No velho e saudoso dicionário de Grego-Português e Português-Grego de Isidoro Pereira, publicado pela Livraria Apostolado da Imprensa, releio na página 283 (terceira entrada da coluna à direita), um dos termos mais belos da língua ática: κάθαρσις, εως – purificação, purgação, catarse, consolação da alma pela satisfação de um dever moral, cerimónias de purificação para os candidatos à iniciação.
A necessidade das palavras antigas recorre nos dias em que nos faltam saídas de emergência. Nos dias em que sentimos falta de um bem maior e precisamos de nos lavar com um sabão profundamente eficaz, e não apenas a pele, mas o olhar, o sentir, a parte de nós onde corpo e espírito se miscigenam e soltam amarras em direção a lugar mais etéreo. Creio que me sentia assim quando escrevi o curto poema «Higiene Diária», incluído no livro Em Nome da Luz e que, à distância, me parece quase uma lista de bens imprescindíveis, um memorando, uma pobre oração: «coisas de que um homem precisa: / dos doze girassóis de van Gogh, / dos quatro Evangelhos, / de sabão rosa».
Ninguém fica igual depois de uma catarse. O preço dessa água, a bem dizer o padecimento e ardura do verbo καθαίρω, é parte do caminho para a salvação. Os gregos (todo o teatro de Ésquilo o ensina) acreditavam que nada na vida se aprende sem sofrimento. E quem aprendeu sente-se profundamente limpo, ainda que poucas vezes perceba ou tome partido do privilégio dessa salubridade.
Hoje, primeiro dia de novembro, regressei a esta parte da casa onde os últimos vasos coloridos alardeiam as suas flores. Gosto de beber o meu café aqui, no recanto que muitas vezes se enche de gerberas e orquídeas, de cravinas e de gladíolos, lírios e jarros amarelos, mas também de funcho, hortelã, salsa, limonetes, lúcia-lima, hipericão, coentros…
Há muito que não vinha. A terra silenciou-se quase por completo. Apenas uns quantos côvados insistem em existir nessa dimensão do belo, habitat de um sem-número de crisântemos brancos, vermelhos, alaranjados, lilases, azuis. Olho-os com a chávena nas mãos, quase comovido. Surpreende-me que neste mês tão baço uma tal flor viceje com júbilo no canteiro do silêncio. O escritor-cardeal José Tolentino Mendonça escreveu num poema intitulado «crisântemos tardios» que «A vida exige de ti ainda mais escuro / um revés, este passo em falso» / uma quantidade de perguntas (…) / alicerces arruinados / diante das soberbas formas».
Até hoje nunca me seduziu particularmente esta planta, cujo nome Gaspard Bauhin e depois dele Lineu quiseram que significasse à letra flor de ouro. Parece-me óbvia a injustiça. É uma flor bela, pese a discreta geometria da sua leve aparição. O vermelho dos crisântemos não fere como o vermelho das rosas, nem entontece como o vermelho dos gerânios. É somente um vislumbre de luz sem perfume, como se aos mortos fizesse uma vénia invisível. E aos vivos também.
Na minha frente a paisagem mais significativa: vinhas desenhadas com precisão, um pequeno palacete entre elas, ao fundo – na orla do espaço – um bosque. Árvores outoniças, bordos amarelos e alaranjados, carvalhos, uma linha de choupos quase despidos a tocar – à distância – o branco, árvores verdes ainda, castanhas, outras atirando ao azul, como os pinheiros nórdicos que alguém aí plantou e me dão agora a sensação de um ar frio vindo de muito longe.
Saí mais cedo do almoço. Não suporto almoços. Os dias de almoço atrasam-me. Estar parado aqui, no meio da viagem, não. As pessoas fazem-me desperdiçar horas, obrigam-me a gostar delas, a preferir o seu bom gosto, a admirar escravamente o seu blush, o seu batom vermelho a combinar com as unhas, o seu decote, a sua joia ostensiva, a sua juventude, a sua perfeição física.
É uma vinha enorme. Homens vêm e vão deslocando-se em tratores ou a pé, com ar de quem sabe cuidar e de como proceder com cada videira. Admiro sem limite a sua sabedoria. Sinto-me intimidado pelo desenvencilhar dos seus gestos, pelo orgulho discreto das suas mãos quando se servem da tesoura da poda. É como se dissessem não existe maior dignidade no ser humano do que a dignidade de trabalhar bem, com limpidez, tocando as velhas coisas com amor.
