O nevoeiro

Fotografia de Mikael Stålsäter
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Tinha chovido toda a semana. Quando os ossos de Lev Volodya começaram a palpitar de incómodo pôde assegurar com toda a convicção:

– Vamos ter muda de tempo.

Com efeito na véspera, ao princípio da tarde, a chuva parara e o vento tornou-se apenas um burburinho encanando aqui e além na rua. Ao crepúsculo notava-se já a humidade a subir do rio e do alcatrão, em grandes mechas vaporosas que roçavam as pontes, as estátuas, os postes elétricos, as torres altas das igrejas, os edifícios governamentais, as grandes antenas da televisão, toldando o céu num efeito de gaze ou algodão a esconder uma ferida.

Na manhã seguinte, toda a cidade tinha sido engolida pelo nevoeiro mais cerrado de que havia memória. Tão espesso e ubíquo que não se via vinte palmos à frente dos olhos. Saía-se de casa e ficava-se imobilizado. Os pés não se encontravam.

Yelizaveta Dmitrievna, agasalhada no seu casaco polar, calçando luvas de pelica e botas altas, teve a sensação de estar dentro de uma pista de dança. O velho guarda-freios Maksim Krutaya, por causa da sua pequena estatura, quase anã, era só uma cabeça, andando para a frente e para trás como um carreto avariado. Esta imagem faria rir sem dúvida se o assunto fosse para brincadeira. A uns bons sessenta ou setenta centímetros do chão não se descortinava absolutamente nada.

Durante o dia a treva húmida e esbranquiçada acomodou-se ainda mais entre as formas, penetrou portas e paredes, colocou-se mesmo diante dos óculos do professor Vasily Grisha e da sua esposa, Mariya Irinushka, que não parava de os desembaciar, enquanto lia calmamente o jornal diante do samovar.

– Sabe, estou a tentar recordar-me da última vez…

Vasily Grisha calou-se assim mesmo, a meio da frase.

– Ora esta… Esqueci-me do que estava a dizer…

Mariya Irinushka não prestou atenção. Mas pouco depois, quando o telefone tocou e teve de indicar o próprio nome não foi capaz de o fazer.

O fundo do corredor era uma vaga memória, como quando se olha de longe um caminho, no meio de uma charneca, entre cercas infindáveis de madeira. As fotografias dos filhos, das noras, dos netos, pareciam desbotar num grito silencioso de afogado. Que estranho!

Nessa noite, uma grande paz caiu sobre São Petersburgo. Embaçados e esquecidos das sólidas certezas, os olhos de todos preferiam voltar-se para dentro, descer escadarias mais arriscadas, procurar lugares de sol que apenas cada um por si podia lobrigar.

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O campeão

Foto: Carlos Lopes Franco
Fotografia de Carlos Lopes Franco

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Há em todos nós um campeão, um campeão verdadeiro e irredutível, um campeão invencível, para lá dos trastes que nos tornámos (ou nos tornaram), um campeão de calções e berlindes no bolso a olhar pasmado o capador de porcos com a subtração orgulhosa ao alto, um campeão de ditados e contas de dividir, de lágrimas e joelhos esfolados, a correr pelo meio de carreiros de tojo, atrás das melhores cascas de eucalipto para fazer ventoinhas

(alguém acredita que duas casquinhas cruzadas de eucalipto e um pauzito a meio, a intersecioná-las, davam duas horas de brincadeira?),

um campeão cheio de resina no cós e lama nos sapatos, de cabelo muito macio, loiro, atrevido até, sonhando com minas e cisternas abandonadas, a cismar de boca aberta e com um fio de baba a sair-lhe sorrateiro no aspeto que teria um gambuzino

(vê lá se te apanha um gambuzino),

rindo de um riso inequívoco e belo, de um riso maravilhoso com dentes incisivos em falta, de tudo o que fosse inseto e passasse pachorrento pelo meio das mãos, das lagartas peludas aos lucanos 

(as célebres bacaloiras), 

mãos que se intrometiam nervosamente (às vezes, desajeitadamente) nos ninhos dos pardais e se comoviam com o ar esgrouviado dos pintos acabados de nascer, rindo de um mundo que era então muito mais do que tempo e espaço, réguas relógios, um mundo em que tudo se fazia a direito e pelo direito, sem pressa e sem ânsia, apenas pelo prazer de se descobrir e viver.

