Não-assunto

Fotografia de Przemyslaw Chola

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Viu a jovem instrutora de fitness a discursar diante de uma multidão apoteótica. A beleza do corpo aliada à bela escolha de palavras e, sobretudo, à forma bela como unia os seus gestos repletos de graciosidade e de sinceridade desconcertou-o.

Sempre imaginara as pessoas intelectuais como rostos cavados e cinzentos, corpos curvados e bamboleantes. E sempre olhara as pessoas que cultivam o corpo como cérebros ocos e fúteis. A jovem deixou-o desgraçadamente preso. Ele, um homem do poder, pensou imediatamente em colher o dia.

Quando ao cabo de alguns dias de ensaio, lhe dirigiu sem pudor um convite, ela recusou-o. Ele recompôs-se da desfeita, concitou os nervos a um leque de frases ambíguas, de promessa e de ameaça, e insistiu. A jovem voltou a rechaçá-lo, enojada. Tinha marido, tinha princípios, tinha a juventude. Ele, velho porco, na qualidade de dirigente do partido, de pai de família e de avô, de líder carismático, deveria ter juízo, deveria acima de tudo ter respeito.

O assunto foi sempre um não-assunto. Quando a despediram do ginásio e quando, com muita pena, prescindiram dos serviços do marido no escritório de advogados, também foi um não-assunto. Os não-assuntos são, de resto, terríveis no nosso país, onde tudo o que vem à boca não passa de saliva e às vezes um pouco de raiva, também.

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Esconjuro

Fotografia de Fernando Jorge Gonçalves
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Cada vez que regressava, a jovem punha-se a murmurar uma indecifrável ladainha ao rio. Era uma coisa antiga, um esconjuro que aprendera em criança com velhos da sua terra. Se alguém dava conta desta crença, ela punha-se a divagar sobre os mistérios que correm debaixo das águas enevoadas e que de manhã cedo se erguem como almas em farrapos ao céu.

Em todo o caso, as orações em língua estrangeira pouco nos importam. Apenas na nossa fala compreendemos a angústia e o sentido das ameaças ou das alegrias que deslizam sorrateiramente das florestas aos rios e destes ao mar. Na boca dos outros que mal-entendemos tudo nos parece distante e frio, como garatujos que os antepassados escreveram nas pedras.

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Mãe

Mãe
Fotografia de Tatyana Tomsickova

A rapariguinha estugou o passo. Não demoraria a chuva. Era uma tarde estranha, uma rua comprida, uma gente de rosto frio. De quando em quando, sempre que a acometia ao de leve uma suspeita, uma voz mais alta, uma ameaça, acariciava o ventre: bendito o fruto que ali devagar, desapressada, maravilhosamente, crescia.

A rapariguinha levava as golas do sobretudo erguidas, a bolsa a tiracolo, o coração aos pulos. Queria chegar a casa, descalçar os sapatos, abrigar-se no seu canto, sentir o aconchego das paredes e do silêncio, ser tocada pelo pulsar dos objetos conhecidos. Havia muito de umbilical ali: uma promessa de conforto, uma sensação de perenidade e de paz, uma resistência contra tudo e contra todos. Era dentro dela que gostava de pensar, de sonhar o futuro, de acalentar o rebento por nascer.

A rapariguinha à noite, quando ninguém a poderia escutar, dizia ao gato e ao sofá e às lâmpadas acesas, dizia como quem gostasse de ser ouvido «Este meu filho triunfará», «A este menino não faltarão o amor ou que comer», «Ninguém fará mal a esta criança, que eu não deixo».

A rapariguinha estremecia ao murmurar estas palavras. E era toda ela uma coragem, toda ela uma certeza, toda ela o encarnar de uma força desconhecida. E não chovia. E ninguém se atravessava entre si o tempo. E nenhum perigo se aproximava sequer do filho acalentado. E ela era tão franzina. E a criança tão pequena.

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