Uma pilha de livros

Fotografia de Delphine Devos, old books
Fotografia de Delphine Devos

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para a Salomé

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Numa das ruinhas da vila, à esquina com a marginal, mal se dá conta de uma casa pequena de paredes caiadas e rebordos de granito. Deve ter sido noutro tempo o lar segundo de alguma família de bem, como o testemunham o jardim com jacarandás e uma estrutura em forma de estufa, de que sobram hoje troncos e partes metálicas retorcidas: percebe-se facilmente ter sido esse espaço amplo outrora e hoje muito mutilado por força dos edifícios espalhafatosos que cresceram no lugar dos canteiros e das latadas.

Os veraneantes atravessam uma avenida e depois arruamentos mais estreitos e por fim esta esquina silenciosa, abrindo para o mar. Nenhuma alma há de ter posto a sua força contra a cancela enferrujada nos últimos dez anos, de tal modo o óxido tingiu a primeira laje do passeio e se disseminou por todo o corpo desta vivendazinha.

Um escritor, que nesta localidade faz a sua vilegiatura, observou já o curioso limoeiro bravio que na parte mais esconsa do quintal oferece ainda, fordo, o seu fruto avantajado e solar.

Numa das janelas sobranceiras ao lancil, que o destino ou os antigos donos não puderam ocultar, surpreendeu o ocioso forasteiro, sombreada por uma velha cortina de ponto aberto, uma pilha colorida de livros com encadernações de pele e letras de ouro: D. Quixote em dois tomos, O Vermelho e o Negro, Assim Falava Zaratustra, Werther, Otelo, Quo Vadis, Viagens na Minha Terra, O Tartatufo seguido de O Doente Imaginário, O Príncipe e o Pobre, Eugénia Grandet. Outros estariam sobrepostos, mas já a piedosa curiosidade alheia os não atingia por culpa do plástico sórdido da persiana.

O escritor, que manteremos no anonimato, sentiu como um golpe de punhal este abandono particular.

Que uma geração esqueça todo o investimento das gerações precedentes é algo a que obriga a lei absoluta da modernidade. Ainda assim, com que falta de amor. E de escrúpulos!

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Apúlia, 11.08.2025

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Livros

Ler_Jilbert_Ebrahimi
Fotografia de Jilbert Ebrahimi

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Todos nós guardamos um lugar indefetível na biblioteca pessoal, um espaço onde habitam livros que descobrimos fora das sugestões académicas, por mero acaso, por sorte, por instinto, livros aos quais regressamos muitas vezes e em diferentíssimas ocasiões, livros que nos defendem da mediocridade e do miserabilismo do tempo, que ostentam o nome de um autor e uma literatura tornados nossos, livros que como uma paisagem vulcânica de Lanzarote, ou como os acordes de Joaquín Rodrigo no Concerto de Aranjuez, ou como os cromáticos feéricos de Jan Vermeer passaram a pertencer-nos pelo efeito de um amor incondicional e inconcessível.

Esses livros podem ser de poesia ou um romance, podem conter áridos núcleos científicos ou filosóficos, podem recuar a uma ilha grega do século VIII a. C. ou fazer-nos avançar na direção de um futuro irreconhecivelmente robotizado, como os de Aldous Huxley. Voltamos a eles na condição de refugiados e em fuga. Procuramos escapar a uma catástrofe. Assim, a porta da salvação fechamo-la por dentro, acendemos a luz bendita de um candeeiro e, ainda que a altas horas, pomo-nos em marcha, buscando num caminho não mapeado o reencontro com a inteligência, com a sensibilidade, com a subtileza.

Nestes dias atrozes (hoje quase ignoramos que atroz decorre do latino atrōx, ōcis, adjetivo que integra significados como cruel, ameaçador, violento, teimoso ou indomável), ler, ler esse filão em particular de livros bons, que amamos, pode aguentar-nos. Quero dizer, pode manter-nos os olhos abertos e a cabeça limpa, uns e outra sem argueiros, mascarras ou teias bolorentas.