Há um campeão aí. Um campeão que se está a rir de nós, daquilo em que nos tornámos (ou nos fizeram tornar), um campeão de nariz moncoso, a rir do tipo de ar fino e voz melodiosa que abre a porta de nossa casa e atende o nosso telefone e responde a cada frase com um “Certamente, sôtor!”, um campeão que vem de muito longe e se ri da mulher (das crianças) diante do movimento de acrobata da aranha que desce do estuque

(Jorge, tira-me essa coisa daqui, tira-me essa coisa daquiiiiiiii).

Esse campeão, esse rosto cheio de segurança, de cinco anos, a ajudar a chamuscar o porco, a raspar-lhe o pelo com uma faca velha, afiada numa correia de cabedal. Esse campeão do sarrabulho e das sopas de vinho, a correr outra vez pelo meio dos pedregulhos e das urzes, saltitando como um animal montês, caindo e pondo-se em pé numa fração de segundos, com o coração aos pulos, atrás de grilos e joaninhas, a cantar “Lá em cima está o tiro-liro-liro”

(lá em cima está o tiro-liro-liro,  ⁄  cá em baixo está o tiro-liro-ló…),

é nele que eu penso agora, como num santo protetor, a quem pedisse a especial graça de me sacudir o torpor, de me afastar as ideias amaneiradas, de me exorcizar o mau-humor, de me endireitar as costas vergadas pela escoliose e pela deceção, de me fazer olhar em profundidade a paisagem, sem metafísica (como o Caeiro), feliz apenas, intacto apenas, vivo apenas

(há quanto tempo não olho uma paisagem como deve ser),

o tempo pega-se-nos, apaga os campeões, avilta-nos. Tão limpos e exatos, tão politicamente precisos, e polidos, e doces neste ar de eunucos de fato e gravata

(Querido, não te esqueças do jantar dos Croft; doutor, a reunião com o Secretário de Estado ficou marcada para as dezassete; Jorge, estás proibido de faltar ao meeting amanhã à noite),

o tempo arrasa, aboneca-nos, faz de nós marionetas, uma espécie de homenzinhos de palha para me servir de Eliot

(Jorge, não acho nada bem que andes a falar aos nossos filhos dessas pinderiquices de quando eras garoto),

torna-nos uns velhacos, uns frouxos, incapazes de defender o sagrado quinhão da nossa memória mais acesa

(vê lá, comporta-te, querido, não dês azo a selvajarias cá em casa).

E, no entanto, o campeão continua inteiro, não cedeu só um milímetro, transpira por todos os poros a saúde indefetível dos seres que se não vergam, se não envergonham, se não deixam subornar, boicotar, asfixiar pela cobardia

(estás cá, querido? Vais ao menos a prestar atenção ao volante?),

a correr, a foçar entre os taludes, a agarrar répteis e pássaros distraídos, a observar com minúcia operações e cerimoniais de matadouro, a comer e a beber rijamente feliz, indestrutivelmente feliz, como quando a prova dos nove confirma um cálculo, como quando o coro das meninas ergue brados ao ar, como quando a funcionária em seu auxílio avança com uma vassoura em riste, e nós fugimos, e nós rimos, e nós sentimos o prazer indizível de missão cumprida.

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Tu partiste, eu esqueço-me de tudo

