O LUGAR (IN)COMUM DA NOSSA INFÂNCIA

Village
Fotografia de Chris Erdman

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No vagar da casa definia-se melhor a natureza imutável dos gestos. Era sublime, por exemplo, a luminosidade que transbordava dos dedos à roupa no estendal nas manhãs de maio. Por exemplo, a vaga tristeza súpita que descia connosco ao silêncio mais profundo de uma gaveta. As coisas ocupavam o seu lugar dentro das palavras, ao lado de outras coisas dentro de outras palavras, e vinham contra o olhar, sobre o olfato, ao toque imaculado dos dedos. Existia-se, respirava-se, decompunha-se com minúcia as formas e os cheiros, a tessitura dos tijolos, os pensamentos, o frio. Era o desabrochar da infância.

Essa infância abria uma cancela alta e vinha a correr. Trepava escadas de pedra, interrompia-se instantaneamente diante uma velha porta de madeira, em cujo rodapé espreitava o fumo escuro e a pálida luz elétrica de uma cozinha. Essa infância entrava, invadia um solo indubitavelmente sagrado repleto de objetos puídos, macios, mascarrados. Encontrava aceso o lume da lareira, o brilho dos cobres, as cerâmicas muito lavadas. Chiavam ali três grandes potes de ferro, ali onde cheirava a café fresco, onde mãos trémulas iam depositar a sertã sobre uma trempe, ali onde ardia às vezes – sobre magníficos tições rubicundos – a boa carne do fumeiro, ali onde pequenos olhos atentos escreviam já a sua escrita inócua e fascinada.

Pregado à penumbra deste primeiro espaço, a infância descortinava o claviculário surrado. Era o lugar de onde se partia para todos e de onde se regressava de todos os lugares. As vozes reuniam-se para comer, para contar o tempo, para persuadir a Providência. A infância escutava e rezava, participava na prudente litania com que se defendia a casa dos males deste e do outro mundo, ia sonolenta pelo limiar tosco dos móveis e escapava-se para o corredor. A infância escabeceava como um inseto alado, ensarilhava-se nas teias nascidas sob as traves, gemia às vezes com as velhas missagras ferrugentas das portas interiores, absorvia o aroma intenso do eucalipto, sonhava. Depois vencia o torpor, beijava as faces endurecidas dos anciãos e pedia-lhes a bênção. Depois tombava no sono imaculado dos justos.

Havia na raridade destes gestos sagazes e piedosos outro espaço de que hoje se é órfão. Outro espaço de que hoje se sente uma falta inexplicável. De que hoje se lastimava a dor incalculável. Como se de um remorso se tratasse, como de uma mutilação falássemos, como se um vazio impreenchível nos engolisse. Beijava-se e era-se beijado, dizia-se e era-se nomeado, sentia-se e era posto no âmago dos sentimentos. A infância era essa casa, essa casa-mundo, essa casa-alma, essa casa-intraduzível.

Por muitos anos pensei que me morrera ela, desfeita de cima a baixo pelo sinistro braço do caterpillar. Pensei nessa casa-entulho que os camiões transportaram como uma sombra para parte incerta. Essa casa devolvida aos caboucos e ao cheiro alcalino do saibro, restituída ao desenho ancestral do seu quadrado de terra. Essa casa que outra casa afundou para sempre, debaixo de betão e toneladas de metal.

Mas não. Essa casa onde a infância respira ainda não morreu. Nem a imagem dolorosa do seu desmantelamento pôde destituí-la da sua geografia encantatória. Nem as malditas quelíceras das máquinas puderam abafar as suas vozes benditas. Nem os seus velhos puderam partir – eles que renascem a cada instante na exatidão singular dos gestos que lhes repetimos. Será sempre a casa. Como esses velhos serão sempre uma memória infalível, uma memória que regressa no vagar das sombras e nos enche a boca como uma canção longínqua.

