Cansado das erronias do seu tempo e das injustiças do seu povo e das mentiras descaradas com que um alimentava o outro, cansado da vileza com que ambos destituíam do seu lugar primeiro a bondade entre os homens, Kazuya afastou-se da cidade e caminhou em direção ao nada tantos dias quantos puderam as suas sandálias.
Em certo lugar nevoento encontrou uma curiosa árvore, que lhe parecia tão perdida quanto ele próprio. Junto dela começou a tirar de dentro de si as palavras que guardara e que lhe chocalhavam na cabeça como água a ferver num pote. Disse muitas coisas: primeiro em surdina, depois aos berros, por fim cheio de arrependimento.
Sentiu, então, um grande frio. Uma solidão imensa e devastadora. Uma vontade incontrolável de chorar. Chorou tanto quanto puderam os seus olhos. Em seguida abraçou a árvore, agradeceu-lhe e prosseguiu a viagem pelo meio do horizonte verde-cinzento. Não se soube mais dele do que isto.
A última pessoa a vê-lo foi uma velha fiandeira. Admirou-se que um mendigo assim esfarrapado pudesse estar mais feliz do que uma lâmpada acesa.
E que a ela não tivesse pedido nada, nem sequer um bom dia.
Traziam-lhe marfim e ele esculpia-o com a paciência mais apurada de que o género humano é capaz. Os objetos saídos das suas mãos contavam-se entre os que mais vorazmente atraíam a cobiça dos estrangeiros em Brazzaville, em Djambala, em Sibiti, em Mandigou e em todo o Congo. Chamavam-lhe «O abençoado», embora o seu nome verdadeiro fosse Isidor Nkobanjira. Ao cruzar a velhice gabava-se de possuir, nada mais, nada menos, do que setenta filhos.
Perto do fim, pôs-se a cortar e a perfurar e a abrir sulcos com o cinzel numa presa de elefante. Primeiro entalhou o serpentear de um rio, depois o crescer de uma montanha, a seguir uma revoada de astros perfeitamente hemisféricos. Com minúcia, foi acrescentando a água e os peixes, a terra e as impalas, o céu e os abutres. Encheu o marfim com as criaturas todas de que se pôde recordar, sem omitir o silêncio, a morte ou o medo.
«Todo o universo cabe aqui» pensou Nkobanjira.
Na realidade – reparou com o semblante insatisfeito – ao cabo de tudo ainda lhe sobrava algum espaço.
Embora estivesse acostumado à solidão, o velho frade agostinho gostava de descer ao povoado de quando em quando. Fazia-o uma vez por mês. Nessa altura saciava-se de conversa, bacalhau frito, imagens do mundo capazes, no regresso, de alancarem consigo e com o asnozito serra acima.
Era o último da congregação. O mosteiro, tomado de assalto repetidamente pelos larápios e pelas silvas, decaíra a um tal estado de degradação que havia quem jurasse que partes do campanário, da sala do capítulo e mesmo do refeitório se tinham despegado num monte de entulho.
O fradinho nunca se queixava. Ia como vinha, sorrindo, com o hábito cada vez mais puído e o corpo cada vez mais mirrado. Até que deixou de aparecer.
Os homens nesse dia prodigioso de começo de inverno puseram-se a caminho e muito a custo venceram as cordas de vegetação que se lhes ensarilhavam nos braços e lhes tolhiam a marcha. Quando lobrigaram os caboucos do mosteiro, compreenderam que nada dele se mantinha de pé. Num dos retângulos de pedras muito direitas, viram o que restava de uma antiga lareira, as paredes mascarradas entre os azulejos, um panelinho de barro com uma asa.
Onde estava o frade?
Uma revoada de pombos assustou-os. Vinha de outra parte, onde velhas camas ferrugentas se alinhavam no maior silêncio. Numa delas, deitado de lado, coberto por uma manta andrajosa, sem outro teto que o céu do Senhor, encontraram-no. Junto do leito, a alimária (feita pele e osso) ainda respirava.