manhã, Marc Apers
Fotografia de Marc Apers

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A manhã é dolente. Tu partiste. Eu esqueço-me de tudo. Na praceta, as pessoas repetem o dia anterior. Recebo notícias. Os pássaros voam eufóricos sobre os telhados. Alguém diz «Bom dia». Cheira-me a pão torrado. Dou-me conta das extremidades frias, geladas, dos meus dedos. Respondo «Bom dia» a alguém. Podia pensar na operação, em política, poesia, futebol, comida, viagens. Apetece tanto um café. A manhã é dolente. Tu partiste. Eu não penso em nada. «Bom dia, Lopes». Dou-me conta do meu corpo, abandonado sobre o meu corpo. Pesado como um fardo. Dou-me conta que existo, respiro, silvo. Respondo «Bom dia», «Bom dia», «Bom dia», maldição! Partiste. Vais casar. Dou-me conta que nenhum país é mais longínquo do que o casamento. Dou-me conta que todas as minhas mulheres partiram. Que me doem as falangetas, as falanges, os ossos, os olhos, tudo… «A arrogância é a maior das nossas máscaras e a pior das nossas pernas». Tão bem-dito. Tão maravilhosamente esculpido no meu silêncio. «Tenho idade bastante para to dizer, certeza suficiente para me não arrepender, temperamento para não ficar calada. És um equívoco. Melhor, Miguel, vives num». A manhã é dolente. Uma aragem gélida trespassa-me, como o bafo de uma maldição. Sinto a pele arrepiada, as entranhas em lume, o meu nome percutido, repetido, sem sentido, como a pele maltratada de um tambor. «E quem te pediu a opinião?». Cheira-me a alfazema. A limos. Aos ácidos de uma oficina de carros. A luz queima-me os cílios, o rosto, a alma confusa. «Se não fores tão hipócrita como julgo que não és, saberás admitir que me perdeste». E a aragem fria e a luz quente são opostos que incomodam, como indecisões do tempo. Não penso em nada. Nem sequer na castidade da roupa que cheira a sabão Clarim. Nem sequer na beleza difícil do caderno aberto, das folhas vazias, lisas, sem linhas, limpas. Nem sequer na esquadria que se me oferece da paisagem para lá desta janela aberta, de vidros amplos e imaculados. «Como se fosses uma santa, hem…». E as palavras formam nós, encordoam-se em gânglios assustadores, enrijecem, são duras e selvagens como cerdas que fazem sangrar o silêncio. E as gavetas, os cabides nus, os armários sem as tuas coisas, são fossas abissais onde ecoam, como submarinos, as minhas mãos desamparadas. «Como se ele fosse melhor do que eu…». Dou-me conta que existo, respiro, silvo, fumo. Dou-me conta que não pensar em nada é pensar em alguma coisa. Longínquos pensamentos cósmicos, ontológicos. Remotos pensamentos como as remotas estrelas que explodem numa baba inalcançável de ruído e luz. Dou-me conta do tempo. Do leve e cruel e agora persistente chicotear do remorso. «Um dia vais perceber, Miguel», «Um dia vais arrepender-te tanto», «Um dia compreenderás como às vezes se teve tudo e se perde tudo para sempre, Miguel!». A manhã é dolente. Tu partiste. Eu esqueço-me de tudo. Das frases que soam como os imperturbáveis mármores dos sábios. «Sou como sou». Do olhar derradeiro, olhos nos olhos, semente de dor, de deceção, de despedida. «Um dia, Miguel». E fumo. Fumo incontáveis cigarros na manhã de maio, atento ao mundo que gira e se não arrepende de coisa alguma. Preso ao ar que circula e sega como obsidiana os laços minúsculos entre mim e as coisas. Sorrindo sem querer para aquele dia em que, no lugar onde cheira a cimento fresco e grandes pulmões rotativos enchem de ar as galerias, nos vimos pela primeira vez. Os teus grandes olhos azuis! «Ele é o homem certo para ti. Sim, casa-te lá!». Não penso em absolutamente nada. Dou-me conta de mim. «A arrogância é a maior das nossas máscaras e a pior das nossas pernas». Que raio de filosofia. Sempre detestei os sábios e os que imitam os sábios. Cheira-me a canela, a caramelo, a chocolate quente. A manhã é dolente. Tu partiste. Sinto fome, sinto uma fome imensa, uma fome voraz. «Um dia, Miguel». Sim! Seja como for, adeus!

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O amor como ele é

Nico Ouburg
Fotografia de Nico Ouburg

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Gostava de ter sido uma pessoa diferente, mas se pudesse voltar atrás não saberia por onde começar, disseste uma vez. Lembro-me bem. Havia bocados de telha no chão, por causa de um temporal de véspera. Lembro-me que falavas com o avô e eu escrevia no asfalto. Escrevia tão distraído como o Cristo que escrevia distraído no chão.

Nessa altura, a voz era já um motor lento e rouco, afligido pelo catarro e pelo começo de um cancro. Não sabia que sim. As mãos tremiam-te. Tão brancas que mal podiam ser da mesma carne que nós. E talvez não fossem carne, mas já um vapor frio. Todo o teu corpo era uma despedida: pálido e inquieto, distante e enregelado. Como quando esperamos uma partida. Como nos domingos, antes de cairmos no nosso poço de melancolia, sabendo que cairemos nesse poço. Como nos dias a seguir às Festas, quando janeiro se torna uma estrada interminável e intransitável. Como quando sentimos o nosso ser amarfanhado, doloroso, tomado pelo medo e pela angústia. Nessa altura, todo tu eras um tronco apodrecido, caminhando sem firmeza, sem certeza, como se os ossos tivessem principiado a ruir por dentro.