Detesto as coisas novas. A ciência do digital, a produção de conteúdos balofos, a beleza oca das pessoas falsas e falsadoras. Por isso me penalizam tanto estes encontros, as reuniões sem pontos de ordem, os convívios com gente que deixou de ser gente e se tornou um produto narcísico, hipócrita, corrigido pelos retoques estéticos e elevado à curva sinistra do snobismo.
– Quando casas, Ricardo?
Abandono os almoços – invariavelmente – no instante em que começam as perguntas. Pior do que os detalhes alheios são as perguntas. Hesita-se, duvida-se, responde-se às vezes. Mas as pessoas não escutam. As pessoas agora interrompem os discursos confessionais, porque são extremamente incapazes de não partilharem mais detalhes, mais conteúdos, mais informação cativante das suas existências-fitness.
Gosto de viajar com as janelas do carro abertas, a absorver os cheiros, o ar, as vozes que chegam de fora. Às tantas apanho na frente algo de que gosto e paro. Antes fumava, agora não. Agora limito-me a permanecer em silêncio, a colher com as pupilas, como o rinencéfalo, com a saliva aquilo que o acaso me traz. Este perfume da terra, por exemplo, esta impressão húmida dos musgos sobre os muros de pedra, estes vinhateiros afanados. Cortam os ramos secos e parecem falar sozinhos. Ou talvez conversem com as cepas. Avançam devagar pelos corredores do terreno e expurgam-nos, limpam-no dos excessos, cutilam a lenha pelas vergônteas certas. Depois carregam tudo e avançam um pouco mais. A vinha rejuvenesce.
O escritor José Tolentino Mendonça surge-me pelo meio dos fotogramas deste filme. A sua poesia cabe aqui com delicadeza, com humor, com pertinência. Talvez por ali, onde a neblina inçou de repente, vagueie Deus. Talvez por ali vagueie calado, com as mãos atrás das costas, distraindo-se um pouco do extremo sacrifício da sua solidão. Acredito que vagueie, decerto saturado da beleza e perfetibilidade dos seres que orbitam a maior parte do seu tempo.
– Quando é o casório, Ricardo?
E eu entendo que o Pai Celestial se queira talvez sentar ao meu lado no lugar do pendura, a observar comigo esse postal, a descansar do fastio e da insuportável sensação de que o tempo é simplesmente estúpido quando passa por nós e não nos leva consigo.
Os homens conduzem agora os tratores para outro pedaço da quinta. Invadem-me os ciúmes e uma certa tristeza. Dou uma volta à chave na ignição, o carro responde, despeço-me disto, de Deus, de mim. Esperam-me já noutra parte. Tenho de ir.
Procura-se, procura-se melhor, procura-se com afinco e é então que surge o orifício, melhor o alçapão, melhor ainda o portal para esse tempo julgado desprendido de nós, a vaguear no vazio – como uma jangada sem gente, quer dizer com gente, gente morta, gente que nos visita em sonhos e que nós visitamos no pensamento. Procura-se e às vezes descobre-se um modo de descermos ao mais fundo da existência. Principia nesse instante a poderosa viagem a que um caderno aberto e uma lapiseira afiada aspiram.
Por exemplo, estes dias em que andamos de pijama pela casa, pelo pátio, pelo meio dos livros e ocorre-nos de repente que os nossos gestos são os gestos dos nossos velhos – escrevo velhos com amor, com devoção. Por exemplo, esta forma de acariciar as folhas carnudas da alfádega, de roubar à pele da mão o hausto por sua vez por ela furtada aos folículos dos manjericos, à citronela, ao verde luminoso dos fiolhais. Damos por nós a tombar num mergulho de décadas até a um quintal antigo, até a um avô que procedia exatamente do mesmo modo nas manhãs solares de junho.
Estamos a vê-lo, as repas do cabelo e a barba rala – do mesmo tom tisnado – por fazer, o rosto macilento, o colete de lã azul, as calças enfunadas por dentro das galochas, a enxada ao ombro. Vemo-lo a fazer a vistoria diária aos regos de milho, ao talhão das batatas, à inflorescência das vides. Amiúde o olhar perde-se-lhe mais rúbido, mais aquoso, mais longe. Vemo-lo a palpar o tronco das árvores, a medir o tamanho dos caules das cebolas, a fazer cócegas aos tufos de salsa, a dizer de si para si coisas que apenas se percebem ditas pelo movimento aguçado do queixo e da boca infeliz.