Os homens tremeram de piedade e de franca comiseração. Assim que se preparavam para erguer o morto, a fim de lhes darem sepultura, ele abriu os olhos e quase sem força, num levíssimo flamular de voz, saudou-os:
De quando em vez venho até cá acima e fico. Fico em silêncio, a escutar muito tempo as coisas que só se escutam em silêncio, sentado num lugar pertíssimo de mim, num sítio onde as palavras me parecem aos poucos pequenas assombrações, quero dizer pequenas cabeças enevoadas, minúsculos vultos sem sentido, fósforos frios que deixei de saber deflagrar.
Fico e às tantas fecho os olhos. Às tantas as coisas fluem, as coisas vêm-me involuntariamente à boca, as coisas passam-me diante as retinas, atiram-se-me à nuca, coisas como os murmúrios da avó Amélia, coisas como o cheiro triste da murta nos dias que se seguem ao Natal, coisas como a castidade absoluta das suítes de Bach, coisas como a maciez dos seixos, como a cor fulminante do papel debaixo dos versos de Camões.
Vir e ficar é doloroso.
As memórias conhecem caminhos, encontram-me, convulsionam num modo de regurgitação. Estou em silêncio e sinto gente desesperada a querer falar-me, sinto pedaços avulsos de mim a precisar de paz, a pedir que os apague ou lhes dê uma morada acalentadora, que os compreenda ou que os exorcize em definitivo.
Vem-se cá acima e fica-se.
Fica-se a meditar na quantidade de fracassos. No primeiro romance por escrever. Na profissão mal encontrada. No amor que se abandonou em parte incerta. Fica-se a matutar na mole de sonhos interrompidos. No doutoramento por fazer. Nos filhos que não vieram. Nas viagens ao Japão e à Antártida. Fica-se a cismar na multidão de rostos que foi preciso conhecer e esquecer ao longo dos anos. No peso morto que se deixou atrelar aos tendões e não é a nossa pessoa e não é a pessoa dos outros e não, na verdade, a pessoa de ninguém. Fica-se a cair para dentro, como uma pedra num poço.
A avó Amélia era um colosso sem que o tenha sabido. Foi-o até ao fim, quando muda, paralítica, cega, se queixava em gorgolejos, em sibilâncias, em gestos que nos diziam que queria comunicar e não podia. Só os pensamentos a mantinham viva, suponho. Só teimando com a comida ralada, suponho. Só apertando-lhe as mãos e afagando-lhas e beijando-as. Só assim a mantínhamos no lado de cá da solidão. Só pronunciando devagar pequenas frases que o seu ouvido, suponho, aceitava ainda.
Venho cá acima e fico defronte a isto.
Diante desta paisagem de granitos e ervas ressequidas pela geada. Fico sem um pio, a escutar o vento, a deixar que o caracol dos anos que me leve e me traga de volta, sem saber ou poder replicar ao parto doloroso das imagens que se soltam deste movimento em espiral de ir e vir.
Venho e fico.
Fico, suponho, à espera que alguém se dê conta de como estou a ficar cego, paralisado, emudecido. À espera que me segurem ambas as mãos e me não deixem partir para o lado de lá. O lado de lá dá-me arrepios. Tenho pavor ao outro lado da solidão. Não sei se a avó Amélia pensava muito nisso. Nos fracassos e sonhos por acabar, não creio. A avó era um colosso. Suponho que os colossos nunca morrem inteiramente sozinhos e a avó era, sem o saber, um colosso. Suponho que só os fracos vivem atormentados por esse medo. O medo de levarem uma vida inteiramente desperdiçada. O pavor de saberem que nunca serão grandes, ou lembrados, ou apertados na mão.
Vir e ficar é doloroso.
As memórias conhecem atalhos, encontram-me, despoletam pesadelos. Ninguém imagina com que remorso. Com que furor. Com que que ódio.
Há invernos em que o ermo alcantilado e a pequena igreja de São Benedito não se veem por causa da neve. Ela suavemente mergulha do céu níveo e negro, cai durante dias e semanas, fina camisa de camadas frias, lentas e insonoras, até desfigurar por inteiro a paisagem.
Os habitantes de Reosa-Romano persignam-se na direção do horizonte branco, porque a igrejinha lá está, escondida ao lado da grande magnólia-perene, uma e outra grandes borrões inseparáveis das outras formas ajoujadas pelo fremir do vento e pela bruma.
