Questão linguística

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Fotografia de Ernst Dav

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Depois de ter assinado sete golos na mesma tarde ao West Ham, perguntaram a Edward Babanjira, jogador camaronês ao serviço do Liverpool se se considerava o melhor da Premier League. Respondeu com modéstia que não só se considerava «O melhor», como «O primeiro melhor da Liga» (literalmente «First best in the league»).

Dias depois a discussão escalou nos tabloides, quando certo responsável partidário dos tories gracejou num debate no Parlamento nem todos os deputados se podiam arrogar ao direito de possuir um domínio rudimentar da língua inglesa e levantar um estádio.

Foi acusado de imediato de xenofobia e de racismo e recebeu cargas sucessivas de acusações em todos os veículos de propagação de palavras.

De modo que, dias mais tarde, precisou de aclarar em conferência de imprensa o conteúdo das suas declarações anteriores, dirigindo-se ao jogador, ao Liverpool, ao desporto, aos britânicos e aos Camarões. Sentia-se profundamente constrangido pela indelicadeza que tivera e pedia as mais sinceras desculpas.

A expressão «Primeiro melhor» mereceu, igualmente, uma acalorada defesa da Ministra da Cultura, Mary O’ Neill, que sugeriu a sua inclusão na gramática do inglês, como reforço sintático da ideia da comparatividade adjetival.

Nós, que seguimos o caso com atenção, propomos a interessante inclusão de termos como «o segundo melhor», «o melhor do meio», «o último melhor», bem como «o primeiro pior» e por aí adiante.

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Era daninha

Teslariu Mihai - Portuguese Carnations
Fotografia de Teslariu Mihai

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Anotados a lápis vermelho-vivo, com a instrução sumária de que fossem abertos no dia 25 de abril de dois mil e vinte e quatro, o poeta-pintor e tradutor-publicitário, homossexual e surrealista, cidadão sem papas na língua e de cabeça limpa, de sua graça Mário Cesariny de Vasconcelos, deixou uma pilha de papéis lacrados numa arcazinha imitativa da de Fernando Pessoa.

Deste, que agora mesmo seguramos nas nossas mãos e cujo rasgamento se fez com faca de aço inoxidável, acabou de extrair-se e de desdobrar-se o poema «ERA DANINHA».

Não há erro ortográfico, nem data de criação, só um manguito à Bordalo, desenhado com o mesmo carvão no final do texto.

Transcrevemo-lo para o público e devido reconhecimento.

ERA DANINHA

O António era fascista.
Deixá-lo ser.

O António lambia botas
Deixá-lo lamber.

O António entregava os amigos.
Que se vá foder.

O António perseguia os inimigos.
Havemos de o prender.

O António morreu.
Deixá-lo morrer.

O António quer voltar ao mundo.
Deixá-lo crer.

O António crê poder voltar ao mundo.
Deixá-lo querer.

O António chora com aquilo dos cravos.
O ranho seca-lhe, vais ver.

O António no outro mundo redige protestos.
Deixá-lo escrever.

Cem mil diabos carregam o António no inferno.
Deixá-lo sofrer!

Dos remanescentes textos, cujo conteúdo muito nos deleitou e em parte surpreendeu, daremos oportuna (oxalá brevemente) a cabal notícia.

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«E para quê?»

Monoar Rahman
Fotografia de Monoar Rahman

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Huldrych Fritz-Meier era obcecado pela exatidão.

O correr das palavras numa carta não poderia admitir atentados à caligrafia ou à ortografia, tal como o tempo mostrado nos seus relógios deveria não discrepar entre si um segundo que fosse; da mesma forma que – só para terçarmos os exemplos – seria absolutamente inadmissível para si errar a quantidade de coque que teria de colocar no fogão para aquecer a casa.

Várias questões o atingiam em simultâneo.

Uma delas a de determinar o número preciso de seres humanos que desde Adão visitaram o nosso planeta. Outra a de cifrar aos cêntimos o maravilhoso dinheiro guardado nos cofres do Banco Nacional da Suíça. Outra ainda a de equacionar em números tangíveis, num caderno, a idade do universo.

«Tudo tem um propósito, uma lógica, uma verdade plantada dentro de si próprio. Chama-se a isso ordem.»

Mas por muito que a inventasse, a ordem teimava em não obedecer-lhe.

