
.
No imaginário português, a árida e despojada Lanzarote é “a ilha de Saramago”. De resto, em lugar nenhum senti a presença de um escritor tão veemente como na casa em que, nesta ilha, viveu ele com a mulher, Pilar del Río.
Com efeito, A Casa (na Calle de Los Topes, 1, em Tías), pareceu-me no final dessa manhã de 29 de agosto de 2018 um nimbo literário, juntamente com a Biblioteca que (quase contígua, do outro lado da pequena estrada) recebe os muitos milhares de livros, revistas, cartas, manuscritos (não contando as estátuas, estatuetas, óleos) que o nobel colecionou em terras canárias. É bastante provável que muitos saramaguianos viajem a este lugar em primeira instância a partir dos seis volumes dos Cadernos de Lanzarote e que, lendo-os (se o preço da curiosidade não for menos do que o medo de fazer umas férias em solo lunar), se sintam tentados a comprar um bilhete de avião e a conhecer o extraordinário chão vulcânico que de Arrecife se estende a Haría, Ye, Guatiza, Orzola, a Caleta de Famara, a Caldera Blanca, a Yaiza, Uga, La Geria, a Las Breñas, a Los Charcones, à Montaña Roja, a Playa Blanca.
Os Cadernos falam de Lanzarote, mas não tanto como gostaria. O volume maior desta escrita diarística incide sobre as relações e questões que o autor alimentou (simpatias, antipatias, querelas, indignações, convites, idas e estadas em eventos literários, notas partidárias, glosas de toda a espécie a respeito do dia a dia social e político do país – olhado à distância, mas com a precisão – e do mundo), mas também sobre o amor a Pilar e aos cães da casa, sobre o maravilhamento do eu na relação tumultuosa com o cosmos, sobre efemérides, sobre uma frase colhida, sobre um pensamento, sobre uma confissão vinda a propósito do ruído do mundo ou vinda do silêncio purgado da sua alma. Todas as alusões à terra lanzarotenha me fascinam, inversamente aos apontamentos da sua agenda social (às vezes fastidiosos, quase sempre narcisistas).

.
De entre as geniais descrições que Saramago entremeia na meia dúzia de Cadernos a respeito da ilha, uma sobremaneira me toca e me parece súmula perfeita do que nela há de beleza cruel ou de corajosa resistência.
.
Há em frente da casa um morro a cujo cimo se chega por uma encosta suave, mas que, do outro lado, desce abruptamente sobre a planície que se estende até ao mar. (…) No geral dos dias, a paisagem que hoje dali se vê é escuta, com o chão coberto de troços de lava triturada pelas estações, uma vegetação rala e rasteira, amarelada, de longe quase invisível, continuamente sacudida pelo vento. Os muros baixos de pedra seca já não dividem as antigas parcelas em que se cultivava o trigo, a batata, o tomate. Agora apresentam a figura de um tabuleiro de xadrez mal desenhado donde os reis, os bispos e os cavaleiros se foram a melhor vida, e de onde os peões emigraram para irem ganhar o pão no turismo da costa. Tem chovido com abundância nestas semanas. Como sempre, por toda a parte, reverdecem logo as ervas, ainda sombriamente porém, como e nas seivas viesse misturado algo do negrume calcinado da terra. Vou até ali de vez em quando (…) e julgava conhecer o morro passo a passo, com os seus restos de velhos muros onde se escondem, rápidas, as lagartixas, e onde esquálidos arbustos lutam contra a ventania, mas hoje, num rebaixo, fui descobrir dois algibes que antes me haviam parecido simples amontoados de antigos escombros. Subi aos tetos abobadados e espreitei pelas frinchas das pedras mal ajustadas. Havia água no interior, uma água verde, imóvel. Não existem nascentes perto (quase não as há em toda a ilha), portanto toda aquela água caiu do céu, alguma é destes dias, outra do ano passado (…). Quando regresso a casa olho para trás. Ai estão os algibes, tranquilos como uma ruína, indiferentes ao deserto em que os abandonaram. Vendo-os assim, guardando o que lhe foi confiado, compreendi a razão por que a estas cisternas chamamos arcas de água. Ao dizer arca, ao dizer água, estamos a dizer tesouro.
(1 de janeiro, Cadernos de Lanzarote IV)
.
Durante um certo período de tempo, a minha irmã mais nova e afilhada viveu em Lanzarote, também. Por sua culpa, errei por lugares que me confundiram os sentidos e me fizeram disparar centenas de vezes os relâmpagos das máquinas fotográficas e do telemóvel: Las Nieves, por exemplo. Por exemplo, o Miradouro del Río (donde nos fere o azul claro da Graciosa e o profundo do oceano). Por exemplo, ainda, a Cueva de Los Verdes. Ou a vista ocre do La Corona (o maior cone vulcânico desta terra). Ou as vinhas escuras de La Geria, aninhadas em craterazinhas e aconchegadas em muretes de basalto. Ou o poderoso e avermelhado Parque Nacional de Timanfaya, com a sua imponente massa de lava solidificada. Ou os férvidos Hervideros. Conheci estes lugares como se conhece, deslumbrado, alguém que nos volta a cabeça do avesso. Absolutamente convencido de que também aqui viveria para a escrita, decerto não tanto como o cosmopolita Saramago, mas talvez como Hilário, o eremita.
.
.