Dizem que na era dos cruzados se refugiaram nela cristãos e mouros, judeus e ciganos, gente foragida e gente rica, gente vilã e gente nobre. Dizem que nos lugares onde a terra acaba e o abismo se precipita todo o coração é coragem e toda a coragem uma forma de perdão. Os habitantes de Reosa-Romano repetem esta frase há demasiado tempo e, por isso, já só em parte a compreendem.
Nos dias de sol, os montanheses escalam o granito íngreme e sobem ao adro. Depois penetram o espaço escuro e silencioso do templo para rezar, para descansar ou simplesmente para saciar a curiosidade.
Desde há séculos que um velho padre espera os visitantes no confessionário. Merecer a absolvição é um feito de que vale todo o esforço. Se esse sacerdote é chamado para junto de Deus, outro toma o seu lugar. Esse velho benevolente, cuja penitência é pedir e conceder o perdão, aí nos espera desde sempre, é o que dizem.
Nos meses hiemais de dias opacos e ínvios ou nos meses luminosos da primavera e do verão, de alguma coisa hão viver estas pobres criaturas eremitas. Ninguém ao certo sabe de quê, ou como, ou onde.
Há quem afirme que tudo não passa de uma fantasia e que no interior da pequena igreja não se vê vivalma desde há mais de quinhentos anos, quando uma horda de cavaleiros cristãos, ou sarracenos, ou mercenários a soldo, massacrou todos os inocentes que dentro dessas paredes se ajoelhavam e erguiam as mãos.
Há quem afirme, pelo contrário, que tudo é verdade. E aponta uma adaga ao próprio ventre. Quem não acreditar que faça justiça, ou que retire a sua palavra.
Um dos meus maiores medos começou há uns tempos, subtilmente, numa das conversas em família à hora do jantar: disseram-me que nesse dia fora a sepultar a última das saboeiras da freguesia.
Não era do meu conhecimento que tivesse havido fábricas de sabão e saboeiras na terra, por isso senti uma puada cá dentro, como as que sentimos quando nos escapa algo de valioso e se mistura culpa e nostalgia em nós.
Poucas semanas depois os sinos dobraram e o meu pai, contadas as repetições do dobre supôs de imediato:
– Foi o guarda-rios, foi o Salvador! Olha, coitado, era o derradeiro do seu ofício…
Mais uma vez atingiu-me a perplexidade: desconhecia que houvesse uma profissão tão específica, tão bastantemente útil e tão autossuficiente como a desse pobre homem que levava a alma ao outro mundo.
Comecei aos poucos a tomar consciência da excecionalidade desta época em que um mundo inteiro de mesteres e modos de vida e ganha-pães personalizados morre e outro mundo inteiro de cargos e encarregados, diretores, funcionários e colaboradores varre a paisagem sem lugar a rosto, individualidade ou história para lembrar mais tarde. Ao dar-me conta deste exato momento epigonal em que o último vedor e a última jornaleira, em que o último alfaiate e a última camponesa com coragem para matar galinhas e esfolar coelhos, em que o último alambiqueiro e a última boticária se preparam para entregar ao vazio a sua arte e o seu orgulho, a sua perícia e os seus rituais, dou-me conta (por arrasto) de que uma porção imensa do espaço e do tempo em que fui preparado para viver está a ir-se, subtilmente, num voltar de capítulo silencioso, num cortejo fúnebre discretíssimo, num fechar e abrir de olhos ao serviço de uma hierarquia nova, computacional, globalizada, irrespirável, inumana, de identidades-números, onde tudo o que se faz é produto, onde tudo o que é concreto é virtual, onde todo o contentamento mói num longo bocejo eterno de-antevéspera-a depois-de-amanhã.
Um dos meus grandes medos é o sentir-me fiel da balança, sentir-me depositário de um mundo antigo que se despede sem adeus e até sempre, e sentir-me recebedor de um mundo outro, atroz, que me exige (para merecer estar vivo) que esqueça justamente e depressa, que oblitere, que apague pura e simplesmente essa memória decadente de trabalhos ultrapassados, de muitos nomes, de velhas histórias e sentimentos incompreensíveis, como a saudade, como o sentir falta de meter mãos às coisas e sobre as coisas, como o frémito de cheirar a terra, ou o tecido acabado de riscar pela sábia costureira, ou sentir prazer e repugnância junto das vísceras quentes e do sangue pingado desses animais que alguém, repleto de competência, acabou de degolar.
