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Fotografia de Amer Kapetanovic
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Na sala estão vinte pessoas, devidamente afastadas umas das outras por marcas de fita colada no chão.  Ocasionalmente o sistema sonoro anuncia nome e um número. O doente levanta-se e encaminha-se para o gabinete indicado. Nesse curto intervalo de tempo, os olhos circulam, respira-se fundo, inveja-se o sortudo. Depois volta-se a considerar o infinito, a ler com fastio as notícias do jornal que se tem nas mãos, a vigiar as duas funcionárias maldispostas do lado de dentro do guichê. Na parte mais próxima dos janelões, duas mulheres certamente conhecidas uma da outra conversam. De quando em quando, erguem a voz. Se alguém lhes deita uma mirada, voltam a sussurrar. A espera é paciente, resignada, sem sofrimento já.

Na fila da frente está sentado um homem forte, de cabelos lisos, muito brancos, com um casaco azul e a bengala poisada na perna direita. É, sem dúvida, um octogenário. Surpreende que esteja a mexer no telemóvel, com um dedo em riste, como um adolescente, fazendo deslizar as imagens. Os óculos do senhor forte da frente espelham o visor. Por eles vão passando mulheres jovens em trajes e poses atrevidas. As duas mulheres soltam uma gargalhada. O homem está tão absorvido que tudo o resto não parece importar.

Volta a escutar-se o altifalante. O homem endireita a bengala e com ela põe-se em movimento. As duas mulheres voltam a dar uma risada. Dura apenas o tempo que se demora a saborear uma anedota. Depois fica tudo calado, ou quase. À espera que outro nome e outro número coincidam com a nossa vida e nada mais importe.

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Quando os dias são um só dia interminável

Fotografia de MWHUNT

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Por fim, o cansaço faz-me dormir. Precisei de cinco dias para o conseguir. Jantei e lavei os dentes. A penumbra desenha-se no horizonte. No podcast, as palavras do locutor são exatas, informadas e tranquilizadoras:

«… a começar Poema dos Átomos; a música de Armand Amar, com as palavras de  Jalaluddin Rumi, poeta sufi do século XIII; na interpretação, as vozes do iraniano Salar Aghili e do turco Haroun Teboul…».

Aos poucos os gemidos do ancião na cama ao lado deixam de ouvir-se. Deixa de ouvir-se no corredor o ranger metálico do carrinho da enfermagem. Deixa de ouvir-se a água que goteja imparável na torneira da casa de banho. Deixa de ouvir-se o bip-bip do aparelho que monitoriza a frequência cardíaca. Deixam de ouvir-se as vozes que ordenam e as que acalentam, as que suplicam e as que insultam, as que explicam e as que não compreendem, as que berram e as que ciciam, as que possuem ciência e as que têm sentimento.

Na minha cabeça, presa por auscultadores a outro tempo e a outro espaço, as vozes que cantam numa língua ininteligível fazem-me atravessar paisagens de deserto e de água. Aos poucos confundo sonho e realidade e sinto-me cair dentro de mim como um fardo num poço, como Daniel na cova dos leões, como Brás Cubas no seu devaneio mortal.

Nunca li direito o Ser e Tempo de Heidegger. Envergonho-me. Se o tivesse feito, poderia agora, neste limbo existencial, entender melhor o que significa “existir” e o que significa “pertencer momentaneamente” a um mundo a que pertenceremos sempre “momentaneamente”, dure o nosso tempo o que durar.

Vogo. O sono acolhe-me como o vazio do espaço acolhe uma rocha à deriva. Sem uma palavra, sem uma reação química, sem um suspiro, governando-me apenas por leis físicas. O poema de Rumi e a música de Amar e as vozes dos dois cantores árabes são agora um rasto na minha memória. Durmo.

Desperto uma hora depois, sacudido pela mão diligente que me há de injetar tinzaparina sódica. Os olhos erguem-se num esforço tremendo, pesam-me. Mais que eles pesa a cabeça. Sou um prego. No pontinho em que a agulha perfurou a pele fica um leve ardor. Com alguma sorte há de ficar também, de mistura, uma nódoa negra e um papo.