09.11.2024

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Logótipo Oficial 2024

A grande nostalgia

Anne Rose Pretorius
Fotografia de Anne Rose Pretorius

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De algum lugar obscuro da minha memória vêm-me chegando por estes últimos dias saudades da antiga Escola Montelongo, onde frequentei o 5.º e 6.º anos, o Ciclo, como então lhe chamávamos, escola nos arrabaldes da cidade, pobre, sem cantina, sem ginásio, com uma escadaria larga que nos levava da cave ao piso superior por entre corredores mal iluminados, onde se abriam as portas das pequenas salas (a sala 1 e a sala 6 eram minúsculas) e onde o grande tesouro não se chamava “campo de jogos” (um baldio irregular, com duas balizas ferrugentas e mal equilibradas, hoje sede da Guarda Nacional Republicana), mas a biblioteca.

A biblioteca era fria, silenciosa, no remanso do rés-do-chão. Do lado de fora das suas janelas gradeadas crescia um silvado no meio de um cemitério de mesas e cadeiras partidas. Tinha três filas de mesas alinhadas e uma D. Lurdes maldisposta ao comando, sempre com o aquecedor ligado, sempre com a mão pronta para um tabefe profilático, sempre com os olhos vigilantes e maus correndo por cima dos óculos e a avisar.

– Quero tudo no sítio!

Era aqui que nos conduzia duas a três vezes por período o professor Miguel Monteiro, o mais extraordinário mestre que encontrei nesse tempo, para podermos desfrutar da leitura silenciosa, do livro que bem entendêssemos, da estante que mais quiséssemos. Só então os fechados armários se abriam. Só então, quando as lâmpadas fluorescentes brancas se acendiam todas, se podia olhar melhor e mais fundo a floresta de lombadas e se extraía das estantes repletas algo como A ilha do tesouro, As aventuras de Tom Sawyer, As viagens de Gulliver, A menina dos fósforos, O príncipe feliz, O rapaz de bronze, Como se faz cor-de-laranja, Histórias de um bichinho qualquer, tantos outros… A rancorosa funcionária (obrigada a levantar-se e a abandonar a TV Guia) rodava a grande chave metálica, fazia silvar o nariz e punha os olhos de lado, como se os quisesse escorraçar das órbitas, seguríssima de que não ia ficar nada no sítio. Era um assombro, podíamos por fim colocar as mãos no cofre. Indiferente ao desagrado da senhora, o temerário professor continuou a levar-nos àquele canto umas quantas vezes por período, permitindo assim que nos déssemos conta de como aqueles livros cheiravam extraordinariamente a madeira envelhecida, do quanto as ilustrações são poderosas etiquetas mentais, da dolorosa separação de uma página quando nos devora a curiosidade e a campainha soa.

Este início de setembro tem-me feito recordar algumas alegrias esquecidas. Por exemplo, o facto de andar nos autocarros da João Carlos Soares & Filhos L.da todos os dias (era preciso picar um passe com um número contado de viagens). Por exemplo, a mochila vermelha carregada com os manuais escolares novos (brilhantes, cheirosos, desafiadores, comprados na Papelaria Avenida do senhor Diamantino Pereira (conservo, ainda, os de Português desses anos distantes). Por exemplo, a satisfação de aprender uma língua estrangeira (no meu caso, o francês) e de poder decifrar os enigmas dos vulcões em Ciências, e de superar a paralisante confusão de xis e ípsilones em Matemática. Gostava de Estudos Sociais e de História, detestava a gramática (a morfologia e a sintaxe, em particular) e era um zero a Trabalhos Manuais, disciplina onde precisei de empregar uma grande dose de improviso, mentiras e promessas para me aguentar na positiva. Odiava Educação Musical, outra deceção da minha vida escolar, provada que ficou a minha completa imperícia em matéria de flautas, xilofones, tambores, leitura de pautas, interpretação de semicolcheias, escrita de claves de sol, cantoria.