O escritor português soube rodear-se de um conforto notável. Da janela do seu antigo escritório alcança-se sem custo o mar. Na penumbra do espaço, brilham não só as lombadas dos livros e as vitrines, onde ficaram aprisionadas as suas canetas, mas igualmente o Atlântico ao fundo e as ramagens das araucárias, das alfarrobeiras, dos encefalartos do jardim. Na piscina da casa, nas suas varandas generosas, ou na Biblioteca a que me referi acima (conspícua, aconchegante, ampla), José Saramago soube criar uma teia imensa de vozes e de amizades, de que dá conta nos diários. Lanzarote, com o seu cenário exótico de cinzas e piroclastos, com a secura do seu corpo velho (onde apenas os catos e as balsamíferas de eufórbio suportam ser plantas), com a sua costa acidentada e de fortes contrastes cromáticos, tornou-se para as visitas de Saramago um motivo extra para regressarem. O escritor português gostava, de resto, de as receber na sua casa. Mais ainda se portugueses fossem.
.
Maria Alzira Seixo chegou hoje, vem passar uns dias connosco. De cada vez que vou ao aeroporto esperar um amigo português tenho a curiosa impressão de estar a recebê-lo no próprio limiar da casa, como se toda a ilha de Lanzarote fosse minha propriedade, e não apenas estes dois mil e poucos metros empoleirados no alto da encosta que desce de Tías até Puerto del Carmen… Mais curioso é o sentimento de responsabilidade que me leva a desejar que o visitante só leve de cá boas recordações, isto é, que, dia e noite, o tempo, o céu, o mar e a paisagem tenham estado perfeitos, que o vento não tenho soprado demasiado, que nenhum turista distraído ou mal-educado tenha atirado uma lata de coca-cola ou um invólucro de cigarros vazio, que nenhum residente – canário, peninsular ou estrangeiro – tenha infringido o código não escrito que o manda comportar-se como exemplo de civismo quotidiano, que para isso, acho eu, é que temos o privilégio sem preço de viver neste lugar.
(14 de setembro, Cadernos de Lanzarote III)
.
Que Lanzarote me haja parecido um paraíso é assunto discutível. A minha afilhada sorria, se e quando eu o afirmava categórico, chapinhando nas águas quentes da praia de Famara com a alegria e os planos de um garoto. Existe na ilha e no arquipélago uma dureza de que os forasteiros mal se dão conta. Há três anos lia e corrigia o manuscrito de O Moscardo e Outras Histórias, escrevia nessa paragem, diante uma lua cheia magnífica, as duas narrativas que fechariam o livro («José, Pilar» e «Famara»). A varanda noturna dava-me a impressão de que entre os vizinhos (em cujas garagens abertas se acendiam churrascos e se brindava de cerveja na mão) existia ainda uma unidade ancestral, perdida nas nossas cidades e aldeias. Os garotos corriam e jogavam à bola descalços, algazarrando de um modo que acordou a minha própria infância. Era como assistir ao passado em direto, como ter regressado a um aconchego inesperado, como ter ali à mão de semear o sossego, a jovialidade, a leveza de que se precisa para viver bem e escrever melhor.
.
.
Mas a Catarina advertiu-me que o dia a dia não é fácil. Falta tudo aqui: água, carne e verduras, comodidades que noutras partes são banais. E o clima é duro, por vezes insuportável. Falou-me da calima, essa praga do deserto de que outrossim Saramago dá nota.
.
Lanzarote não é sempre o paraíso. Ontem amanhecemos com o céu tapado pela calima, um ar espesso e soturno que transporta para aqui, por cima de cem quilómetros de oceano a poeira do Sara, e nos põe à beira da sufocação.
(25 de março, Cadernos de Lanzarote III)
.
O que comove na Lanzarote de Saramago é o sentido de que uma terra inóspita e desconhecida possa ser a nossa casa. Exilado de Portugal, do Portugal cavaquista (é bom não esquecer), o escritor encontrou a sul, a mil e quinhentos quilómetros de distância o seu refúgio, o seu espaço, o seu tempo. Em Lanzarote viveu os 17 anos finais da vida, aí viu-o mundo o viu ressurgir, do chão, da cinza, colecionando pedras e miniaturas de cavalos, escrevendo alguns dos seus romances mais conspícuos. “Lanzarote não é minha terra, mas é terra minha”, escreveu. E talvez por isso também Lanzarote vê José Saramago como um dos filhos distintos e dele se orgulha.
.
Quando os meus olhos, atónitos e maravilhados, viram pela primeira vez Timanfaya, quando percorreram e acariciaram o perfil das suas crateras e a paz quase angustiante do seu Vale da Tranquilidade, quando as minhas mãos tocaram a aspereza da lava petrificada, quando das alturas da Montanha Rajada pude perceber o esforço demente dos fogos subterrâneos do globo como se eu próprio os tivesse acendido para com eles romper e dilacerar a atormentada pele da terra, quando tudo isto vi, quando tudo isto senti, achei que deveria agradecer à sorte, ao acaso, à ventura, a esse não sei quê, não sei quem, a essa espécie de predestinação que vai conduzindo os nossos passos, o privilégio de ter contemplado na minha vida, não uma, mas duas vezes, a beleza absoluta.
(28 de abril, O Último Caderno de Lanzarote)
.
É este o Saramago que idolatro. O homem que se serve do seu formidável talento para compor poesia com palavras cirúrgicas. Tal como a ilha que o acolheu, também o escritor português nos conduz por caminhos acidentados para nos desafiar a outra vida, a outro destino, a outra beleza que não mirra com a idade e antes com ela revigora. Em lugar nenhum podia Saramago ter cicatrizado tão profundamente a sua dor de homem desterrado. Nenhuma terra podia ter recebido filho mais grato e fecundo. Mãe e filho de um acaso. E ainda bem.
.