Oiço de novo as vozes e os nomes a que me fui acostumando nos derradeiros dias: Leopoldo, Virgílio, Júlio, Clementina, David, Eugénia, Rosa. Nomes ditos num “tu” que me desbarata, num “tu” próprio para anciãos meninos de 80 anos, num “tu” referente a corpos cansados e teimosos que insistem em retirar de si a algália e o cateter e a sinistra ventosa do oxigénio.

Sou um prego, uma cavilha, uma cabeça macrocefálica, de chumbo, que se segura sem tino. Escureceu entretanto. Penso em dormir outra vez, mas receio a sacudidela que virá (mais cedo ou mais tarde) medir-me as tensões, avaliar-me a temperatura, picar-me o dedo para ver como se comporta a glicemia, trazer-me o meio Triticum para descansar bem…

Ao invés, caminho até à sala de estar no coração do piso. As ironias entrelaçam-se. Cheira a café que não posso beber, cheira a cigarros que não posso fumar, cheira a tílias que não posso respirar. O janelão, sujo e meio baço, deixa contemplar a noite, o frenesim dos táxis, a procissão de faróis entrando e saindo e ladeando o Centro Comercial. De cada lado do vidro abre-se dez centímetros de liberdade; um aloquete impede-nos de colocar fora dele mais do que o nariz e talvez um olho; somente uma migalha de evasão, de paz, de poesia.

«Aqui os dias são todos iguais, um só, sete ou cem.»

Escrevo a frase no caderno que pedi para trazerem de casa, mas rasuro-a logo de seguida com raiva. Nem sequer me parece bonita, nem sequer genuína, nem sequer minha. Parece-me ruído, isso sim, chocalhar de pensamentos e de coração, lamechice.

Por fim, o cansaço é um preâmbulo de loucura.

Nunca na minha vida me senti tão só, tão inútil, tão impotente. Talvez regresse ao poema de Rumi e à música de Armand Amar, às vozes luminosas que não decifro de Aghili e Teboul. Talvez me atire ao Alprazolam escondido, interdito, na gaveta. Vogo. O sono arremessa-me no vazio como um asteroide pela noite sideral, do nada e atrás do nada.

Um dia emendar-me-ei quem sabe com Heidegger. Hoje, porém, ser e tempo não passam de palavras plúmbeas e espúrias, desastrosas (Leopoldo, Virgílio, Júlio, Clementina, David, Eugénia, Rosa), envoltas em cheiro de fezes e de urina, a que ninguém, nem o próprio Deus, me ensinaria a voltar.

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Pobrezinhos velhinhos

Nico Ouburg
Fotografia de Nico Ouburg

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As casas dos pobrezinhos começavam ao pé da escola primária. Eram pequenas e coloridas, com portas e janelas sempre abertas e soleiras maravilhosamente gastas, onde se vinham sentar, à vez, os pobrezinhos e os cães dos pobrezinhos. Havia muitos cães diferentes, porque havia também muitos pobrezinhos. Que eram sempre muito atenciosos. Apesar de pobrezinhos, não lhes faltava que dizer quando vínhamos a correr para casa («Adeus, meus meninos!», «Deus vos abençoe, meus filhos!», «Ide com cuidado!»), ou quando, a passo lento, pontapeando o invisível, meditabundos, desprovidos de vontade, regressávamos pela manhãzinha à escola («Bom dia, meus meninos!», «Aprendei muito, filhos!», «Portai-vos bem!»).

Aflorava-lhes frequentemente uma lágrima ao canto do olho. Já então reparava muito nisso. Porque os pobrezinhos, na sua maior parte, eram também velhinhos. Sem reforma (e, portanto, não engrossando a mole da «peste grisalha» que se abateu sobre o país, segundo o augusto deputado Carlos Peixoto). Sem reforma, mas com aquele olhar vago que os velhinhos pobrezinhos normalmente exibem quando não pensam em nada e pensam em tudo.

Além da lágrima, havia o catarro. Porque essas almas boas se punham a falar, por cima dos muros, para os vizinhos, dos netos ausentes. Diziam, por exemplo «Tenho lá em França dois da idade destes rapazitos». Ou «A minha Laurinda tem lá um tratante como este aqui!». Ou «Vêm agora nas férias. Que Nossa Senhora mos traga direitinhos!»