Gostava de histórias. Gostava de espreitar a arrecadação, onde permaneciam cheios de humor (e de pó), os esqueletos humanos. Gostava de desenhar (embora me faltasse qualquer coisa de verdadeiramente artístico). Gostava de folhear os manuais e de por eles ver o mundo – as ilhas selvagens do Pacífico, repletas de cones expulsadores de lava; as belas cidades e comunas de França, com os seus vinhos e os seus queijos; os castelos e mosteiros de Portugal, especialmente os medievais (que já então sobremaneira me encantavam). Gostava de sair a correr para o Pavilhão Gimnodesportivo ou para as piscinas municipais, um e outras significando liberdade. Gostava de correr, de marcar golos, de saltar nos aparelhos, de nadar, de fugir ao trampolim e aos saltos mortais (que me trazem ainda hoje pesadelos).

Mas gostava, sobretudo, da sensação de início. Nesses dias de setembro, como nestes dias de setembro, comprados os novos materiais, organizada a capa (com os seus separadores de plástico colorido da Âmbar), preparado o estojo, o começo acarretava um misto de ansiedade e de esperança, de fé e de algum temor. Tudo dependeria (como depende hoje) das pessoas com quem nos iríamos cruzar. Se o professor Miguel foi um mestre, outros o foram também (a professora Germana Longo de Ciências da Natureza, a professor Clara de Educação Visual, a professora Ana Maria de Matemática, a bela professora Adília de Francês do 5.º ano). Outros o não foram, de tal modo nos oprimiam com o autoritarismo (jamais esquecerei o giz disparado por certa professora à testa de uma colega no fundo da sala), ou de tal forma nos desconcertavam com o seu laxismo.

Gostava nesses dias de começo de outono de pensar que um dia saberia educar os meus filhos com amor, rigor e uma boa coleção de livros. E que eles, tal como eu, amariam a quietude da sala de aula tocada pela boa luz matinal. E que eles, tal como eu, saberiam lidar com os erros e com os fracassos próprios, depurando pacientemente as suas virtudes.

Tenho os livros, não os filhos.

Não sei se o lamente, se apenas me satisfaça com o ensinar os outros. Com a expetativa, ainda assim, de que um dia algum dos meus alunos me recorde com a mesma nostalgia imensa com que falo destas coisas, e talvez me associe a uma ou a outra conquista obtida nas paredes da sua escola, a quem em jeito de balanço conceda a luz de uma dádiva, e não (como tantas vezes parece) a fama imerecida de uma prisão.

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Ódio à mediocridade

Marco Gentini
Fotografia de Marco Gentini

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«Um escritor não é a soma dos seus livros, é a fuga ao livresco. Um escritor não escreve. Inventa.»
Pedro-Daniel Névio, Escoriações

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A casa do escritor ficava no subúrbio norte, numa área sossegada, a seguir a campos, entre curtos eucaliptais. Lembro-me do cheiro a limpo, do perfume da alfazema, da frescura da mobília, do odor dos sofás de cabedal. Lembro-me da porta aberta do escritório, das estantes escorrendo das paredes, escondendo-as, de um ou outro quadro de Kandinsky no intervalo dos livros, do adágio de Mozart, do violino de Itzhak Perlman, da meia sombra e da meia luz tapando o vaso das orquídeas e alumiando o formidável persa azul aos pés, no tapete, do ar muito quieto do seu corpo quando lhe anunciaram a minha visita.

O escritor concedeu-me uma entrevista, autografou-me sete dos seus livros, ofereceu-me um volume de poesia em edição limitada, corrigiu nele um verso terrível, teimoso, com caneta de feltro, abraçou-me no fim.

«Cuidado com a mediocridade. Odeie-a.»