Gostava de ter tido mais tempo para mim, Manel. (Manuel era o meu avô!) Gostava de ter estudado. Gostava de ter sido inginheiro.

O catarro devia ser uma espécie de código, de linguagem, de entendimento entre velhos. Porque catarravas primeiro e o meu avô ria e catarrava também. E o riso de um provocava o riso do outro e o catarro do primeiro puxava o catarro do segundo. O catarral não impedia que o meu avô puxasse do maço de Kentucky e to estendesse como quem oferece, misericordioso, um peitoral Santo Onofre ou um Dr. Bayard. Eu ouvia e escrevia. Com um pedaço de telha. Com o coração aceso de curiosidade e vaga ignorância.

Nem ao menos me ficou um neto e companhia, Manel. Tu tens sorte. Tens muita sorte, Manel.

E a sorte do meu avô era ter-me por perto. Aviar-lhe os recados. Dar-lhe cabo das leiras de cebolo e pisar-lhe os ervilhais. A sorte do meu avô era limpar-me o ranho e ensinar-me a plantar batatas, dar-me café de borra com leite e broa e explicar-me, um a um, o nome dos pássaros. Era uma sorte, sem dúvida. Aquela que têm aqueles que ficam na nossa cabeça quando viajamos e pensamos neles. Aquela sorte imensa que possuem os que nem sonham que nós sonhamos com eles e que por sua causa damos imensas voltas na cama. Aquela sorte dos que nos fazem sorrir e às vezes chorar em segredo. Porque, porra, aqueles que amamos têm esse poder, mesmo se nem
imaginam ao de leve que têm esse poder. 

Quem me dera ter por cá um dos meus. Estão todos lá na França. Todos, Manel. Não me ficou ninhum.

Quando, velho Gusmão, passaste o baraço pelo pescoço e pela trave a corda espessa de sisal, sabias que o amor é branco como a flor da cicuta e negro (nigérrimo) como as bagas da beladona. Porque o amor é formoso e saturado de uma subtil peçonha que nos aviva e nos mata aos poucos. Angústia súbita que nos incha com as vísceras, nos queima por dentro, nos sufoca, nos corrói, nos abandona às vezes.

Esse teu neto, Manel, que moço curioso! Parece que está lá longe, mas está a apanhar tudo o que dizemos…

Quando, velho Gusmão, te penduraste numa trave, sabias que o amor é formoso e sinistro, belo por fora, mas terrível e devastador também. Sabias que quando por ele respiramos e não pelos pulmões, quando nos alimentamos por ele e não por nossas mãos e boca, quando por ele sonhamos e não pelos nossos olhos abertos e distantes, estamos à beira da morte. Quando pontapeaste o escabelo, onde te havias empoleirado, e sentiste o golpe da corda serrar-te a garganta, sabias que valeria a pena ter durado mais, ter durado até se atrofiar de todo o esqueleto, se a vida te não tivesse negado o único bem por que valia tudo. Esse teu neto ainda te vai dar muitas alegrias, homem. Olha para o que eu digo.

Com a sincera mágoa de quem nunca leu um único poema, romance, enfatuamento romântico, sabias que o amor é culpa de muita coisa. Pedra como todas as pedras, hirto e morto, inflexível e cheio de esperança, ou de arrependimento, ou de arestas ou de comiseração. Quando aos oitenta e seis anos te deixaste ir, baloiçando pesadamente como um pêndulo, ninguém pôde compreender-te. Nem aqueles que tinhas na cabeça e nos sonhos e nas saudades. Nem esses. 

Demoraram três dias a dar-te com o corpo. Com o corpo. O resto talvez não venham nunca a encontrá-lo.

