O cenóbio

Fotografia de Naveen Venkatesan

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Depois de ter viajado pelo mundo, pelas boas terras meridionais onde amou o sol e foi amado por belas mulheres, pelas frias paragens do ártico onde granjeou fama e respeito dos marinheiros que com ele atravessaram ilhas de gelos, Knut Peterson retirou-se aos quarenta e três anos para uma das ilhas Faroé, onde viveu anos sozinho. Mais tarde tornou-se monge regressou ao seu eremitério com cinco companheiros, fundando aí um cenóbio.

Rezavam, cantavam, aprendiam o latim e os antigos idiomas nórdicos uns com os outros, liam a Bíblia e as runas, escreviam crónicas e livros de botânica. A paz caía tão branca ali como a neve que ali caía uma boa parte do ano.

Mas uma manhã um barco deu à costa, desgovernado. Nele viajava uma formidável rapariga de cabelos ruivos e efélides, jovem ainda, tão assustada quanto cheia de fome, expressando-se numa língua aparentada com a sua, ainda assim bastante confusa.

Perceberam que tinha fugido, que viajava havia semanas, que ali aportara por força do vento e das marés que empurraram o botezinho, ou por vontade de Deus que sobre o vento e as marés manda.

Era uma boa moça. Depressa se dispôs a ajudar a apanhar lenha, a preparar o pão, a cozinhar sopa, a lavar as madeiras dos musgos e vermes, a aprender as estranhas línguas que ali se palravam. 

Um dos monges viu-a a banhar-se numa das lagoas da ilha, espantosamente branca e perfeita, como um anjo do Senhor, e o seu coração encheu-se de saudades da antiga vida continental. E a um a um (Knut resistiu o mais que pôde) cederam ao franco impulso de a possuírem como sua mulher, de amarem com o corpo o que apenas o corpo pode amar.

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Um mestre taoista

Fotografia de Gunarto Song
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Yuan Chen e Zhou Zhao eram os discípulos mais madraços e descuidados na escola de Li Bei. Durante os primeiros anos serviram de exemplo e chacota aos jovens aprendizes da sua classe, tantas tinham sido as ocasiões em que o velho mestre lhes repreendeu publicamente a preguiça e as outras imperfeições e ainda mais as vezes em que despertaram a risota dos colegas.

– O sábio aprende por si mesmo, antecipa as lições, adivinha o percalço, evita o erro e a desonra.

Uma manhã, após uma noite de vigília e chuva intensa, o sol regressou ao cimo das árvores e fazia rebrilhar as inumeráveis perolazinhas suspensas dos ramos da cerejeira vermelha e dos zimbros azulados.

Zhou Zhan admirou-se com a dureza da luz assim refletida nos pingos supervenientes da chuva. Eram como minúsculas estrelas alumiando o jardim e ao mesmo tempo queimando os seus olhos. Lavou o rosto, passou água pela cabeça e pelo pescoço, depois orou, depois bebeu um gole de chá, depois escreveu sobre tiras de bambu em belos ideogramas, pincelados com amor:

cada coisa tem o seu fogo,
Cada homem tem a sua luz,
Todos nós ardemos por dentro
E por fora ardemos de novo,
Morremos como o sol e a chuva,
E a cada instante renascemos.
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Além soou o gongo. Li Bei chamava. Se não se apressasse, Zhou Zhao seria mais uma vez advertido com veemência, sentindo-se cada vez mais afastado do caminho celestial prefigurado por Chang Tao-ling, mestre dos mestres, sábio maior entre os sábios. Sentia vergonha da sua conduta, pois andava de boca em boca como os ensinamentos de Lao-Tsé e do Daozang e bem o via no olhar trocista dos rapazes que à sua frente se distinguiam na filosofia e nas artes marciais.

– O caminho de cada um de vós há de levar-vos como tigres às montanhas mais altas, mas só alguns podereis alcançar o coração dos mortais e, como o vento, unir-lhes o coração de pedra às coisas que se encontram a seu lado. Esses, de entre vós, serão admirados por muitos séculos, pois é pura a sua sabedoria.

Yuan Chen aprendera a contentar-se com uma tigela de arroz. Zhou Zhao, por seu turno, sentia um grande desgosto. Jamais seria um “candil no meio da noite”, jamais compreenderia os mistérios a natureza e os segredos do universo, jamais alcançaria a beleza íntima das coisas. Era uma vergôntea teimosa e não um tronco direito, liso e leve.

E por isso escrevia. Por isso olhava a superfície dos fenómenos, anestesiando-se com o canto da água e o doce farfalhar do bosque, refugiando-se nas mínimas labaredas que a todo o momento deflagravam à sua volta. Queria ver: era nisso que se concentrava ultimamente.

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