Era quase noite quando regressei à cidade, ao centro, às banais lentejoulas dos meus comparsas no círculo intelectual. Na madrugada seguinte vim para a varanda queimar papéis. Fi-lo sem arrependimento. Voltaria a fazê-lo na minha vida. Repeti-me a repreensão de Horácio, «Inutilia truncat», que hoje é a minha divisa.

O escritor, agora que o leio dobradamente, póstumo, sem peias, é um génio. Não engaja frases ou versos, fá-los encontrar-se com leveza e com verdade. Não lhes disfarça o vazio com efeitos de pirotecnia, enche-os com amor. Dele escasso se diz, nada se escreve, pouquissimamente se indagou nesta década seguinte à sua morte.

Penso muitas vezes nesse encontro, nessa tarde de outubro, nessa literária mediocridade absurda que ao redor de nós se levanta como um circo, como um cerco, repleta de aplausos lorpas, provincianos, reles, serôdios, babujados, amacacados, odiosos.

Tanta razão, escritor!

Vêm dizer-me «Fulano publicou», «Sicrana vai publicar» e é um tédio. Bocejo por vislumbre, lendo já de roldão, à laia de adivinho, tantas páginas repletas de mais do mesmo, da mesma retórica (retoricazinha, vá lá) balofa, oca, medíocre, que enche cada vez mais escaparates de livrarias e estantes de bibliotecas. Bocejo de pensar que aí vem mais do mesmo, da mesma merda ociosa que pulula nos cantinhos de jornal, com estrelas, panegíricos, recomendações de leitura…

Horrível.

Por cá a malta distrai-se, distrai, facínora. Distraiu, distraiu-se sempre. Não há que fazer. Prefere cantar teias de aranha a ver paisagens, embora espreite pela mesma janela. É uma questão de «escala do olhar» como escreveu Fiama. E em terra de cegos, já se sabe…

Hoje acordei com saudades dos dias em que amava a literatura como uma religião. Sim, escritor, odeio a mediocridade. Deve ser isso o que terei de ensinar a quem me lê. Talvez seja uma questão de apostolado. Talvez tenha de pregar no deserto ou aos peixes. Sublinhei a lápis grosso «Um escritor não é a soma dos seus livros, é a fuga ao livresco. Um escritor não escreve. Inventa.» E é exatamente assim.

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Outra sobre livros

Xelo Moya 03
Fotografia de Xelo Moya

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No momento em que escrevo estas palavras estou tomado por uma fúria descontrolada, que entre outros perversos efeitos psicomotores me faz escrever cada palavra como se tivesse nascido malaio, russo ou etíope, de modo que a fúria de fúria se alimenta e às tantas estou a martelar no teclado e a fazer dramáticas caretas para o ecrã branco à minha frente, parede de luz e de silêncio que me ignora, aliás, as graves razões por detrás e o significado de cada esgar de louco que lhe lanço. Não, não é um ótimo começo de crónica. É só um começo. De resto, imagino que quem me lê (dois ou três amigos que não atiraram ainda a toalha ao chão, para me servir de uma metáfora da moda) se pergunte quais serão, enfim, os motivos de uma tal perturbação, ou se questione (não o duvido) se o autor destas palavras não estará apenas a ganhar tempo para encontrar alguma coisa que valha a pena ser dita, andando daqui para ali e dali para acolá, às voltas e às voltas, a espalhar a fúria, como se espalha cinza, ou uma punhado de sal no gelo. Não, definitivamente o juízo não me acompanha!