Os pobrezinhos velhinhos possuíam, ainda, cada qual, a sua mulher. Que era uma velhinha de lenço preto na cabeça, sentada numa cadeira, com um ar tão calado e fixo que, ao meditar as cinquenta ave-marias do terço, lembrava um coelho a ruminar alface. Ao contrário dos maridos, as velhinhas não diziam coisa nenhuma, como se os seus olhos
indiferentes e baços nos não pudessem alcançar. Eram a imagem mais próxima do que mais tarde chamaria tristeza. Uma tristeza que se colava à pele e que transportávamos muitos metros, até que o canto de um grilo, o cheiro do pão fresco ou a súbita aparição das amoras num silvado nos distraía de novo.

Enquanto caminhávamos (a pé, fizesse chuva ou fizesse sol), gostávamos de contar histórias uns aos outros. Às vezes trocávamos segredos. Dizíamos muitas mentiras. Que eram um compêndio de pura amizade e lírica dissertação sobre os sonhos. Todos queríamos muito ser alguma coisa. Ser alguém. Aliás, era o que os velhinhos pobrezinhos nos recomendavam em primeiro lugar. «Estudai muito para serdes engenheiros, meus filhos!». Ou «A barriga é a casa melhor, a cova a que dura mais e a escola a mais importante!». Ou ainda «O que agora aprendeis ensinai um dia no dobro!»

Estas frases intrincadas eram ditas sem solenidade. Porque os velhinhos, de foice em punho, ou munidos de uma tesoura da poda, filosofavam ao mesmo tempo que aparavam os galhos de uma macieira ou podavam as vides. Eram ditas com uma tal sinceridade que o tempo não foi capaz de as engolir. Nem sequer soterrar com frases mais elucubradas, vindas dos cartapácios de Wittgenstein e Heidegger, Russell e Popper.

Quando um destes amáveis homens desaparecia e a porta e as janelas de sua casa se fechavam num silêncio de tapume, os nossos passos arrastavam-se mais. Era a melancolia a despontar. Sentíamos uma pena enorme. Porque naquele bocado do caminho se acabava um pouco do sol que nos iluminava a alma e nos fazia viajar com alegria. E a alegria era uma palavra com peso. Porque nessa época ser-se alegre era o mesmo que ser-se saudável. E os velhinhos pobrezinhos, quem havia de pensar, tinham a sua quota-parte de responsabilidade na nossa saúde!

O último desses exemplares de excelente humanidade deixou-nos há dias. Espantei-me da sua longevidade. Tão velhinho que dois dos cinco filhos o tinham antecedido na morte. Tão pobrezinho (o dinheiro é sempre pouco neste país de pobres) que o seu último desejo, contaram-me, era chegar ao tempo do vinho doce e poder beber dele um copo! E nem isso lhe concedeu o destino! Avaro destino, o dos pobrezinhos! A sua casa, colorida, escassa, com as suas árvores de fruto, o seu muro pequeno e muito branco, lá ficará em silêncio. Com a porta e as janelas fechadas. A soleira muito gasta. O cão triste e latindo. Sem perceber como pode o destino ser tão cruel para certas criaturas.

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Do velho hábito de cuidar dos velhos

Anna Kudriavtseva
Fotografia de Anna Kudriavtseva

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Vejo a minha mãe a cuidar da minha avó, a colher rapando o fundo do prato, enquanto quieta, como uma garota velha, a minha avó se entregava a esse cuidado, frágil, absorta em nebulosos pensamentos indecifráveis, consoladoramente. O último dos seus vícios: um copo de vinho às refeições. Com a bênção de São Gonçalo de Amarante, cujo báculo estampado no copo alto de asa, parecia tocá-la amigavelmente. Era, na verdade, uma minicaneca. De estimação. Como todos os hábitos e objetos do final da sua vida.

Penso muitas vezes na minha avó. Na sua mudez. Na cegueira. Na paralisia. Penso em como movimentos tão simples, como o de trocar de posição na cama, ou de levantar-se a meio da noite para ir à casa de banho, ou de acender o candeeiro, ou de beber um gole de água lhe eram inacessíveis. Penso no abismo do silêncio, multiplicado pela falta de voz, de imagens, de movimentos. Penso nos seus próprios pensamentos. Em como terá pedido ao seu Deus (em noites furiosamente insones) que a levasse, que a libertasse dessa prisão do corpo e da mente, que a deixasse fora do alcance das palavras que, dentro da sua cabeça, chocalhariam sem piedade, vergastando-a.