Ah, essa casa não morre.

No vagar da sua esquadria, os gestos eram sublimes, tristes, maravilhosamente esculpidos. Abriam, por exemplo, a terra e sepultavam nela sementes poderosas. Narravam, por exemplo, com palavras poucas e inquestionáveis – à noite, ao lume, no bojo do silêncio – a história de Branca Flor. Nada possuía verdadeiramente esse mundo. Ele era senhor de si. Tudo recaía em nós paulatina, singelamente, como camadas de um amor impossível de corromper. Existia-se, respirava-se, sobrepunha-se sem pressa as minúsculas células do tempo, as formas e os cheiros, a tessitura dos tijolos, os pensamentos, o frio. Era o desabrochar.

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CRÓNICA DO VELHO ADOLESCENTE

Ivan Slosar
Fotografia de Ivan Slosar

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«O melhor lugar do mundo é onde nos apetece ancorar a alma.» Não sei quem afirmou isto, se o devo atribuir a algum dos meus livros, ou se na verdade o pensei e escrevi eu próprio. A frase ginga na cabeça e é bela, apetece apanhá-la a caminho de um parágrafo. Sinto-me tão bem aqui, a tomar conta dela. Aqui, à beira-mar, a ler um dos poucos jornais portugueses que se aproveitam. A ler-lhe mais precisamente o suplemento de viagens que sai uma vez por semana. Sinto-me tão bem aqui, a cismar na eterna questão da casa que sonho construir. E a desejar construí-la em geografias que a sugestão onírica me faz desejar, geografias tão remotas como o Japão ou a Islândia, uma ilha mediterrânica ou o Brasil…

Vem-me à memória também a outra frase — «A nossa casa encontramo-la onde encontramos a nossa felicidade.» — provavelmente outra daquelas sentenças engenhosas, sem autor, que nasceram com a humanidade; provavelmente outra frase tão vadia quanto a própria humanidade que a engendrou; provavelmente na cabeça de alguém em trânsito pelo mundo, em busca de casa e felicidade… Provavelmente!

Entretenho-me a passar os olhos pela revista e a cogitar na vida («Cogito ergo sum», reza Descartes). Os últimos tempos, não falando sequer de outras mercês, têm-me proporcionado mãos cheias de leitura e de reflexão: a revista a explicar-me que o maior glaciar da Islândia se chama Vatnajökull, como devo e quando devo ir à Islândia, onde posso dormir e comer na Islândia, e eu a considerar que os vulcões da Islândia e os lagos de água quente da Islândia e os nutridos rebanhos da Islândia podiam bem ser um caminho para mim. Entre ascetas, seria mais um!

Mas depois, alguém entorna um copo. O feitiço quebra-se com o olhar de uma mãe, que se pasma para a faceirice da sua bebé, ao colo. Logo me acode que, entre neves eternas e centrais geotérmicas, me desfariam as saudades da Salomé.

A revista passa então a propor-me a Borgonha dos bons vinhos. Nunca deixei de acalentar a ideia de me retirar para uma dessas vilinhas francesas, com o seu castelo medieval e com as suas colinas recortadas de vinha. Aprenderia a linguagem das uvas, entranhando-me na terra e nos taninos, imitando esses leigos que chegam do EUA e da Austrália para se entregarem à missão última das suas existências — comprar meia dúzia de hectares de terra, deitar abaixo velhas culturas monacais e plantar castas das melhores Pinot Noir, esperando que ao cabo de anos, ou mesmo de décadas de pura obstinação, emergisse por tentativa-erro, como nas histórias dos cientistas, o prodígio de um vinho divino.