Adianto a explicação: andando eu, esta tarde, em verificação de certos cartapácios e obras menos procuradas, descobri que uma infiltração de água cá em casa, uma dessas malditas entradas da chuva, quando há chuva (e este inverno tem havido muita, Deus seja louvado), veio descendo uma e outra e outra vez, sempre em segredo, sobre uma das mais altas estantes da minha biblioteca, e, assim mesmo, sem avisar, fez-me apodrecer (não é exagero, é apodrecimento sem tirar nem pôr) mais de metade da minha extensa e preciosa coleção de pintura da Taschen, levando consigo seis romances de Milan Kundera, um de Gabriel García Márquez (tudo Publicações Dom Quixote), umas quantas recolhas de contos (entre eles três dos sete volumes de contos de Anton Tchékhov, edição da Relógio d’Água), entre outros títulos que nem vale a pena aqui chamar à récita. Vi tudo com incredulidade. Vi o empastamento das folhas, vi o encarquilhamento da humidade, os círculos monstruosos, cancerosos, do bolor. Toquei na ferida. A polpa dos dedos levantou sem dificuldade páginas inteiras da minha religião principal, e pedaços, nesgas de papel, ângulos de prosa e pinturas imortais, que (a salvo de semelhantes infiltrações) jazem felizmente enxutas nas salas dos museus mais diversos do mundo…

Se não for inconveniente, nem excessivamente efeminado, permita-me o leitor (uso o singular, mesmo convencido de que serão afinal dois ou três) que chore. Permita-me que sofra o desgosto outra vez, que o reviva devagar com o secador do cabelo em riste, que faça ainda um derradeiro esforço para salvar o insalvável, e que gema, que grite, que berre, que barafuste, que bata com o punho, que ameace a frincha maldita por onde desceu esta gangrena, que ameace com dinamite e depois com cal e tinta o maldito lugar por onde o mal veio ao mundo. Ao meu escritório pelo menos!

E chegado a este ponto, ainda sem ter conseguido iniciar a crónica, devo explicar o seguinte: há uns dois meses, quando alinhava os poemas do meu último livro; quando precisei de qualquer coisa que sabia o que era mas não de quem; quando percebi que era uma citação de Mário de Cesariny de Vasconcelos, descobri o que não se deve descobrir. Que emprestei o Manual de Prestidigitação e não mo devolveram. E como um mal leva a outro, como uma falha nos aviva a memória de falhas anteriores, dei-me conta de ter emprestado também Horto de Incêndio de Al Berto e de não o ter em casa. E um tomo das crónicas de Fernão Lopes (dedicado a el-Rei D. Pedro). E também um romance de Isabel Allende (quem o tiver em sua posse, faça bom proveito). E era justamente para conhecer a real dimensão do problema que me propus fazer uma vistoria. Pelo que me propunha escrever uma crónica, a começar assim:

«Por causa de um prospeto conheci a poesia de Al Berto, por causa de um flyer conheci a de Mário Cesariny de Vasconcelos. Dois superpoetas do século XX (que viram a esquina do milénio), dois inconformados, dois rebeldes que (cada um à sua maneira) ganharam fama de malditos, ou, pelo menos, de mal-amados.

Se Horto de Incêndio me abriu a porta para o poeta de O Medo, foi o extraordinário «Discurso ao príncipe de Epaminondas, mancebo de grande futuro» que me deu a conhecer Manual de Prestidigitação e, depois dele, Nobilíssima Visão, Pena Capital, A Cidade Queimada, Titânia e, já no mestrado, Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (que afinal já conhecia, na versão mais curta de Nobilíssima Visão) e O Virgem Negra. Sigo a ordem por que os li e não a que seguiu o autor ao escrevê-los ao longo de meio século de paciência, polémicas e amor incondicional à arte de Homero.

Só esta tarde, aquando de uma arrumação que aqui não importa esmiuçar, é que me lembrei de o ter emprestado e não o ter recebido de volta. E porque o emprestei a alguém que agora se encontra em parte incerta, só esta tarde me inteirei da perda. Estou consternado! Os livros não são emprestáveis, especialmente os de poesia: eu já o devia ter percebido, eu que somo até hoje reveses consideráveis em relação a Mário de Sá-Carneiro, Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner Andresen e Wisława Szymborska (neste caso derradeiro com a sorte de haver, entretanto, podido comprar um novo exemplar do volume “desaparecido”) e, por alguma razão os citei de início, também Al Berto e Cesariny.

