Dever de vida

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Fotografia de Joe Hendriksen

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Massimo Volti amava a velocidade.

Sem ser vascolejada a vida era o mesmo que possuir certa parte do corpo e não ser capaz, por defeito, por velhice, por ausência de alegria de a erguer tão alto quanto o permitissem os vasos sanguíneos.

Na vida deve ousar-se, eis a divisa da sua existência.

Odiava todas as formas de assentimento, de obediência e de medo. E por isso esporeava os cavalos até espumarem, arriscava círculos improváveis sentado no girocóptero, atravessava com a fúria da sua lancha Ferrari V12 o intervalo das ondas de todos os mares do Mediterrâneo, derretia ao volante de um futurista Alfa Romeo C52 herdado do avô Silvano as curvas e contracurvas que desciam de Génova à Calábria.

Massimo Volti amava o risco.

Como na labiríntica lei einsteiniana que sugere a deformação do espaço-tempo pela ação dos corpos celestes massivos, assim os cabelos das beldades nas praias de Portofino e a dos pastores nos píncaros de Matera se contorciam à sua passagem alucinante.

Era um louco. Certo poeta português encomia bastante este género de grandeza buscada no estouvamento.

Um homem deve poder acrescentar ao ramerrão uma ou duas colheradas de adrenalina. Mesmo se às duas por três perde o controlo de si e o corpo, como um inseto sem asas, voa uma última vez em direção ao abismo.

Para Massimo Volti Ícaro era o único herói suportável e entendível. Sem concordar ou discordar do seu modo de vida, admitimos somente um pouco de inveja. Apenas um pouco.

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Ele sabia

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Johannes Vermeer, A Leiteira, ca. 1657

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O vento punha-se a titilar nas ervas altas e era bom. Era livre. O sol caía em cachos na toca dos grilos e era belo e livre. Os miúdos saltavam os muros e corriam livremente pelos talhões de margaridas e era maravilhoso vê-los. O pintor compunha sem pressa o azul do mar ao fundo e o pé robusto das árvores ao perto e era muito agradável, agradabilíssimo, prestar atenção ao vento e ao sol e às crianças a voarem juntas pelo prado.

O poeta, no entanto, preferia a chuva e o silêncio. Preferia, sem dúvida, o canto mal aceso do seu carvão, a odor forte do seu tinteiro, o peso enorme dos seus versos impregnados na solene tristeza dos poetas. Era um desses homens infelizes para quem a simplicidade das coisas não faz sentido.

Quando a rapariga que vendia o leite lhe bateu à porta, com as faces cheias de rubor e o coração aos saltos, o poeta não encontrou as palavras certas para responder à saudação. Dentro de si as verdades tinham a dureza do mármore e o espontâneo cansaço de uma mesura.

A rapariga amava-o e ele sabia. Mas não era capaz de viver com a alegria ingénua de um grilo, só com o ímpeto de um tigre enjaulado. Era a sua pena e ele sabia.

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