relógios deveria não discrepar entre si um segundo que fosse; da mesma forma que – só para terçarmos os exemplos – seria absolutamente inadmissível para si errar a quantidade de coque que teria de colocar no fogão para aquecer a casa.

Várias questões o atingiam em simultâneo.

Uma delas a de determinar o número preciso de seres humanos que desde Adão visitaram o nosso planeta. Outra a de cifrar aos cêntimos o maravilhoso dinheiro guardado nos cofres do Banco Nacional da Suíça. Outra ainda a de equacionar em números tangíveis, num caderno, a idade do universo.

«Tudo tem um propósito, uma lógica, uma verdade plantada dentro de si próprio. Chama-se a isso ordem.»

Mas por muito que a inventasse, a ordem teimava em não obedecer-lhe.

Uma bela manhã de abril, depois de reclamar com o carteiro (cuja falta de pontualidade lhe inspirava um ódio visceral, quase animalesco), a seguir a uma zaragata ao telefone por conta da gramagem dos pacotes de cevada, profundamente melindrado com a progressiva dessincronização do bater das horas nas torres próximas da Igreja de São Pedro e da Abadia de Fraumünster, a janela do escritório deste antigo engenheiro aeroespacial (localizada num sétimo andar da Münsterhof) viu-o – como um moscardo cabeludo – atravessar o parapeito sem mais nem quê em direção ao vazio.

Não deixou nada escrito. Nada. Nem uma confissão de culpa. Nem um reparo à humanidade. Deixou, isso sim, o apartamento na confusão maior que possa imaginar-se, com estantes despidas, armários abertos, objetos empilhados à toa num caos digno de uma residência de universitários estroinas.

Era como se Huldrych Fritz-Meier se tivesse assaltado a si mesmo. Como se o tivesse feito com requinte de prazer e de traição.

Johann Reusser, pastor calvinista, amigo e antigo colega de escola de Meier, foi severo na despedida do corpo: «A vontade de imitar a omnisciência de Deus atinge algumas almas como uma pedrada vinda diretamente do diabo. E para quê?»

Eis uma boa interrogativa. «E para quê?» reperguntamos nós.

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Ele sabia

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Johannes Vermeer, A Leiteira, ca. 1657

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O vento punha-se a titilar nas ervas altas e era bom. Era livre. O sol caía em cachos na toca dos grilos e era belo e livre. Os miúdos saltavam os muros e corriam livremente pelos talhões de margaridas e era maravilhoso vê-los. O pintor compunha sem pressa o azul do mar ao fundo e o pé robusto das árvores ao perto e era muito agradável, agradabilíssimo, prestar atenção ao vento e ao sol e às crianças a voarem juntas pelo prado.

O poeta, no entanto, preferia a chuva e o silêncio. Preferia, sem dúvida, o canto mal aceso do seu carvão, a odor forte do seu tinteiro, o peso enorme dos seus versos impregnados na solene tristeza dos poetas. Era um desses homens infelizes para quem a simplicidade das coisas não faz sentido.

Quando a rapariga que vendia o leite lhe bateu à porta, com as faces cheias de rubor e o coração aos saltos, o poeta não encontrou as palavras certas para responder à saudação. Dentro de si as verdades tinham a dureza do mármore e o espontâneo cansaço de uma mesura.

A rapariga amava-o e ele sabia. Mas não era capaz de viver com a alegria ingénua de um grilo, só com o ímpeto de um tigre enjaulado. Era a sua pena e ele sabia.

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Apresentação de «Eutrapelia» na Flâneur (Porto)

Teve lugar, ontem à tarde, a apresentação do meu último livro na Livraria Flâneur, no Porto. Senti uma grande alegria por ter reencontrado velhos amigos e por ter podido conhecer novos amigos. Se a poesia for azo para que as pessoas se conheçam e convirjam num olhar diferente sobre o mundo, então valerá ainda mais a pena. Literalmente.

A conversa em torno de Eutrapelia contou com uma recensão notável de Paula Morais, professora e amiga a quem agradeço sobremaneira o cuidado, a gentileza, o carinho enorme, tidos com os 50 poemas do livro, que visitou com acuidade, amplitude e sensibilidade exemplares. Senti-me verdadeiramente privilegiado. Muito obrigado, Paula!