Moral da história: venho por este meio, fria, solene e publicamente declarar a minha absoluta, voluntária e inegociável indisponibilidade para ceder doravante por empréstimo, ou outro igual expediente, qualquer livro de poesia, podendo nos restantes casos, desde que não seja a minha porção de teatro (grego, de Goldoni, Ibsen, Lorca, Brecht e Beckett), de ensaios (com Lourenço e Steiner à cabeça), ou de ficção (portuguesa, europeia, universal), considerar a hipótese de. Repito: os livros não são emprestáveis, nem riscáveis, nem dobráveis, nem sujáveis com impressões digitais, nem são bons lugares para guardar os números do Euromilhões e números de telemóvel. Pela parte que me toca, sou fundamentalista do livro limpo, do livro impecável, do livro inteiro e intacto, como o tipógrafo o pôs no mundo. E, dito isto, calo-me, porque o que tinha a dizer disse!»

Isto era a minha proposta. Mas compreendi que uma tal crónica, além de breve, além de estranha (seria realmente aquilo uma crónica), além de provocadora, não seria bastante para conter a expressão de miséria humana que revoluteia dentro do meu sangue a estas horas, tendo tomado eu conhecimento do desastre a que aludi inicialmente e que continua a empurrar-me as omoplatas para baixo, como uma carga de cimento sobre os ombros. Tonto, triste, totalmente desolado. Alitero em para sublinhar musicalmente o elegíaco tom em que me vou esta noite deitar, já não tomado pela fúria, mas tão só pela mágoa e frustração, de quem ama os livros (certos livros mais do que os outros) e os perdeu à força de os querer guardar no lugar mais extremo da sua caverna. Moral da história: antes os tivesse emprestado!

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Dois livros

Magic book (Mirijam)
Fotografia de Mirijam

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Em casa havia pouquíssimos livros. De modo que a chegada misteriosa desses dois fez da minha vida um milagre de conversão, ela que se destinava aos fornos de uma padaria: refiro-me ao primeiro tomo da História Universal de H. G. Wells (edição Livros do Brasil) e aos Contos da Montanha de Miguel Torga (uma velhíssima edição de autor). Julgo que vieram ao engano, trazidos por um primo distraído, para serem reduzidos a tiras, que era o nosso modo de fingir as notas verdadeiras. Vinham ambos muitos amachucados e riscados, perfeitos para alguém como eu, que nesses dias detestava coisas muito direitas.

Devo explicar que quando era mais novo tudo me parecia mais simples, mais visceral, mais antagónico, e belo também. Não estava acostumado a luxos. Uma lupa ou um jogo de monopólio eram para mim objetos distantes que só os meninos com sorte possuíam. Sorte era a palavra que me vinha à cabeça em vez de dinheiro, porque aos cinco ou seis anos já eu entendia as nuances discriminatórias da sociedade. Os objetos, quando me chegavam às mãos, quando os manuseava, quando os fazia funcionar por ação dos meus próprios dedos, ganhavam foro de coisas míticas. E eles chegavam, porque afinal também eu tinha alguma sorte: foi assim que me apareceram um porta-chaves em formato de pequeno revólver (tal e qual o revólver do cowboy John Wayne – saberá Deus como idolatrava John Wayne); foi assim que me apareceram, entre outros, um realejo todo cromado, um jogo eletrónico da Pantera Cor-de-Rosa, uma pista de comboio.

Mas os livros tardavam. O primeiro que comprei adquiri-o numa feirinha de escola aos onze anos: foi ele Histórias do Bichinho Qualquer de Sílvia Montarroyos. Também esse o recordo com imensa saudade, em particular com a história da Bola de Sabão que adormecera num mundo limpo e lírico de campos e rios cantantes e acordara para um mundo de fábricas e poluição. Não menos me comoveu o susto do Sapo Ti, que escutara em certo jardim a conversa terrível sobre um sapoti apetitoso e que decidira fugir para escapar às facas de cozinha … Coisas da língua, coisas da vida que eu amava já com escrúpulos de intelectual.

