A igrejinha do perdão

Igreja românica com neve
Fotografia de Georgi Danielyan

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Há invernos em que o ermo alcantilado e a pequena igreja de São Benedito não se veem por causa da neve. Ela suavemente mergulha do céu níveo e negro, cai durante dias e semanas, fina camisa de camadas frias, lentas e insonoras, até desfigurar por inteiro a paisagem.

Os habitantes de Reosa-Romano persignam-se na direção do horizonte branco, porque a igrejinha lá está, escondida ao lado da grande magnólia-perene, uma e outra grandes borrões inseparáveis das outras formas ajoujadas pelo fremir do vento e pela bruma.

Dizem que na era dos cruzados se refugiaram nela cristãos e mouros, judeus e ciganos, gente foragida e gente rica, gente vilã e gente nobre. Dizem que nos lugares onde a terra acaba e o abismo se precipita todo o coração é coragem e toda a coragem uma forma de perdão. Os habitantes de Reosa-Romano repetem esta frase há demasiado tempo e, por isso, já só em parte a compreendem.

Nos dias de sol, os montanheses escalam o granito íngreme e sobem ao adro. Depois penetram o espaço escuro e silencioso do templo para rezar, para descansar ou simplesmente para saciar a curiosidade.

Desde há séculos que um velho padre espera os visitantes no confessionário. Merecer a absolvição é um feito de que vale todo o esforço. Se esse sacerdote é chamado para junto de Deus, outro toma o seu lugar. Esse velho benevolente, cuja penitência é pedir e conceder o perdão, aí nos espera desde sempre, é o que dizem.

Nos meses hiemais de dias opacos e ínvios ou nos meses luminosos da primavera e do verão, de alguma coisa hão viver estas pobres criaturas eremitas. Ninguém ao certo sabe de quê, ou como, ou onde.

Há quem afirme que tudo não passa de uma fantasia e que no interior da pequena igreja não se vê vivalma desde há mais de quinhentos anos, quando uma horda de cavaleiros cristãos, ou sarracenos, ou mercenários a soldo, massacrou todos os inocentes que dentro dessas paredes se ajoelhavam e erguiam as mãos.

Há quem afirme, pelo contrário, que tudo é verdade. E aponta uma adaga ao próprio ventre. Quem não acreditar que faça justiça, ou que retire a sua palavra.

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Um milagre

Nevoeiro, Franz Bachinger
Fotografia de Franz Bachinger

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Nesse ano de 1371, ou 1372, ou 1375 (as crónicas incoincidem), um grande nevoeiro estendeu as suas mortalhas sobre a aldeia de Santa Chiara d’Oro, isto nos começos de fevereiro, ou de março, ou de maio, e tendo-a inteiramente coberto no que nela cabia (bosques, campos, o mosteiro das monjas, os casebres tortos de calcário), não mais o sol acudiu aos pomares e aos estábulos, nem aos pátios, nem às leiras de centeio, adormecendo tudo e todos num esquecimento mortal como jamais antes ou depois a pena dos cronistas pôde contar.

Era aquele povoado uma terra maldita. Ninguém amava ninguém, espírito nenhum se importava com o seu semelhante. O almocreve roubava na praça e era assaltado na falperra. O vizinho atraiçoava e era apunhalado pelo vizinho. O camponês enganava na quantidade de pão e na qualidade do vinho, mas iludiam-no no valor da prata. As que serviam a Deus escondiam sob os travesseiros e no fundo dos sonhos palavras e promessas do demónio. A ignomínia e a avareza e a lascívia tinham afogueado os corpos e enegrecido a parede das almas.

De modo que as névoas tornaram ainda mais sombrio o viver daquela gente. As crónicas anotam o castigo: a cerração durou meses contínuos, cegando os que viam e paralisando de todo os tórpidos braços que na terra ou no rio, em casa e na rua exerciam o seu ofício. Foi quando um misterioso vagamundo chegou à praça, um esfarrapado de olhos vivos e palavras poucas, um profeta, ou talvez um peregrino, um penitente, um proscrito.

