O sineiro

Fotografia de Larry Costales

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Depois de os sinos ribombarem lá no alto do campanário, os ouvidos ficam a chiar um pedaço após o que o grande silêncio volta a enchê-los com a paisagem ampla do vale do Arno.

Nicolau Ettori é sineiro desde os setenta, vai para cima de vinte anos. Sobe os degraus de granito em espiral da igreja de San Francesco até atingir o céu. Quando o vento seco de sul sopra forte dos lados de Siena, os sinos emitem pequenos gemidos antes mesmo de ele alavancar as cordas. São como faúlhas de som. Como o frémito dos touros prestes a serem puxados para o meio da arena.

O ancião conhece essa linguagem misteriosa trocada nas alturas, no sítio exato onde o aroma do feno fresco, do rio, dos fornos acesos chega aos dorsos de bronze e os faz estremecer. Sossega-os sempre com palavras meigas:

– Calma, meus filhos! Isto é só o vento a brincar por aqui. É apenas a aragem a experimentar-vos a paciência.

E começa o seu ofício com o ímpeto de que são capazes os seus braços. Então, sim, o atroar cobre a distância, os telhados, os campos, as azenhas, o horizonte ao longe, na linha onde bandos de pombos se põem a desenhar círculos velozes, extasiados, repletos de uma alegria doida.

Ettori duvida que Nosso Senhor aprecie um alarido tão ensurdecedor. Pergunta-se se não seria mais belo e apropriado o chamamento simples das flores ou da água ou das nuvens rosadas ao crepúsculo. Uma vez confessou-o a Monsenhor Benito Esposito.

– Não, Nicolau. Isto já não vai lá assim. Deus precisava era de tiros de canhão para acordar toda esta cristandade desmazelada.

Foi a resposta que o sineiro escutou.

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A heresia

Monge católico lendo as escrituras
Fotografia de D-Keine

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Entre as heresias que Agostinho refutou e combateu no tratado célebre de 428, não consta aquela que se atribui ao monge galês Ciliano Ordovico (ou Cilianus Brittanicus, ou Kilian de Glyngarth) e que – será uma lenda – chegou aos ouvidos do filósofo de Hipona numa manhã abrasadora de julho, a escassas semanas de se despedir ele deste mundo.

O douto Padre de que falamos terá exclamado do leito onde jazia:

– O fogo deste dia em nada é comparável ao que há de fazer encarquilhar o corpo e a alma deste apóstata, em cujo coração e de cuja boca correm tão ímpias mentiras!

Pouco se sabe de Ciliano Ordovico. Que era um homem simples. Que era entre os povos do sudoeste da Bretanha o que Patrício foi entre os gaélicos irlandeses ou, mais tarde, Columba no meio dos pictos e os gaélicos da Escócia. Ciliano, porém, ao invés daqueles santos canónicos, descria na Santíssima Trindade, tendo acolhido muito cedo as teses de Ário de Alexandria, em particular a que negava a Jesus a mesma divindade do Pai. Sabe-se, do mesmo modo, que era inegável a sua simpatia pelas ideias de Pelágio, que chegou a conhecer na juventude, e de que cuja influência nunca se libertou inteiramente.

«Como pode uma criança nascer com a mácula de um erro que não cometeu? Que sentido pode haver na verdade de que Deus é amor e, simultaneamente, capaz de repelir parte dos seus filhos? Como pode O Todo-Poderoso considerar aqueles que, tendo nascido iguais a si em imagem e semelhança, puníveis pelo pecado do primeiro homem e da primeira mulher, ad aeternum, sem o ritual simples do batismo?»

Ciliano procurava muitas vezes a solidão das florestas e o sossego das praias para meditar.

Observando amiúde os pobres camponeses a abrir com os machados as faias para lhes retirar a casca, ou vendo passar os pegureiros com os seus rebanhos inocentes, ou contemplando as crianças a colher bagas de airela com a esplêndida alegria das crianças, ou lançando as vistas para mais longe – para onde as pequenas barcaças iam e vinham com o peixe que também Pedro e André e Tiago pescaram na Galileia – o monge galês reiterava a sua certeza de que todo o homem podia salvar-se sem mais sacramentos do que o de simplesmente imitar a Cristo.

Ainda mais: tal como os irreverentes cachorros a quem se aplicava às vezes uma vergasta e eles gemiam um instante para logo depois se juntarem de novo à mão que os zurziu, assim os pecadores, por muito grande que fosse a culpa das suas ações – resultante sem dúvida das suas existências dificultosas – teriam inevitavelmente de retornar à graça do Criador.

Entre as tribos de pagãos, chamadas não havia muito tempo de siluros, démetas, cornovii, deceanglos, catuvelaunos, ordovicos, dobunos, Ciliano espalhava a sua visão pessoalíssima do cristianismo. O Filho de Deus era um exemplo de vida, não um dogma. Cristo pediu que o seguissem e cristão era todo aquele que preferisse o bem ao mal, a simpleza à jactância, o coração leve e puro ao rancor e à ambição.

