Sabes que envelheceste

Els Baltjes
Fotografia de Els Baltjes

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Sabes que envelheceste quando não tu, mas algo em ti se recusa. Quando uma teimosia despida de sol se apodera dos teus sonhos e sabes que os não vais viver. Não és triste, longe disso, mas a felicidade é também ela um pouco impostora. Bebes à noite, às escondidas, tanto para esquecer como para lembrar, e o teu rosto é uma máscara.

Sabes que envelheceste quando te aborrecem os livros, as viagens e a companhia. Olhas para trás e nada descortinas, senão gente e coisas de cinza, sombras, vagas conversas idiotas. Não és triste, que ideia absurda, mas cais em ti com violência como quem é atirado para o interior de uma masmorra. Olhas ao redor e nada reconheces, nem sequer a velha voz onde nasceste, nem sequer o olhar honesto e acutilante de outros dias.

Sabes que envelheceste quando os ossos cantam e tu não. E há mais silêncio e mais pedra em ti, e mais tédio e mais incerteza, e mais terror e mais solidão. Não és triste, olha o disparate, mas as palavras já pouco dizem, ou dizem nada, porque as sentes cada vez mais como um eco fútil, inútil e venenoso, e isso verbera-lo tu com ódio, porque não és triste e desconheces a tristeza.

Sabes que envelheceste quando todos os dias são o mesmo dia, e o antes é já o depois de acontecer, e nada acontece, e tu sabes que envelheceste. Não és triste, detestas que to digam, mas pertences cada vez mais às coisas que amas (e são poucas) e cada vez menos às pessoas que já não sabes ou não podes amar (e são muitas), deslumbrado com o poder do silêncio e com a castidade que nele desconhecias.

Sabes que envelheceste quando deixaste de compreender o confuso mecanismo de salamaleques traiçoeiros, elogios hipócritas, sorrisos concupiscentes, cúpidos materialismos dos novos e afinal de todos os tempos; quando deixaste de suportar esse relógio ancestral de ameaças, avisos e bestiais represálias em que se move, em círculos, a gente de agora, a que veio e a que virá; quando deixaste de aceitar o triunfo da estupidez sobre a razão, o estudo e a sabedoria. Não és triste, triste é quem não o é, mas os teus passos encurtaram, o teu rosto emudeceu, as tuas mãos tornaram-se uma outra forma de metal.

Sabes que envelheceste quando te aceitas desse modo, velho e simples, cru e talvez cruel, sem adornos, supervivente, amigo dos poucos amigos que ainda valem a pena, fiel às paisagens que te acordam noutro tempo e noutro lugar, sem contemplações, mas contemplativo, amargo e todavia doce, de uma doçura que somente os que a ti são semelhantes podem compreender, prezar e, quiçá, amar. Não és triste, o que é ser triste, mas corajoso, coerente, preso ao teu destino como uma árvore às suas raízes.

Sabes que envelheceste quando não precisas de explicar porquê. Não és triste. És tu.

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O último dia é sempre um primeiro dia

Clemens Geiger
Fotografia de Clemens Geiger

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A avenida cheia de gente, gente cheia de pressa, faz-me esquecer tudo. Levo encontrões, pisam-me os pés, olham-me como a um animal ferido (com o seu rasto de morte, largo como um cometa). Mas não me importo. Prefiro assim. Os rostos desfilam vertiginosos, belos, muito belos, horríveis, disformes. Não consigo lembrar-me de nenhum. Só da quantidade. Tantos rostos, tantas histórias, tantos eus engastados uns nos outros, tantos futuros incertos, possivelmente brilhantes, provavelmente encurtados, tantos passados cheios de mossas, tantas cicatrizes escondidas, disfarçadas pelos pírcingues e tatuagens. Da quantidade, sim.

No fim de contas, há o antes e aquele momento em que nos damos conta de que não fazemos diferença nenhuma, absolutamente nenhuma, num mundo repleto de drama, num mundo incapaz de aceitar o drama, num mundo cheio de gente com dramas e absolutamente incapaz de lidar com o drama. Não fazemos falta nenhuma, porra, nenhuma.

O que me fica na memória é a gente à margem, a gente assim como eu, a alimentar os pombos, a gente excluída do caudal, a gente velha, a gente que cisma cada movimento do corpo e o faz rodar devagar, a gente que tem a barba por fazer, a gente que veste casacões de fazenda e rugas descomunais, rugas pronunciadas e verdadeiras como grand canyons, a gente atrelada a cachorros feios e tão sujos que são mesmo uma fotografia, a gente que cheira a óleo e urina e suor e outras secreções talvez secretas.

A avenida é interminável. Todos cabem nalgum lugar. E eu, que me entretenho a não pensar em nada, penso como é engraçado isto de ocuparmos algum lugar, como algures, suspensa num andaime sinistro, há gente-gárgula, como além, no bojo prateado de um boeing, viaja quem sabe o próximo grito da moda, como ali, em frente aos espelhos descomunais das lojas chiques aporta a outra gente, a gente dominadora, a gente a quem se mostra a cabeça subitamente desalojada de chapéus e uma pequena vénia respeitosa. A avenida é interminável. Os vermes têm de esperar a sua vez. Só à noite podem mostrar-se. A noite pertence-lhes. À hora certa os rostos escoarão, trocarão de lugar. Quando a mais ninguém puder pertencer, a avenida há de acoitar estes rostos que olham o vazio e dão de comer aos pássaros. O espaço parecerá maior, desolador, gigantesco. A verdadeira solidão será, portanto, essa.

Mas, neste momento, sou apenas um corpo em movimento, atropelado, empurrado, levado na corrente. Os pés e os olhos esforçam-se por coordenar uma narrativa. A mole de rostos macera, deixa a sua impressão inumana, o seu toque desleal, voyeurista, como se todos fossem um só e um só fosse apenas um sonho. Não consigo lembrar-me de nenhum. Nem sequer da beleza ou da profunda fealdade de um olhar. Aqui sou maquinal e doente como todas as máquinas. Talvez tenha vindo por essa inconfessada razão.

No fim de contas, há o antes e aquele momento em que nos damos conta de que nada em nós é melhor, ou mais legítimo, ou mais perfeito do que nos outros, nestes todos que caminham, reptam, voam diante os nossos olhos. Não fazemos falta nenhuma, nenhuma, porra. E essa é ainda uma outra solidão, uma lídima solidão sem nome, que nos obriga a viver, a pertencer aos gestos, a ser, a durar, a existir para lá de todos os lapsos de memória e amor.

A avenida é interminável. Não sei há quanto tempo me não dou conta de caminhar. Caminho. Limito-me a não pensar. Em breve, terei todo um novo texto pronto. Não sei qual. Definitivamente, não sei.

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