Pediu guarida no mosteiro, onde sem afeto as clérigas o receberam e onde o faziam pernoitar num curro. Por quanto tempo não se sabe (as crónicas dissimulam mal esta ignorância), porém o bastante (e entre si corroboram-no as mesmas crónicas) para que lhes memorizassem este único brado: “As trevas, como o silêncio dos ladrões, guardam-se nos recessos onde vós não vigiais. Envergonhai e arrependei-vos, desgraçados!”

No dia da Santa, o décimo primeiro de agosto, todas as portas e janelas do mosteiro foram escancaradas, em todas as casas dos aldeães foram removidos os postigos, levantados os cancelos em todos os estábulos. Homens e mulheres comuns, monjas e animais expunham a sua intimidade para que o diabo não pudesse nela acoitar-se e, conhecendo as feições uns dos outros, soubessem reconhecer como Adão no Paraíso o sopro de Deus.

“Arrependei-vos!” bradava o forasteiro. “Abri a vossa morada. Deixai que nela irrompa a luz! Envergonhai e arrependei-vos, desgraçados!”

Um vento macio vindo das montanhas principiou, então, a empurrar o encordoado odioso das trevas e o sol finalmente reapareceu como uma lamparina milagrosa. Não se sabe o que foi feito do predicador, nem se a lenda recolhe alguma verdade de que valha a nossa pena.

A dos outros, a dos cronistas, escreve que a partir desse prodígio Santa Chiara d’Oro passou a ser nome próprio nestas paragens de Áquila, no coração rochoso dos Apeninos.

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João Ricardo Lopes, escritor português (escritor de Portugal), escritor fafense (escritor de Fafe), autor de livros de poesia, contos e crónicas.

Perdão divino

Fotografia de Thierry Boitelle
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No ano de 1317 morreram nos curtos dias do mês do fevereiro o abade de Saint-Michel e três dos seus frades. Sujeita ao luto, ao rigor das chuvas intermináveis do inverno, à fome prolongada, ao medo de alguma incontrolável fulminação divina, o mosteiro manteve-se numa penumbra obstinada até fins de março. Fecharam o scriptorium e a sala do capítulo e os monges permaneciam quase todo o tempo em oração, encerrados nas suas celas, meditando na calamidade imensa que se abatera sobre o mundo sem poupar os próprios servos do Senhor.

Mas uma manhã o sino, empurrado por uma brisa amena que juntava a respiração do mar e os perfumes das flores, das ervas e da terra seca, começou a tocar sozinho. Os frades saíram para o claustro e para os jardins, atravessaram os pátios iluminados pelo clarão das magnólias, voltaram a olhar para a luz benévola onde o canto dos pássaros parecia sussurrar a própria voz do Criador. Tinha passado a Quaresma, era o domingo da Ressurreição. Nunca até aí os meandrosos caminhos da Providência lhes haviam parecido tão bem explicados.

Abriram os pesados portões e as leves janelas de vitrais em forma de treliça. Deixaram que o ar morno se passeasse pelos corredores, lavasse as escadarias empoeiradas, erguesse um pouco as folhas de pergaminho coloridas, subisse aos altares e ao zimbório.

Nada existia na vida terrena como o sinal do perdão de Deus. E por isso todos choravam.

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A peste

Fotografia de Hamze Dashtrazmi
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Meses antes chegara ela, vinda de longe, às praias de Messina, baloiçando-se nos conveses, escondendo-se nos porões, guinchando pelo meio das cordas e por entre as frinchas das tábuas. Viera de longe e tão rápida, tão mortífera, tão devastadora nas suas múltiplas feições de aniquilar que as prédicas dos frades a vestiam como uma embocadura para o inferno. Aqueles que dela tomavam conhecimento pelos macabros pormenores trazidos na boca dos almocreves, pescadores ou mercenários vindos dalguma guerra vizinha, aterrorizavam e benziam-se.