Porém, eu sou pouco versado em fermentação de uvas. Não posso declarar-me discípulo de Rudolf Steiner, nem de Nicolas Joly. O que me levaria a habitar os escuros e húmidos domínios dos lagares e das caves, onde o precioso néctar se conserva como se conserva um segredo? Provavelmente falta-me o sentido dessa alquimia, que dos gregos se transmitiu aos romanos e dos romanos aos mosteiros de toda a Europa… Sou um enólogo incapaz, para quem uma garrafa do melhor maduro de Borba contenta tanto quanto a pior zurrapa de Alenquer. Falta-me língua!

É um bom suplemento de jornal, este, o que seguro nas mãos. Não se impacienta com as minhas recusas. Apresenta-me devaneios tão variados, tão irrecusáveis, que num momento me faz subir a Victoria Peak, em Hong-Kong, e noutro descer as formidáveis Cataratas do Niágara. Leva a interessar-me tanto pela casta Moulay-Idriss, como pela babilónica Bangkok. A não menos me seduzir pela Buenos Aires de Borges do que pela Estocolmo de Tranströmer. O devaneio é cosmopolita! De resto, ler e pensar são a parede de vidro de dentro e de fora do eu. Por instinto, por gosto pessoal, por formação e hábito, gosto de me exercitar em ambas. Gosto da escrita que banha na distância. Gosto deste suplemento!

«O melhor lugar do mundo é onde nos apetece ancorar a alma.» Não sei se o velho adolescente que sonhava atravessar, como Rimbaud ou Indiana Jones, desertos e desfiladeiros, selvas e mares adversos, já morreu. Nem se os seus motivos ainda permanecem na mesma cabeça e no mesmo coração que os acalentou: ir de comboio ou de barco, de camelo ou a pé pelos lugares onde a poesia se recita ainda nas pedras vermelhas e no horizonte dourado das palmeiras… não deixar que a fortuna ultrapasse a mochila com a máquina fotográfica e os cadernos de viagem!

«A nossa casa encontramo-la onde encontramos a nossa felicidade.» repito a mim mesmo. Sinto agora esse abandono que nos chega sem querer pela mão invisível do vento.

Abandono, essa bela palavra que significa tanto hoje como nos dias de Bashô. Abandonar uma crença, um estilo de vida, pessoas, a casa primitiva, tudo! Tudo o que for preciso por causa do melhor lugar do mundo. Seremos ainda capazes? Serei?

Não, não quero escrever sobre a escrita. Não mais. Os últimos tempos têm-me mostrado o inevitável vazio da escrita em efeito de espelho: a imagem que se reflete a si mesma é um corredor oco, povoado de espetros descarnando-se até ao infinito. Retomo, por isso, as duas frases que se enlaçam, que principiam a torturar-me, que de súbito dão em conspirar contra a minha consciência, contra o muito que perdi nas últimas duas décadas. Retomo-as porque nos últimos tempos essa casa, essa missão, essa felicidade, me parecem tão improváveis como dolorosamente inúteis. «Estou como doente, como incapaz de procurar» diz uma das personagens de Thomas Mann.

E porque estou sentado numa esplanada, e porque leio o jornal, porque me ponho a cismar nas grandes questões que ocupam o nervo ciático da humanidade, fico tão absorto, tão estúpido, tão longínquo que não vejo, por exemplo, a minúscula metáfora enorme de um formigueiro fluindo debaixo da minha cadeira: uma lenta procissão, acumulando imperturbável (aqui sobre o empedrado como na mais recôndita floresta da Amazónia) as migalhas da vida.

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Abandono, essa bela palavra que significa tanto hoje como nos dias do poeta-soldado Bashô. Abandonar o conforto e as certezas, abandonar essa prisão do medo que nos impede de viver. Abandonar velhos amores pela possibilidade do amor…

Eis porque fecho o jornal e, triste talvez ainda, provavelmente ainda infeliz, ainda insatisfeito não o duvido, me consolo com a bela luz de maio — esta que me traz de volta a mim mesmo, essa que como infinitas migalhas de esperança me faz erguer, caminhar com pressa, com urgência, de regresso ao carro, à vida, ao tempo perdido!