Quando algum de nós se aproximava da sua cama (que, com o tempo, se tornou numa espécie de lugar assustador, onde um corpo morria devagar e, vivo ainda, nos ensinava os tortuosos caminhos para a morte) sentia o arrepio que se tem diante de um santo. Puxávamos-lhe o cobertor. Dizíamos qualquer coisa. Despedíamo-nos. E a minha avó emitia meia dúzia de sons guturais, decerto em agradecimento.

O quarto adquirira, igualmente, um cheiro característico. O da caixa dos remédios. O da lixívia. O do sabonete Patti. O do detergente da roupa. O da velha manta de alpaca. O do cartucho dos doces ‒ traziam-lhe sempre um cartucho de doces aos domingos ‒ e o do pão de ló. O das bananas maduras. O da madeira da mobília. O da velhice. Tudo junto. Como uma orquestra de odores desafinada.

As visitas rarearam. Deixámos de escutar-lhe os passos no corredor. Repetir as mesmas histórias, vezes sem conta, com a mão da minha avó poisada na sua mão deixou se ser possível, porque os poucos amigos da minha avó foram desaparecendo. A solidão nos derradeiros meses foi apenas contrariada pelos magníficos esforços da minha mãe e dos outros filhos, que a lavavam, vestiam e alimentavam, entre discursos e censuras começados sempre por um «Ó minha mãe…». Penso muitas vezes nessa solidão. Porque a receio mais do que tudo na vida. Porque essa solidão se transformou na minha definição de inferno. Imerecido, profunda e totalmente, no caso da minha avó…

Quando morreu, ninguém se espantou. A tristeza foi-se entranhando em nós… Não fui capaz de chorar, exceto muitos dias depois, quando na imensidão do quarto vazio compreendi que o lugar de cada pessoa é insubstituível e que a morte (pese os labirintos para onde nos foge a memória às vezes) tem em si, no seu escuro alçapão, um ser definitivo e terrível. «Não, nada será como dantes!»

Revejo os desvelos, as arrelias, os ditos por dizer, a segurança e o conforto desse último reduto, que (como num casulo) embrulharam a minha avó Amélia no fim. Aprendi tanto com a sua decrepitude! Jamais se pôs sequer a hipótese de um lar de terceira idade. Jamais se equacionou outra proteção que não a da casa. Os tempos eram, ainda, os do alto dever de «proteger os nossos velhos». Os ralhos eram manifestações de amor zangado e não de profissionalismo mascarado de amor. As chagas curavam-se com mercurocromo e tintura de iodo. Acordava-se a meio da noite para, como aos recém-nascidos, ser trocada a fralda. Se havia lágrimas no canto do olho da avó, a voz da minha mãe crescia no torpor da casa, «Ó minha mãe, você que tem?», e uma sucessão de chamadas telefónicas (para os outros filhos, para a médica, para o hospital) punha-nos a todos em sentido. Ganhar tempo contra o fim inevitável parecia, mais do que uma obrigação, uma obstinação.

Leio, agora, que o Governo quer punir os maus-tratos contra os idosos. Como se a lei pudesse pela força suprir o que o amor perdeu em força… Como se uma sociedade ‒ como esta, como a nossa! ‒ pudesse, à conta de normativos legais, reaprender a cuidar dos mais velhos. Como se uma cegueira (uma amnésia quanto ao futuro) a tivesse desabituado à ideia de que envelhecer envelheceremos todos e que, assim como fizermos, assim nos farão.

E, por isso, penso. Penso muitas vezes, aproveitando o vago marulhar das árvores nestes dias outoniços de agosto. Como se ainda fosse a tempo de alguma coisa. Penso na minha avó. Penso na minha mãe, metendo-lhe a comida na boca. «Ó minha mãe, você é pior do que uma criança…». Penso nos resmungos da minha avó. Nos sons guturais. No báculo de São Gonçalo que usaria, se pudesse, para dar à minha progenitora um enxerto. E o tempo passou. E é como se não tivesse passado…

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