Um dos meus grandes medos é o de me sentir expulso deste outro mundo nascente, falso, hipócrita, reescrito com a lei suprema do politicamente correto e do balofo e do estéril e do artificial.
Tremo de pensar que estou na cauda de um cometa vertiginoso, assistindo à desaparição de algo a que chamam velho e inútil, mas que é, tenho de teimar, luminoso e cheio, vivo e refrescante. Tremo de sentir-me como aquele punhado de gente que assiste com lágrimas à implosão do Cinema Paraíso. Tremo de pensar que os sinos um dia talvez nem dobrem. Que um pequeno estalido ecoe eletronicamente, interligadamente, absortamente, cansadamente, nos dispositivos dos meus sucedâneos e que algum deles, um apenas, desvie um pouco os olhos do ecrã e considere pelo pequeno ângulo de firmamento acessível o sentido da existência.
Muito tempo se acreditou na existência de um livro chamado De Bellīs Lusitaniae, composto por um tal de Cesarino de Arábriga nos meados do primeiro século da nossa era. Dele pôde, por fim, encontrar-se fragmentos inequívocos, um dos quais registando no latim triunfante o desabafo emocionado de um autor autóctone anónimo, se de um e não de muitos é a voz que ali discorre.
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«Quando a estrada avançou floresta adentro, colinas acima, e criou um comprido e largo sulco de pedras ao redor dos vilarejos serranos, só duas coisas respeitaram os legionários: as grandes lajes encavalitadas umas nas outras, que diziam ser o lugar dos antigos mortos, e as casas onde um forno pudesse servir-lhes o pão, o escuro centeio de que já antes deles Viriato e os grandes outros chefes lusitanos se tinham servido.
Um povo conquistador impõe-se e apaga. Este fala uma língua estranha feita de palavras curtas, frias e direitas, uma língua que é forjada no que são forjadas as lâminas curtas, frias e direitas dos seus gládios. A soldadesca deita abaixo carvalhos e freixos, arrasa em linha reta o centro das nossas citânias amadas, tropeça nas figuras de Endovélico, Reue ou Atégina e delas troça como se troça de um velho rei destituído. Este povo abre veredas largas e infinitas, camadas sobre camadas de terra e de cascalho, veredas capazes de unir todos a tudo e tudo a todos. Nelas transita-se agora como se pelos caminhos misteriosos dos sonhos. Por elas procura-se a rapidez e o lucro, desprezando-se o âmago acidentado das nossas florestas. Os jovens apreciam de tal forma a notícia dos sucessos estrangeiros, e a fama das suas mulheres ataviadas, e o ouro contado pelas bocas exagerados dos angariadores, que lhes enfada o cerimonial das suas próprias tradições.
Por isso, riem-se do poder das feiticeiras, voltam as costas ao saber dos velhos, fogem da pacatez e do conforto que nesta sua terra ancestral e nestas paredes circulares se estimava e se cultuava como a mais alta e a maior das dádivas divinas.
Pior do que o dito, os nossos jovens falam a língua dos inimigos, calando e esquecendo a sua própria língua, como se por ela crescessem raízes impropícias e como se por ela se lhes entorpecesse o pensamento e o coração. Mais do que os outros, pontapeiam os muros musgosos do seu passado e acolhem com orgulho e vaidade o bulício dos usurpadores. Eles mesmos engrossam as fileiras dos que descem aos imos da terra, esventrando-a pela cobiça do estanho e do cobre e do ouro. Eles mesmos aparam os longos cabelos entrançados que usavam os seus pais e os seus avós e rapam o rosto e trajam alegremente como os cidadãos romanos, envergonhando-se das boas peles de lã e de couro, que sempre tivemos como pecúlio, e preferem tudo desbaratar por um ou dois panos tingidos dos que chegam às nossas praias pela mãos dos estrangeiros.
Digo-vos que as estradas se tornaram a maldição por que tanto temíamos. Tornámo-nos ínsulas na sua própria terra, prisão entre a nossa própria gente, solidão na nossa própria alma.»
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Agradecemos a Maria Filomena Real, professora universitária na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o ter gentilmente trazido ao português tão insigne pedaço da nossa História.