Volto à História Universal de H. G. Wells. Sempre nutri um fascínio especial pela história, induzido pelas lendas que me narrava o meu pai à noite, junto da lareira, histórias reais e fantasiadas, como as façanhas de Viriato contra os romanos ou a Tomada de Lisboa aos mouros por Afonso Henriques. Mas Wells ia muito mais longe, levava-me ao começo do mundo, ao Big Bang, depois aos dinossauros, depois aos primórdios da civilização. A sua História vinha acompanhada de legendas, de ilustrações que me espantavam, sobretudo no tocante às criaturas primitivas, cujas escamas, chifres e mandíbulas monstruosos me faziam sentir tão mais confortável neste tempo de quietas galinhas e gatos preguiçosos.

O livro vinha escrito numa linguagem escorreita, apenas negligenciada por grossas manchas de humidade que o anterior dono não fora capaz de precaver. Um crime. E o criminoso deixara também surripiar umas quantas páginas no final e a capa. Teria dado já então todos os meus porta-chaves em troca de um exemplar integral daquele cartapácio repleto de sagacidade e amistoso arianocentrismo. Creio que o volume terminava algures no período de formação do império de Alexandre Magno, depois de novelisticamente nos deixar a par de todas as intrigas da corte de Filipe, seu pai.

Com os Contos da Montanha de Miguel Torga sucedeu algo parecido. Li-lhes com paixão a linguagem incontida, onde o realismo cru (com inúmeras agulhadas do calão) e as boas intrigas se combinavam rudemente. O volume não vinha em melhor estado do que outro, muito semeado de notas a lápis sublinhando passagens obscuras de mulheres adúlteras, homens castrados, ladrõezecos de sacristia e beatas hipócritas. Mesmo sem compreender completamente aquela escrita, achava-a verdadeira, naquilo que a verdade pode em literatura significar autenticidade e beleza.

Li-o umas três vezes de fio a pavio, admirando o seu exotismo montanhês, absorvendo as suas expressões regionalistas, rindo nos mesmos sítios onde a parvoíce das personagens ou a graça do narrador galgavam os portões do sono e aqueciam (até a fazer cheirar a queimado) a lâmpada do candeeiro.

Dessa sucessão terrível de peripécias ficaram-me em particular os contos «A Ressurreição» e «Um roubo». Quando anos mais tarde pude lecionar nas minhas aulas o último destes dois, foi com choque que me apercebi de como Torga já não criava leitores entusiastas.

Os anos, a informática, a pós-modernidade reduziram Faustino e a sua tentativa gorada (“numa noite medonha, cheia de água”) de assaltar a capela da Senhora da Saúde em qualquer coisa semelhante a uma pilha de palavras incompreensível e enfadonhas…

Julgo que há uma idade em que nos podemos tornar tudo.

Nessa época em que os livros começavam finalmente a circular cá por casa, desisti dos velhos arroubos panificadores para me concentrar no poder (incrivelmente abstrato) das palavras. Quis ser professor de História, depois cientista (antropólogo, talvez), depois jornalista, depois professor de Língua Portuguesa, enfim escritor. Já aos catorze anos, quando acabei «Madalena», o meu primeiro conto (que haveria de queimar com muito outro entulho pessoal no fim da licenciatura), sabia que as grandes escolhas se devem a acasos tão ridículos como o dar de caras com dois livros esfarrapados e cheios de sabedoria.

Nessa altura não tinha computador nem sequer a máquina de escrever – que viria anos depois –, apenas sebentas de papel reciclado e canetas da Bic. E também o resto que já não sei, nem quero explicar…

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