Estamos a vê-lo. Funga como nós fungamos. Leva a palma ao cabelo como nós levamos. A feição de tirar da ameixoeira o fruto amadurecido e rescendente e de o passar pela roupa sem outro modo de o lavar é a nossa feição de o tirar da fruteira e de o levar à boca. Estamos a vê-lo. O seu sorriso breve e tímido é o nosso sorriso. Sorri para os pequenos bichos que cacarejam e chafurdam na lama. Cada qual com o seu nome próprio, porque esse avô gostava como Adão de nomear os animais. Estamos a vê-lo. Com um lápis rombudo anota na face da madeira números e garatujas. Faz a lâmina da serra deslizar sobre a carne das tábuas e constrói coisas, guarda as aparas, aproveita-se do serrim. Tudo é bom e útil e dádiva que se não deve menosprezar. Estamos a vê-lo e, vendo-o, vemo-nos na grande proximidade que apenas a distância soube mostrar.
Tropeçar na memória é um risco que corremos. É uma espécie de vágado. Pomo-nos a deambular em silêncio pelos corredores e precisamos de uma voz apontada às folhas lisas do caderno. Sentimos a orfandade dilatar-se dentro de nós como um tumor. O tempo, que desnovelamos pouco a pouco com palavras humildes e tersas, magoa.
Esses velhos pareciam criaturas eternas velando por nós, aconchegando-nos no fogo particular das suas palavras, e eis que de repente passaram trinta, quarenta anos, e nós somos o lugar difuso que eles ocuparam. Repetimos-lhes os provérbios, o gosto pela broa, a sisudez endurecida pelo orgulho, a repugnância pelos fracos, traidores e hipócritas deste mundo. Somos hoje os velhos do amanhã e damo-nos conta de que pequenos seres ao nosso redor nos espiam e nos imitam, atentos aos mínimos movimentos da nossa solidão.
Procura-se, procura-se bem, procura-se no fundo das gavetas, procura-se por detrás das sombras, por dentro da ofuscação do aqui e do agora e é então que surge essa frincha, essa abertura, essa ruína antecipada de nós mesmos zarpando em direção ao ponto mais vago do horizonte. Adestramo-nos na morte. Estamos mais perto, cada vez mais perto, pertíssimo talvez. Desconfiamos que alguém possa à retaguarda acompanhar-nos nessa viagem – açodada agora – de palavra para palavra, a mais veemente a que um caderno aberto e uma lapiseira afiada podem aspirar.
Como naquele conto de Jorge Luís Borges em que Aureliano de Aquileia foi condenado a morrer numa fogueira, atraiçoado pelo ciúme de João de Panónia, assim Kamo no Chomei se viu enredado na maior das perfídias por conta da inveja de Katsuo Hashira, poeta rival, poderoso, incapaz de lidar com a gloriosa humildade desse eremita a quem apodava de “provinciano”, mas cujas reflexões sabia superarem em brilho, sageza e inteligência a enfadonha e aristocrata tanka que ele, Katsuo Hashira, oferecia ao xógum e aos cortesãos de Quioto a transbordar de manha, soberba e sabujice.
Murmurava-se.
Esse labrego não só pretende fazer perder neste palácio a jovem mulher do nosso senhor, a quem ministra as artes da sedução, como conspira com o inimigo, recebendo-o nas choupanas sórdidas onde pernoita e onde o informa continuamente acerca dos passos dos nossos samurais.
Dizia-se.
Kamo no Chomei compõe palavras viciosas, fingidas de sabedoria, mas acutilantes como a lâmina de uma wakizashi. Simula-se despojado e pobretanas, mas um dia – haveis de ver – governará a cidade e punirá severamente aqueles que, como nós, com justiça, dele desdenham.
Pedia-se.
O nosso xógum deve cuidar do seu jardim e cortar cerce as ervas daninhas, essas que medrando no verde livre da primavera se prendem aos pés e fazem tombar os poderosos. Kamo no Chomei merece a prisão e merece um fio de espada sobre o pescoço.
Quando os soldados do governador, subindo devagar as encostas atafulhadas de caruma e folhas de bordo, lobrigaram lá no alto uma cabana débil formigando fumo branco e ao pé dela avistaram Kamo no Chomei abstraído deste mundo, mirando com olhos ternos um sem-número de níscaros que medravam sob o tronco de uma grande árvore vestida de amarelo, duvidaram que aquele zé-ninguém constituísse uma ameaça a uma libélula, quanto mais ao senhor de Quioto.
Ainda assim, cumpriram ordens. O casebre de Kamo no Chomei foi reduzido a cinzas e o seu corpo posto a ferros.
Durante o inverno, enquanto a neve sepultava a terra com mantos sucessivos de silêncio e de perdão, Katsuo Hashira – cujas intrigas, ardilezas e femininos caprichos haviam tornado alvo de todos os ódios dentro da corte – morreu estrangulado. Aos poucos, a natureza sacudiu-se da neve e do gelo e o sol – desensarilhado das curtas noites da estação – regressou ao vigor da sua juventude, iluminando os belos renques com as cerejeiras em flor.