No outro lado da mesa, em representação da editora Labirinto, a poeta e tradutora Sara F. Costa, que pude finalmente conhecer, emprestou a sua visão analítica e poética subtileza à leitura de Eutrapelia, transformando o espaço num momento de diálogo que muito me tocou. Também a ela quero muito agradecer, porque o que dois poetas veem juntos é uma dádiva inestimável.

A todas e todos os que estiveram na Flâneur, sem exceção (família, amigos, colegas), estendo o meu agradecimento, que não é senão o meu modo de dizer (citando Camilo Pessanha) “Que a jornada é maior indo sozinho”: acompanhado por todos, senti-me acalentado, em casa, feliz! Não pode ser maior a satisfação de um autor do que essa, a de ser lido, compreendido, (citando agora Joan Margarit) “culminado”!

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«Eutrapelia», crítica de Cláudio Lima

Eutrapelia (livro de poesia)

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Hoje reunimo-nos para celebrar os 20 anos de poesia publicada em livro por João Ricardo Lopes. Às primícias poéticas deu o Autor o título de a pedra que chora como palavras (ed. Labirinto, Fafe, 2001). E, a justificá-las, se a intrínseca qualidade da obra não bastasse, assinale-se a atribuição do Prémio Revelação de Poesia Ary dos Santos, galardão de encher de orgulho e incentivo qualquer iniciante na difícil arte das belas letras. De facto, percorrendo estes 35 breves poemas, um leitor minimamente apetrechado e familiarizado com os meandros e mistérios da poesia, imediatamente concluirá que aquele livrinho inaugural indiciava, mais do que uma tímida promessa, uma sólida e inequívoca vocação poética. Ainda hoje, volvidos 20 anos, «a poesia irrompe como um meteoro» (pg. 33) ao longo daquelas páginas. Táctil, intensa, evocativa, sob qualquer perspetiva que se a observe, é sempre uma deleitosa fruição o que ela nos proporciona.

Passados 20 anos e cinco outros títulos de poesia, se o Autor não parou no tempo nem precisou de corrigir a rota, – e entendo que não – é porque partiu de uma rigorosa e bem pensada estrutura formal e conceitual que o tem levado a uma constante e cada vez mais criteriosa indagação do fenómeno, quando não epifenómeno, do que a poesia implica de consistência e aprofundamento. Andam por aí montes de equívocos, montanhas de falácias e cordilheiras de nulidades a doutrinar sobre e a praticar uma escrita balofa e oca a que conferem o rótulo de poesia, travestida, ademais, de genialidade visionária e vanguardista! Um deserto sem vislumbre de qualquer oásis onde mitigar a sede de beleza e unção espiritual!

Um observador comum olha e diz assertivamente: “isto é uma árvore”. E esse juízo, redutor e fechado na estreiteza conceitual, lhe basta. Apenas exige da árvore que lhe dê frutos e alguma sombra. A linguagem com que nomeia e qualifica é pragmática e utilitária; circunscreve o que vê e vê-o por fora e de relance. Um observador de sensibilidade poética, ao invés, vai aos limites da perceção e da expressão da coisa percecionada. Para ele nada é singular e unívoco na linguagem, antes polissémico e polimórfico. Liberta o objeto das amarras a que o uso massivo e ligeiro o submete e explora, ao mesmo tempo que lava as palavras das nódoas causadas pelo uso e o abuso.

Conheço o João Ricardo Lopes há bastante tempo, desde a publicação da coletânea Histórias para um Natal (ed. Labirinto, Fafe, 2004) em que ambos participámos. Mas, sobretudo, desde a publicação das suas crónicas Dos Maus e Bons Pecados (ed. Opera Omnia, Guimarães, 2007), em que de igual modo faz emergir a sua férula de prosador interveniente, atento ao panorama cultural e cívico português. Dessa obra fiz a apresentação na prestigiada e prestimosa Livraria 100.ª Página em 25 de outubro de 2007, cujo texto-base teve publicação no Diário do Minho a 7 de novembro do mesmo ano. Já então eu pressentia, sob a irreverência, por vezes a causticidade, do jovem cronista, a musculada expressão de quem procura bem mais do que a flutuação abúlica à deriva do tempo.