– Glorioso mártir São Sebastião, protegei-nos contra a peste, a fome e a guerra; defendei as nossas plantações e os nossos rebanhos, que são dons de Deus para o nosso bem e para o bem de todos.

Dizia-se que em certa cidade de Aragão se metiam defuntos e enfermos numa grande cova comum e que sobre eles, indistintamente, se lançara toros e lume, ardendo os corpos e as labaredas tão alto que cresciam sobre as torres da catedral.

Narrava-se que nas vilas e aldeias do reino de Nápoles se faziam fumigações e não sabendo os vivos como lidar com as pilhas de mortos, os deixavam aos cães e estes morriam a seguir, tomados pela mesma espantosa praga, pustulentos, suados, cuspindo sangue.

Contava-se que nos arredores de Paris a fome grassava e não havendo que comer, nem quem pudesse cultivar os campos devolutos, sucumbindo uns ao furor dos inchaços, outros à negra miséria que por via da mortandade se abatia sobre todos, imperava a libertinagem, a ladroagem, a completa anarquia.

Caso de estarrecer eram os abomináveis atentados ao pudor. Entregavam-se ao deboche aqueles que, deixando de recear a lei dos homens, afrontavam as tábuas de Moisés e de tudo escarneciam, rapinando riquezas, subjugando damas, infamando a moral das indefesas almas que a Providência deixara de amar e cuidar.

Nunca, desde o Egipto de Moisés, se vira na Terra tal sanha ao Anjo da Morte. Nem nos tenebrosos dias de Job. Nunca os Quatro Cavaleiros do Apocalipse haviam ceifado tantas almas em tão escasso tempo. Exceto, talvez, no dilúvio.

Mas aí foi tudo a eito, homens e bichos e ervas, tudo limpo e de uma só vez, sem as sórdidas repercussões e contágios que desta vez dilaceravam antes, durante e depois da enfermidade. Um deus escarninho, cruel e enlouquecido permitia que a sua criação chafurdasse na sua própria podridão.

Ia-se a empurrar uma carroça repleta de cadáveres e caía-se com ela e com eles, alagado em dor e espanto. Pousava-se um pano molhado na testa ardente de uma criança e ficava-se moribundo horas mais tarde. Limpava-se para uma tina a boca sanguinolenta de um velho pai ou de uma velha mãe e ficava-se saturado de bubões. Era o fim do mundo, que outra não podia ser a explicação.

O abade de Arões seguia com o pobre dedo tremente as linhas recebidas de um seu primo, monge beneditino em São Julião de Samos. A luz palidíssima do círio mal alumiava os doestosos e funestos acontecimentos narrados: o mal subira os campos da Toscânia, escalara os Alpes, viajara nos alforges e bornais dos mercadores, descera os Pirenéus, caminhara nas sacolas e sandálias dos peregrinos, chegara a Compostela e a Finisterra, às agulhas de Covadonga e também a Ourense e às Rias Baixas. Era uma questão de tempo até que se condividisse por todas as nações e reinos da terra.

Estávamos em setembro, tempo do vinho novo, tempo dos figos e das primeiras castanhas, tempo do mel e da própole, tempo das conservas e dos celeiros protegidos, tempo dos bacorinhos e das ninhadas de pintos, tempo da paz e da concórdia. Reinava em Portugal Alfonso, filho dileto de Isabel, a santa, e de D. Denis (ou Deliz, ou Dinis). Era arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, D. Gonçalo Pereira, filho de Gonçalo Peres Pereira e Urraca Vasques Pimentel. Era abade de Arões, Basílio Mendes, filho de Mendo Garcia e de Mécia Vaz.

– Deus Nosso Senhor, tenha piedade das nossas almas. Que o Seu dedo magnânimo e todo poderoso afaste de nós e desta terra os propalados males que aí virão. E nos guarde, como guarda a porta da casa do lobo sorrateiro, de tudo quanto se sabe e de quanto se espera. Ámen!

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