Tal como se viu apartado do mundo num instante, noutro instante Kamo no Chomei foi devolvido à liberdade. Não quis o cargo deixado vago por Katsuo Hashira, mas aceitou com alegria um quintalejo no cimo da floresta, perto da fonte de Iwojira.
Mais do que tudo, um homem deseja um pouco de paz e um quinhão de terra onde a morte o possa encontrar, livre e limpo de todo o lixo que a humanidade – ou parte dela – infatigavelmente fabrica e esconde no mais fundo da sua alma.
Anotados a lápis vermelho-vivo, com a instrução sumária de que fossem abertos no dia 25 de abril de dois mil e vinte e quatro, o poeta-pintor e tradutor-publicitário, homossexual e surrealista, cidadão sem papas na língua e de cabeça limpa, de sua graça Mário Cesariny de Vasconcelos, deixou uma pilha de papéis lacrados numa arcazinha imitativa da de Fernando Pessoa.
Deste, que agora mesmo seguramos nas nossas mãos e cujo rasgamento se fez com faca de aço inoxidável, acabou de extrair-se e de desdobrar-se o poema «ERA DANINHA».
Não há erro ortográfico, nem data de criação, só um manguito à Bordalo, desenhado com o mesmo carvão no final do texto.
Transcrevemo-lo para o público e devido reconhecimento.
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ERA DANINHA
O António era fascista.
Deixá-lo ser.
O António lambia botas
Deixá-lo lamber.
O António entregava os amigos.
Que se vá foder.
O António perseguia os inimigos.
Havemos de o prender.
O António morreu.
Deixá-lo morrer.
O António quer voltar ao mundo.
Deixá-lo crer.
O António crê poder voltar ao mundo.
Deixá-lo querer.
O António chora com aquilo dos cravos.
O ranho seca-lhe, vais ver.
O António no outro mundo redige protestos.
Deixá-lo escrever.
Cem mil diabos carregam o António no inferno.
Deixá-lo sofrer!
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Dos remanescentes textos, cujo conteúdo muito nos deleitou e em parte surpreendeu, daremos oportuna (oxalá brevemente) a cabal notícia.
O correr das palavras numa carta não poderia admitir atentados à caligrafia ou à ortografia, tal como o tempo mostrado nos seus relógios deveria não discrepar entre si um segundo que fosse; da mesma forma que – só para terçarmos os exemplos – seria absolutamente inadmissível para si errar a quantidade de coque que teria de colocar no fogão para aquecer a casa.
Várias questões o atingiam em simultâneo.
Uma delas a de determinar o número preciso de seres humanos que desde Adão visitaram o nosso planeta. Outra a de cifrar aos cêntimos o maravilhoso dinheiro guardado nos cofres do Banco Nacional da Suíça. Outra ainda a de equacionar em números tangíveis, num caderno, a idade do universo.
«Tudo tem um propósito, uma lógica, uma verdade plantada dentro de si próprio. Chama-se a isso ordem.»
Mas por muito que a inventasse, a ordem teimava em não obedecer-lhe.
Uma bela manhã de abril, depois de reclamar com o carteiro (cuja falta de pontualidade lhe inspirava um ódio visceral, quase animalesco), a seguir a uma zaragata ao telefone por conta da gramagem dos pacotes de cevada, profundamente melindrado com a progressiva dessincronização do bater das horas nas torres próximas da Igreja de São Pedro e da Abadia de Fraumünster, a janela do escritório deste antigo engenheiro aeroespacial (localizada num sétimo andar da Münsterhof) viu-o – como um moscardo cabeludo – atravessar o parapeito sem mais nem quê em direção ao vazio.
Não deixou nada escrito. Nada. Nem uma confissão de culpa. Nem um reparo à humanidade. Deixou, isso sim, o apartamento na confusão maior que possa imaginar-se, com estantes despidas, armários abertos, objetos empilhados à toa num caos digno de uma residência de universitários estroinas.
Era como se Huldrych Fritz-Meier se tivesse assaltado a si mesmo. Como se o tivesse feito com requinte de prazer e de traição.
Johann Reusser, pastor calvinista, amigo e antigo colega de escola de Meier, foi severo na despedida do corpo: «A vontade de imitar a omnisciência de Deus atinge algumas almas como uma pedrada vinda diretamente do diabo. E para quê?»
Eis uma boa interrogativa. «E para quê?» reperguntamos nós.