Regressa agora, a celebrar duas décadas de poesia, com um título breve e, para muitos leitores, algo esquisito, se não abstruso: Eutrapelia. Palavra de origem grega formada pelo prefixo “Eu” – que significa bem e belo – e pelo lexema “Trapelós”, de amplitude polissémica, omisso em vários dicionários e glossários da língua portuguesa. O velho Cândido de Figueiredo transverte-a simplificadamente para “qualidade daquilo que é gracioso, chistoso, mordaz”; José Pedro Machado no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, tomo II, regista “forma chistosa de motejar”; já o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, no tomo IX alarga um pouco mais o campo semântico: “modo de gracejar sem ofender, zombaria inocente, disposição de pilheriar agradavelmente, brincar amável e espiritualmente, engraçar-se, pilhéria grosseira, palhaçada, troçador birrento”, etc. Por sua vez, o Google, que regista várias entradas de natureza filológica, filosófica e ética, de divergentes, quando não opostos significados e nuances, tendencialmente valoriza os conceitos de conversa agradável, senso de humor, dito jocoso e inofensivo, etc.

E o Autor? Qual destas múltiplas propostas de natureza semântica o moveu à opção por um título que para muitos leitores se torna embaraçoso e impeditivo de uma imediata apreensão, bem como dos conteúdos que pode abranger? Ele esclarece: ao impulso que o moveu a esta solução subjaz um determinado estado de beatitude por indução (osmose?) de tudo quanto o rodeia, o interpela e o seduz. Uma espécie de filtro que tria a indiferenciada e caótica vasa do quotidiano. Veicula uma poesia que vai beber aos clássicos gregos, orientais e a alguns dos mais representativos vultos da cultura ocidental. Exige ser lida com todo o vagar e atenção, dessa forma removendo eventuais dúvidas e obstáculos ao desfrute de uma lírica adulta, bem burilada, pródiga em sugestão, estesia, brincos de retórica e de encantamento. Importa ser lida empenhadamente, em suma.

Facilmente apreendemos o quanto os prodígios da natureza fascinam o Autor e lhe condicionam o estro poético. No seu cíclico e inalterável movimento, estação a estação, admiramos aqui ora o desabrochar pletórico, ora o inelutável dessoramento e morte, para novo ressurgimento em novo ciclo vital. O eterno retorno em movimento perpétuo. Ocorre-me citar, a respeito, o grande Johann Wolfgang Goethe, quando compara a natureza a um livro: «A natureza é o único livro que oferece valioso conteúdo em todas as suas folhas».

Logo na página 13 encontramos um poema intitulado «Bosch, Primavera, Museo del Prado» em que, provavelmente influenciado pela contemplação dos trípticos O Jardim das Delícias e / ou O Carro de Feno, do grande pintor brabantino, que se encontram expostos naquele Museu, observa que «encontrar no meio do sangue revolto / a pedra imprecisa // seria essa, talvez, a mais bela fonte da loucura», porque «depois de extraída tudo regressaria ao seu lugar». E na página 16 é ainda um hino à primavera que nos é oferecido num «Allegro» de jubilosa exaltação: «daqui observo o afã dos piscos nas ramagens / do limoeiro, / oiço o arrulhar, o trissar, / o assobiar das rolas, das andorinhas, dos pardais (…) em maio as manhãs / fazem-me mergulhar na terra, / na profusão dos cheiros e das formas, / no frescor das ervas, / na quentura das cravinas e das rosas // arrepio-me de pensar que existo / e respiro / e escuto o tempo».

Curiosamente, sobre o verão não encontramos nenhum título explícito, não obstante a sua sedução e a sua luminosidade permearem muitas destas composições. Na página 32, por exemplo, podemos ler o poema «Agosto», em que fala no «verde azul do mar / ferindo-me como crisocola entre os dedos, / este azul onde os olhos adormecem (…)» E na página 30 repare-se neste extraordinário quadro (tela) estival, intitulado «Tremezzo» (região italiana da Lombardia): «lembro-me dessa tarde em Tremezzo, / do sol a pique / dos nossos corpos transpirados / à procura de uma sombra (…) os lentos degraus de granito até ao lago, / a água refrescando-nos os tornozelos, / a lavar-nos do cansaço, / as ondas que os barcos de recreio levantavam / e que vinham de longe, / que vinham contra nós, / criaturas exangues, inofensivas, / sem culpa de nada».