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Lembro-me de tudo

Fotografia de Örvar Atli Þorgeirsson

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A praia esvaziava-se até à melancólica reunião das gaivotas. Era então uma profusão de sulcos em forma de cunha e gritos selvagens. O ronco do mar, com o ir vir das ondas, desfazia-se num som borbulhante de espuma e cansaço, como se também o mar arquejasse e pedisse a noite. O vento erguia nuvens de poeira e tornava-se cada vez mais forte e frio, fazendo oscilar as bandeiras das marcas de gelados e as tolhas coloridas, ao longe, nas varandas dos prédios. Era essa a hora amada. Um pouco antes do sol-pôr, na travessia final do dia para a noite, quando podia caminhar praticamente só pelo areal e sentir os pulmões inchar com a mescla de elementos contrários, húmidos e enxutos, vindos das entranhas do oceano e das dunas áridas, onde rizomas resistiam e abrigavam um sem-número de ervas aromáticas.

Da planta dos pés às circunvoluções do cérebro, todo o meu ser habitava ali e ali se deixava habitar pelo tempo e o espaço. Às vezes a brisa fazia enfunar o casaco de malha e o capuz parecia tenso, como a vela de um navio. Não raro, a respiração do sargaço fazia-me recuar até à infância mais remota, até antes das minhas primeiras memórias, aquietando-me num pensamento infindável de paz e bem-estar. Era como se tivesse sempre pertencido a esse instante e tudo antes não tivesse passado de um desvio involuntário. Eu era aquela ali!

Caminhava primeiro para norte e depois em sentido oposto. O calção arrepiava-se com os salpicos de alguma onda mais veemente, álgida, cansada. E depois com os salpicos quentes de alguma represa pueril, deixada para trás, no seu tortuoso desenho de canais e torres de areia molhada e onde permaneciam agora algum caranguejo ou alguma estrela tresmalhados e sem vida.

Foi assim que nos conhecemos. Julgo que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. O primeiro vislumbre aconteceu numa dessas evasões de agosto, quando me deixava guiar pelos cheiros e pelo recorte azul acinzentado das montanhas galegas.  Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. Não sei qual das duas reparou primeiro na outra. Nem como chegámos à palavrosa descoberta das coisas comuns. Tudo singelo e doce, como numa canção. Sem sobressaltos. Sem a urgência de um reencontro, de um nome, de um perfume. Tudo crepuscular e delicado, como blandícia de uma voz ou de uma brisa.

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim que nos conhecemos. Saía do meu casamento. Devorada pela incompreensão, adendo devagar, esboroada pela dor e pelas traições, pelo nojo… Caminhava sempre com os olhos enregelados, como se um vidro maldito os tivesse aprisionado e subjugado. Caminhava a essa hora, em que o dia e a noite dão as mãos e se despedem e nos pedem uma derradeira prova de coragem. Dizias amiúde:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

Foi assim que nos conhecemos. Até que eu própria descobri o meu amor por ti. Quando tive a certeza de que talvez pudesse não voltar a ver-te e me queimou uma sensação precoce de perda.

‒ Não quero que partas!

E tu sorriste. E o teu sorriso era um lugar dentro da paisagem, onde, como num pingo de âmbar, se deixava antever o futuro, selado e transparente, irremediavelmente perto e intocável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que cada instante vivido contigo era agora um acumular de memória. E eu sabia que aquele primeiro vislumbre se parecia eternizar, mais vivo do que tudo o que vivera.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu revia o teu vestido salmão, a tua pele morena, os teus pés descalços, o teu olhar penetrante, meigo, inquiridor, faiscando como um pequenino carvão indecifrável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que partirias primeiro, que te velaria numa mágoa sem fim, que regressaria a este areal, que caminharia só, nesta hora de abandono, em que uma espécie de espuma gélida se segrega do ventre rumoroso do mar.

Lembro-me de tudo. Das noites que se seguiram. Dos rostos sombrios sobre nós. Dos paredões de ódio contra o nosso amor proibido. Das incertezas e dos choros. Das noites que se seguiram. Da solidão que é maior quando ousámos enfrentá-la. Da praia vazia. Das nuvens ofegantes e dolorosas, carregadas de grãos de areia. Dos anos que vivemos recompreendendo tudo. Da felicidade inesperada que nos abriu, qual gazua omnipotente, o sentido de todas as coisas. Lembro-me de tudo.

‒ Amor e morte andam sempre por perto. Como a terra e o mar. Como o dia e a noite…

Lembro-me de tudo. Das palavras que dizias, vindas de não sei que país inabitável. De que premonição terrível. De que sabedoria tua, temível, temida…

Foi assim que nos conhecemos.