Uma bela manhã de abril, depois de reclamar com o carteiro (cuja falta de pontualidade lhe inspirava um ódio visceral, quase animalesco), a seguir a uma zaragata ao telefone por conta da gramagem dos pacotes de cevada, profundamente melindrado com a progressiva dessincronização do bater das horas nas torres próximas da Igreja de São Pedro e da Abadia de Fraumünster, a janela do escritório deste antigo engenheiro aeroespacial (localizada num sétimo andar da Münsterhof) viu-o – como um moscardo cabeludo – atravessar o parapeito sem mais nem quê em direção ao vazio.

Não deixou nada escrito. Nada. Nem uma confissão de culpa. Nem um reparo à humanidade. Deixou, isso sim, o apartamento na confusão maior que possa imaginar-se, com estantes despidas, armários abertos, objetos empilhados à toa num caos digno de uma residência de universitários estroinas.

Era como se Huldrych Fritz-Meier se tivesse assaltado a si mesmo. Como se o tivesse feito com requinte de prazer e de traição.

Johann Reusser, pastor calvinista, amigo e antigo colega de escola de Meier, foi severo na despedida do corpo: «A vontade de imitar a omnisciência de Deus atinge algumas almas como uma pedrada vinda diretamente do diabo. E para quê?»

Eis uma boa interrogativa. «E para quê?» reperguntamos nós.

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Dever de vida

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Fotografia de Joe Hendriksen

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Massimo Volti amava a velocidade.

Sem ser vascolejada a vida era o mesmo que possuir certa parte do corpo e não ser capaz, por defeito, por velhice, por ausência de alegria de a erguer tão alto quanto o permitissem os vasos sanguíneos.

Na vida deve ousar-se, eis a divisa da sua existência.

Odiava todas as formas de assentimento, de obediência e de medo. E por isso esporeava os cavalos até espumarem, arriscava círculos improváveis sentado no girocóptero, atravessava com a fúria da sua lancha Ferrari V12 o intervalo das ondas de todos os mares do Mediterrâneo, derretia ao volante de um futurista Alfa Romeo C52 herdado do avô Silvano as curvas e contracurvas que desciam de Génova à Calábria.

Massimo Volti amava o risco.

Como na labiríntica lei einsteiniana que sugere a deformação do espaço-tempo pela ação dos corpos celestes massivos, assim os cabelos das beldades nas praias de Portofino e a dos pastores nos píncaros de Matera se contorciam à sua passagem alucinante.

Era um louco. Certo poeta português encomia bastante este género de grandeza buscada no estouvamento.

Um homem deve poder acrescentar ao ramerrão uma ou duas colheradas de adrenalina. Mesmo se às duas por três perde o controlo de si e o corpo, como um inseto sem asas, voa uma última vez em direção ao abismo.

Para Massimo Volti Ícaro era o único herói suportável e entendível. Sem concordar ou discordar do seu modo de vida, admitimos somente um pouco de inveja. Apenas um pouco.

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Uma estranha beberagem

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Fotografia de Jack Jiao

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Vencido pelos anos e por um profundo desamor à vida, Wú Mo, um dos eunucos poetas que serviam e celebraram o poderoso Yung-lo, gastava grande parte das suas noites a cogitar numa maneira boa de morrer.

Primeiro em Nanquim, mais tarde no coração da capital do império, assistira ele muitas vezes à violência e à crueldade do seu senhor. Não lhe parecia difícil conseguir a punição suprema. Difícil era poder fechar os olhos sem ruído, sem pressa, sem rancor, tal como o dia faz quando fecha as suas asas.

Pelas ruas magníficas da Cidade Proibida não deslizava senão, nesse tempo, a pouco subtil e muito trabalhada arte da louvação da casa do Ming, do guerreiro das sumptuosas sedas amarelas, do autor das gestas inumeráveis e incomparáveis que ele, Wú Mo, cantava em verso.

Mas o velho eunuco conhecia também as sombras. Para lá da luz e do luxo e do louvor havia brechas, portas mal seguras, casebres de bambu onde moravam outros velhos menos afortunados. Aí dominava-se outra língua, praticava-se outras ciências, cuidava-se de outros poderes que lograriam, num descuido, interromper a interminável subjugação de Yung-lo, a insuportável bajulação para com Yung-lo, a abominável adoração a Yung-lo.

Afeiçoou-se ao velho servo uma das muitas esposas do imperador, filha de um camponês qualquer, trazida de uma das províncias distantes para onde os exércitos e as mãos implacáveis de Yung-lo se estendiam ultimamente.

