Algo aconteceu

Fotografia de Fredrik Solli Wandem

.

De repente dou-me conta da bestialidade dos homens num ponto em que a jamais sentira na minha existência de quase meio século. Profana-se o lugar-comum, o lugar dos outros, o lugar próprio. Cada pessoa é um inimigo latente, um ódio possível, uma briga, um insulto, uma forma de agressão física, um ato predatório. Dou-me conta do modo fácil como se fere alguém sem causa, sem motivo, sem preocupação pelo que é e significa cada gesto: um condutor abandona a viatura para erguer um braço violento contra o condutor imediatamente atrás de si; um garoto de dez anos profere uma barbaridade na sala de aula, ameaçando de morte um colega ou o professor; um doente morre numa maca de hospital, em frente ao médico que o devia tratar; um presidente calunia e divide os cidadãos do seu país, desprezando o juramento feito sobre a Bíblia; um povo outrora dizimado assassina em massa, justificando a força com a covarde e hipócrita justiça de que se diz herdeiro. De repente dou-me conta de que o sol limpo que corre sobre o parapeito da janela e sobre a mesa lisa do meu caderno é impuro e insuportável.

Busco Johann Sebastian Bach como um leproso busca a sua toca. Busco a infância, a memória dos bons amigos que tive, das caminhadas idílicas para a escola primária, do cheiro ancestral das ervas à beira dos regatos. Busco o rigor das cores, o sentido inequívoco das palavras, o cuidado das unhas, a verdade nos olhos. Havia naquela altura um sentido incomensurável de esperança. Aprendi a respeitar, a agradecer, a ser gentil, a cultivar o bom-humor, a valorizar os belos objetos raros que me ofereciam, a ler com delicado manuseamento os livros, a imprimir o espírito nas pensadas frases que devia pôr – umas atrás das outras – nas composições escolares e nas respostas à subtileza dos diálogos. Busco o silêncio para me lembrar de tudo isso, para escutar as suítes para guitarra, para me desligar da pátina ruidosa que os dias segregam.

Há dias um aluno perguntou-me o que faço para obter inspiração. Por instantes baloiçou-se-me na boca uma banalidade, um chavão, uma resposta pronta. Estávamos numa sala comprida, ladeada de computadores de última geração, respirando o ar impregnado dos cabos e dispositivos eletrónicos. Falávamos de António Vieira e da coragem de discursar sobre o abismo. «Não sei», «nunca soube». E esta é a certeza. Inspiração, como quem abre os brônquios a um ar leve e lavado de outubro, tangendo o orvalho e as folhas muito verdes do funcho e da lúcia-lima, não a sei explicar. A não ser, talvez, como uma grande nostalgia, uma vontade melancólica de reinventar os dias de trás para a frente, como quando o lápis se quebrava na linha nervosa e eu pensava «este não é o caminho». De repente, a humanidade esfarela-se no papel, entumecida de estupidez e de orgulho perverso. E é necessário que alguém diga «este não é o caminho».

.

Nausícaa

Fotografia de Annie Spratt

.

No final das férias, a alegria extinguiu-se já no semblante de muitos turistas. À medida que a praia vai ficando deserta, com os detritos infelizes que nela abandonaram milhares e milhares de forasteiros descuidados e egoístas, o rosto de Nausícaa parece acender-se. Chegou a sua vez, o seu tempo, a sua paz.

As manhãs de setembro revelam um longo areal branco voltado para um mar cor de chumbo, um e outro a necessitarem de si, da sua fala mansa e desapressada, dos seus olhos benévolos que tudo observam, das suas mãos diligentes e sensíveis correndo sobre a crista escorregadia dos rochedos. Aí deixaram restos de plástico e restos de alumínio e pedaços de vidro e de cartão e de ráfia e redes e tecidos esgarçados e tiras de borracha e mais plástico e mais despojos de alumínio e mais esquírolas ameaçadoras de vidro.

Nausícaa extrai das poças, da linha da salsugem, do manto das areias, dos altos e baixos da maravilhosa duna sem fim todo esse lixo detestável. E cuida das anémonas feridas, das aves pelágicas, das madeiras quebradas nos passadiços, dos canteiros selvagens onde o funcho-do-mar e os rabos-de-lebre e as camarinheiras e a amófila sobrevivem ao vento, ao sal e às incursões malignas dessa gente faminta de fotografias e de admiração.

– Pobres criaturas, como estais tão ressequidas, tão cansadas, tão moribundas!

Em setembro as manhãs orvalham, o frio resvala pela corola, pelas folhas espinhentas, pelo caule antipático dos cardos. O nevoeiro avança e recua, abrindo e tapando no horizonte a linha lisa das águas.

A bondade não deve ser confundida com indulgência, nem esta com a cobardia.

No mundo dos homens há uma paleta tão vasta de comportamentos que pode um poeta pintar quadros repletos de verdade e de justiça, equilibrando-os entre o bem e o mal absolutos.

Nausícaa não pensa nisso. Se alguém a observa, vê-a neste preciso instante a recolher com todo o cuidado formas pontiagudas de vidro e carcaças amolgadas de metal, agarradas como bisso, como sórdidos intrusos, como presenças infames, às rochas nuas, indefesas, subjugadas da sua pequena ilha.

.