E quando soube que amar-te era possível, deixaste-me. Aos poucos. Primeiro, no cimento intransponível de uma casa onde me não deixaram entrar. Depois, nas paredes brancas de um hospital, onde me aceitavam, fugaz e criminosa, como um gato. Porque era proibido o nosso amor, e eu soube que era possível amar-te.

Lembro-me de tudo. De saber então, quando aqui partilhávamos o lusco-fusco, que um dia, passassem os anos mais depressa ou mais devagar, este lugar me serviria de refúgio. De saber então, quando a felicidade crescia e me curava as lentas feridas de um outro tempo, que um dia regressaria aqui, como regressam todos os que amam aos lugares onde descobriram o amor. Lembro-me de tudo!

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim. É sempre assim. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. E tu dizias, dizias muitas vezes, e eu queria que o dissesses:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

E eu sabia (sempre o soube, desde a primeira vez que nos vimos) que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Mesmo contra rostos sombrios. Mesmo obrigando-nos a quebrar paredões de ódio e de betão. Mesmo depois da morte.

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Um passeio a pé

Fotografia de Michael Krahn

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Princípios de setembro ao cair da tarde: o outono enviou já os seus emissários. Para lá das portas das casas de pedra, desde o fundo dos lagares, emerge e vibra como uma corda de guitarra o aroma intenso do mosto. Embrulhamo-nos nele como num antigo provérbio: por onde os nossos passos vão, ele acompanha-nos num crescer de sombra. A inquietação voa ao redor da nossa boca. Depois, ultrapassadas as últimas casas, embrenhamo-nos num pequeno bosque. Como numa catedral, as copas das árvores erguem arcos quebrados e perfeitos. Conheço o nome de cada uma delas, o seu silêncio, o seu perfume, a voz que nelas respira profundamente desde as raízes. É-nos dado caminhar por uma vereda estreita, ao longo de um carreiro húmido repleto de folhas, onde vigorosas lesmas e insetos esquivos nos vigiam de passagem: sulcos e vergônteas subterrâneas exigem a nossa atenção; os próprios duendes nelas tropeçariam, se acaso aqui vivessem ainda. No alto dalguma faia, dalgum ulmeiro, protegidas pelo abraço das asas e pela folhagem espessa, acordam criaturas notívagas cujos pios em breve cairão sobre o firmamento iguais a bátegas de chuva. As névoas e a penumbra tornam os espaços mais breves e simultaneamente mais longos, dividem-nos em parcelas isoladas umas das outras e todas numa bolha de paz. O homem que se arrisque à solidão chega aqui tão perto de si próprio como dois seres que por fim se reencontram numa encruzilhada. Sempre imaginei que assim vagueasse, descalça e andrajosa, através do limbo, através da memória, através da terra, a minha bisavó tresloucada. No coração do labirinto é a própria alma a girar sem parar, frenética e viva como um buraco negro no meio de espiral de estrelas. «Quem sou?» pergunta a consciência rodopiante. Estamos agora noutra dimensão, noutro lugar, noutra era da nossa vida. Movemo-nos em silêncio pela casa às escuras. Os nossos passos são cautelosos e atentos, como se caminhássemos ao longo de uma floresta, seguindo o flanco musgoso de um antigo muro de pedras soltas. A algum lado nos levará esta viagem sem termo nem princípio ‒ cada pensamento segue um outro e todos se encaminham para uma clareira onde a luz os reconhece. A cada instante precisamos de vencer a resistência da nossa condição terrena: os pés enterram-se em pantanosas raízes familiares, tropeçam na memória, atormentam-se com o peso que neles se calça dos antepassados queridos e admoestadores: «A velhice bater-vos-á um dia à porta!». A voz que nos fala, não sabemos se vinda de fora, se uma erva nascendo-nos nas entranhas, abre passagem pela fissura das paredes, perfura, assemelha-se a um vapor tépido, mistura poderosa de remorso e de saudade. O tempo! Tão próximos deste abismo, somos criaturas excecionais, volumosas, puras como uma lágrima. Em breve estaremos na infância. A floresta encaminhou-nos para algo tão longínquo. Já os olhos se desacostumaram de olhar e veem apenas. A velhice bater-nos-á um dia à porta. Estamos nas calendas de setembro. A noite assenta mais cedo. O outono enviou os seus emissários.

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