E, por isso, Ciliano ensinava e era compreendido, amava e era amado, disseminava uma fé nova no serpentear dos pântanos e no correr das planícies, erguia-a aos altos selvagens cobertos pelas névoas e pelo misticismo e pela violência dos druidas. «Não creio no inferno» era – em suma – a estranha natureza da sua heterodoxia.

Outros monges missionários batiam-lhe o pé, recordavam o fogo de Hinom a que o próprio Cristo fez menção. Mas Ciliano lia nessa passagem dos Evangelhos uma alegoria.

«Por muito esquálido ou turvo que se mostrem a razão e o juízo de um espírito, assim que este deslace do corpo jamais Deus o poderá abandonar. Assim como os camponeses lavam os couros sujos em muitas águas, assim Nosso Senhor o fará com os pecadores. A condenação eterna seria o mal extremo, porque nenhum sofrimento pode ser maior do que sujeitar matéria ou alma a um suplício sem fim. Deus é amor, meus filhos e é inconcebível que pudesse conspurcar a sua substância inefavelmente benévola com um vício tão grande. O castigo demora apenas o bastante para que o erro se transforme em sabedoria e o possa Pai Celestial ao faltoso, outra vez, recebê-lo nos seus braços.»

Correu devagar esta heresia. Quando alcançou os ouvidos benignos de Agostinho, o velho teólogo gracejou:

– Oitenta e oito foram as falaciosas doutrinas que tomámos do nosso conhecimento e do sábio conselho de outros a que Deus revelou a verdade. Mas o demónio jamais se contenta com o açoite da nossa fé. Este e todos os malditos que espalham cizânia sobre a terra sã hão de com ela ser queimados duas vezes.

Não consta que Ciliano Ordovico (Cilianus Brittanicus, ou Kilian de Glyngarth) tivesse ardido ou sido sequer obrigado a abjurar. Tampouco que a História lhe haja reservado um lugar proeminente entre os incontáveis heresiarcas.

Assinalamos somente – é o nosso dever – as suas palavras, dignas, achamos nós, de algum interesse e – quem sabe obscurum per obscurius – da melhor cristandade.

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Logótipo Oficial 2024

Deus

Lars Nissen
Fotografia de Lars Nissen

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A pequena igreja enche-se com o ressoar dos tacões. O estampido cresce pela nave e sobe aos altares. Depois dele é o rumor das preces, uma longa murmuração gelada, um marulho de bocas dançantes repetindo-se.

O efeito destes dois ecos consecutivos distrai quem ali não encontrou ainda o seu canal para a Providência. O mais certo é ficar-se a mastigar à toa algumas palavras da comum ladainha.

Quando o padre pronuncia a fórmula trinitária, ouve-se o arrulhar contínuo de um bando de rolas. A espaços, no intervalo das réplicas da assembleia, o coro ornitológico torna-se mais efusivo.

Os distraídos veem apenas a movimentação teatral do sacerdote, o tom ensaiado dos acólitos durante as leituras. Mas quem busca Deus não pode ficar indiferente ao amor veemente destas avezinhas durante o cio. Há quem se escandalize com a animalesca alegria.

Mas Deus é um lugar insondável. A maior parte dos fiéis não sabe onde procurá-Lo. E se O encontra não sabe reconhecê-Lo.

Quando a eucaristia termina, os tacões voltam a ecoar nas lajes frias. Os sinos ocasionalmente repicam, mas o silêncio faz subsumir tudo outra vez.

Só as pequenas aves nalgum canto seu, sobre o telhado do templo, insistem no gemido doce. Dão entre si leves bicadas, dobram e encastoam com o vagar de ourives as palhas do ninho.

Se entendessem a nossa fala, se lhes falássemos do pecado, que belas risadas não dariam.

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Perdão divino

Fotografia de Thierry Boitelle
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No ano de 1317 morreram nos curtos dias do mês do fevereiro o abade de Saint-Michel e três dos seus frades. Sujeita ao luto, ao rigor das chuvas intermináveis do inverno, à fome prolongada, ao medo de alguma incontrolável fulminação divina, o mosteiro manteve-se numa penumbra obstinada até fins de março. Fecharam o scriptorium e a sala do capítulo e os monges permaneciam quase todo o tempo em oração, encerrados nas suas celas, meditando na calamidade imensa que se abatera sobre o mundo sem poupar os próprios servos do Senhor.

Mas uma manhã o sino, empurrado por uma brisa amena que juntava a respiração do mar e os perfumes das flores, das ervas e da terra seca, começou a tocar sozinho. Os frades saíram para o claustro e para os jardins, atravessaram os pátios iluminados pelo clarão das magnólias, voltaram a olhar para a luz benévola onde o canto dos pássaros parecia sussurrar a própria voz do Criador. Tinha passado a Quaresma, era o domingo da Ressurreição. Nunca até aí os meandrosos caminhos da Providência lhes haviam parecido tão bem explicados.