O outono está aqui profusamente referenciado: na página 37, no poema «O outono acena mais perto», elenca os gestos rituais de um setembro maduro e abundante: «nestes dias de lavar, brunir, / dobrar em caixas de cartão as roupas, / fazer contas de cabeça, tirar velhas compotas do armário, / despejar-lhes o bolor, lavar os frascos, / fazer polpa, cozer os marmelos, colher os figos, / conservar tudo de novo, como uma memória fresca da infância // o outono acena mais perto, / digo, o ar distraído das coisas, a subtileza madura dos frutos». Na página 51, em «Lendo Erdal Alova», poeta turco, fala do frio que secou os agapantos, das «pétalas soltas, / teias de aranha entre os caules / ressequidos», para concluir: «o outono é a estação do pouco / e eu contento-me / com tê-lo inteiro / aqui, / ou noutro lugar».

Também o inverno percorre estas páginas. No poema, a páginas 10, «Sevilha, Inverno de 93», recorda «a pele das tuas mãos / (sempre tão álgidas) / caindo sobre o meu caderno // o que escreves aqui? para quê a poesia? / quem amas tu?» E lá mais para diante, evocando o cineasta russo Andrei Tarkovsky no poema «O Inverno ou a Nostalghia de Andrei Tarkovsky», (página 58), é-nos dado a ler: «são agora mais frias as manhãs, / quase espetrais / atravessamos o nevoeiro, / como se atravessa a vau um espelho // os lavradores afastam em molhos a lenha inútil, / pelos campos as gralhas zombam avulsamente» Quadro rústico de grande plasticidade, sem dúvida, a fazer lembrar pintores como van Gogh. A concluir, logo na página seguinte, em «Prodígios», leiamos esta quadra: «é possível trazer para dentro da lágrima / a subtil viração de certas tardes de inverno, / quando à janela as cortinas esvoaçam / e se descobre um mundo subitamente interrompido».

João Ricardo Lopes é, sem dúvida, um insaciável buscador de tesouros, naturais ou elaborados por obra do génio humano; coleciona sensações, contemplações, entusiasmos de índole estética e espiritual. Não é um turista apressado e frívolo numa correria tonta, galgando geografias de máquina fotográfica frenética, atrás de alvos banais para registo de selfies e de filmagens. Datados no tempo e situados em amplos espaços da cultura e da arte europeias, estes poemas, de tamanho e estrutura diversificados, constituem-se em precioso álbum literário daquilo que de mais belo e imperecível a humanidade foi realizando. Por aqui se movem em aparições mais breves ou mais demoradas, vultos tutelares da língua e cultura portuguesas, como Camões, Camilo Pessanha, Saramago; génios da arte universal como os poetas Horácio, Schiller, Whitman, Lorca e Seferis; pintores como Vermeer, Caravaggio e Bosch; músicos como Schubert, Debussy e Ravel. E tantos outros, cujas vidas e legados impressionaram o Poeta e o inspiraram nas digressões por museus, catedrais, jardins, monumentos, praças e avenidas, em diversos sítios tais como Creta, Londres, Milão, Madrid, Sevilha, Lanzarote, etc. Um andarilho do sonho e do mistério; do fascínio dos lugares e das coisas em que poisa e demora um olhar deslumbrado.

Encerro esta despretensiosa e limitada exposição-apresentação, lendo o poema «O Cheiro da Terra» (página 31), demonstrativo da faceta telúrica que esta obra também revela.

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O CHEIRO DA TERRA

o cheiro mais antigo de que me lembro
é o perfume da terra

antes mesmo da fragrância húmida
do mar e da chuva,
antes do odor do papel, dos vernizes
ou da tinta,
antes mesmo do aroma dos laranjais,
ou das rosas, ou do pão

invade-me às vezes uma volúpia incerta
de caminhar descalço
sobre os campos lavrados,
de erguer punhados dessa matéria negra
e macia
– aparentada com o ardor
do alecrim e da rezina –,
caindo em torrões e grânulos
como deve cair

os cheiros são o nosso modo de rastrear
o tempo

é um mistério o que deles nos fica
e porque ficam,
um mistério

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Feira do Livro de Braga, 14 de julho de 2021
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