Depois das cortesias e, mais por rebuscadas alusões do que por palavras chãs, eunuco e concubina compreenderam um no outro a mesma estranha infelicidade e o mesmo propósito que a ambos envenenava a alma. Ajudar-se-ia, portanto, a deixar este mundo e fá-lo-iam em segredo, com o recurso ao recente saber que tomara ela acerca da fervura de certos grãos trazidos pelos mercadores do deserto, grãos escuros e fatais que deveriam ser esmagados até deles não sobrar mais do que um pó igualmente escuro e perfumado.

O eunuco rejubilou. Esse seria, com efeito, o fármaco do seu fim.

Tendo-os na sua posse, Wú Mo procedeu com eles como se descreveu atrás. Ferveu água e em seguida verteu-a sobre um púcaro de boa porcelana no fundo do qual jazia a delicada farinha. Mexeu-a em duas ocasiões e deixou-a recair antes que pudesse bebê-la.

Não tardou a que o forte odor da beberagem transpusesse os seus aposentos, ultrapassasse os pátios, atingisse o salão do trono e o próprio nariz imperial.

«Que cheiro é este» perguntou Yung-lo.

Conduziram à sua presença o infeliz eunuco, a quem foi imposto (como lhe impunham às vezes um poema) que ingerisse o misterioso líquido negro. Bebeu e sorriu. Morreria, morreria bem, na presença e para desgosto do maldito usurpador. Assim o desejara, assim se cumpria.

Porém, não havia ali morte alguma. Bem pelo contrário, o corpo entorpecido de Wú Mo pareceu animar-se de uma força inteiramente nova, de uma alegria inesperada, de uma juventude esquecida muito tempo atrás.

Wú Mo viveu até aos cento e cinquenta anos. É o que dizem as crónicas chinesas.

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Ele sabia

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Johannes Vermeer, A Leiteira, ca. 1657

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O vento punha-se a titilar nas ervas altas e era bom. Era livre. O sol caía em cachos na toca dos grilos e era belo e livre. Os miúdos saltavam os muros e corriam livremente pelos talhões de margaridas e era maravilhoso vê-los. O pintor compunha sem pressa o azul do mar ao fundo e o pé robusto das árvores ao perto e era muito agradável, agradabilíssimo, prestar atenção ao vento e ao sol e às crianças a voarem juntas pelo prado.

O poeta, no entanto, preferia a chuva e o silêncio. Preferia, sem dúvida, o canto mal aceso do seu carvão, a odor forte do seu tinteiro, o peso enorme dos seus versos impregnados na solene tristeza dos poetas. Era um desses homens infelizes para quem a simplicidade das coisas não faz sentido.

Quando a rapariga que vendia o leite lhe bateu à porta, com as faces cheias de rubor e o coração aos saltos, o poeta não encontrou as palavras certas para responder à saudação. Dentro de si as verdades tinham a dureza do mármore e o espontâneo cansaço de uma mesura.

A rapariga amava-o e ele sabia. Mas não era capaz de viver com a alegria ingénua de um grilo, só com o ímpeto de um tigre enjaulado. Era a sua pena e ele sabia.

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Uma demanda

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Fotografia de Hengki Koentjoro

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Cansado das erronias do seu tempo e das injustiças do seu povo e das mentiras descaradas com que um alimentava o outro, cansado da vileza com que ambos destituíam do seu lugar primeiro a bondade entre os homens, Kazuya afastou-se da cidade e caminhou em direção ao nada tantos dias quantos puderam as suas sandálias.

Em certo lugar nevoento encontrou uma curiosa árvore, que lhe parecia tão perdida quanto ele próprio. Junto dela começou a tirar de dentro de si as palavras que guardara e que lhe chocalhavam na cabeça como água a ferver num pote. Disse muitas coisas: primeiro em surdina, depois aos berros, por fim cheio de arrependimento.

Sentiu, então, um grande frio. Uma solidão imensa e devastadora. Uma vontade incontrolável de chorar. Chorou tanto quanto puderam os seus olhos. Em seguida abraçou a árvore, agradeceu-lhe e prosseguiu a viagem pelo meio do horizonte verde-cinzento. Não se soube mais dele do que isto.

A última pessoa a vê-lo foi uma velha fiandeira. Admirou-se que um mendigo assim esfarrapado pudesse estar mais feliz do que uma lâmpada acesa.

E que a ela não tivesse pedido nada, nem sequer um bom dia.

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