Abriram os pesados portões e as leves janelas de vitrais em forma de treliça. Deixaram que o ar morno se passeasse pelos corredores, lavasse as escadarias empoeiradas, erguesse um pouco as folhas de pergaminho coloridas, subisse aos altares e ao zimbório.

Nada existia na vida terrena como o sinal do perdão de Deus. E por isso todos choravam.

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O cenóbio

Fotografia de Naveen Venkatesan

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Depois de ter viajado pelo mundo, pelas boas terras meridionais onde amou o sol e foi amado por belas mulheres, pelas frias paragens do ártico onde granjeou fama e respeito dos marinheiros que com ele atravessaram ilhas de gelos, Knut Peterson retirou-se aos quarenta e três anos para uma das ilhas Faroé, onde viveu anos sozinho. Mais tarde tornou-se monge regressou ao seu eremitério com cinco companheiros, fundando aí um cenóbio.

Rezavam, cantavam, aprendiam o latim e os antigos idiomas nórdicos uns com os outros, liam a Bíblia e as runas, escreviam crónicas e livros de botânica. A paz caía tão branca ali como a neve que ali caía uma boa parte do ano.

Mas uma manhã um barco deu à costa, desgovernado. Nele viajava uma formidável rapariga de cabelos ruivos e efélides, jovem ainda, tão assustada quanto cheia de fome, expressando-se numa língua aparentada com a sua, ainda assim bastante confusa.

Perceberam que tinha fugido, que viajava havia semanas, que ali aportara por força do vento e das marés que empurraram o botezinho, ou por vontade de Deus que sobre o vento e as marés manda.

Era uma boa moça. Depressa se dispôs a ajudar a apanhar lenha, a preparar o pão, a cozinhar sopa, a lavar as madeiras dos musgos e vermes, a aprender as estranhas línguas que ali se palravam. 

Um dos monges viu-a a banhar-se numa das lagoas da ilha, espantosamente branca e perfeita, como um anjo do Senhor, e o seu coração encheu-se de saudades da antiga vida continental. E a um a um (Knut resistiu o mais que pôde) cederam ao franco impulso de a possuírem como sua mulher, de amarem com o corpo o que apenas o corpo pode amar.

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Candelárias

Fotografia de Christophe Kiciak
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Na véspera do dia 2 de fevereiro do ano de 1309, a cidade de Bolonha engalanou-se para a Festa das Candelárias. Por toda a parte, não só nas igrejas, erguiam-se círios e velas em honra de Nossa Senhora da Piedade. Círios e velas malcheirosos, feitos de unto de porco, pelos quais se pagava o equivalente a uma de vinte partes de um gibão. Era domingo, haveria a procissão de atravessar solenemente a Piazza Maggiore, mesmo debaixo do nariz do Conde Roberto.

Mas os estudantes universitários estavam descontentes.

Depois de sucessivas queixas ao reitor, a quem chamavam «O grande sovina», acusando-o de cobrar exorbitâncias pelos estudos (pela collecta) e de não encher as lareiras da universidade, além de ser conivente com os arrendatários do burgo, também eles escandalosamente apostados em extorquir os pobres rapazes vindos de fora, alojando-os aos magotes em pequenas divisões frias e escuras, decidiram protestar.

Logo que ecoou o sino de São Petrónio, entraram em quantas igrejas puderam, pondo a arder todas as preciosas e caríssimas velas de cera que nelas encontravam. Era um desperdício de luz, um exagero. Pecado extraordinário esse de alumiar o interior cavernoso onde a fé buscava muitas vezes sem esperança o sol divino.

Não pensava assim um dos sacristães da igreja de Santa Filomena.

Furioso, pôs-se a apagar o espalhafato das pequenas labaredas no altar-mor. Mas logo outras, dezenas, centenas, se acendiam nas laterais. Vinha soprar também sobre elas, mas imediatamente outras deflagravam na sacristia, na abside, no interior dos confessionários. Desembainhou o punhal, feriu um dos estudantes, logo foi cercado, manietado, socado. Houve gritos, vieram em seu socorro outros acólitos. Ninguém sabe em que parte do templo o grande incêndio principiou.

Nessa manhã, antes mesmo de o sol nascer, uma imensa cruz de fogo ergueu-se aos céus, consumindo retábulos, tecidos, relíquias, afugentando pelas portas de San Vitale e de San Donato os criminosos aterrorizados, atraindo pelas mesmas portas mesteirais, camponeses, forasteiros estupefactos.

Repicaram os sinos da desgraça.

Era uma ironia atroz: a igreja da patrona das trevas transformada num braseiro, a cidade engalanada para a festa das luzes caindo num assombro incontido, como se em vez de amanhecer, ali anoitecesse.

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