O macho

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Fotografia de Viktor Cherkasov

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Duas vezes por semana vinha Nicolau Balestra a cambalear ao longo da linha do comboio, muito bêbedo, muito zangado com o governo, muito capaz de tirar o cinto das calças e de começar a espalhar amor pela casa, vergastando indiferentemente um dos dois rapazes ou uma das quatro mocinhas bonitas de tranças loiras, que a mulher parira e que em pouco ou em nada se pareciam com o pai.

O braço firme de Rosalina Pires é que o travava sempre. Um mulherão esta Pires, uma mulher de pelo na venta, uma desenrascada.

Na aldeia todos conheciam o modo de vida desta gente. No dia de Nicolau receber a jorna, havia azeite, bacalhau seco, arroz na despensa. A seguir recompunha-se a miséria, que só não era maior porque Rosalina a seu modo encontrava meios de ir buscar o dinheiro que Balestra esbanjava na bodega com os quartilhos, com amásias, com o jogo da sueca.

Nicolau era pedreiro-alvenel. Afora isso não era coisa nenhuma. Rosalina por sua conta tinha a lavoira doméstica, o gado, a prole, a casa. E não sendo pequeno o afã, quantas ocasiões tivera ela de abandonar tudo e de meter-se noite cerrada pela beira do caminho de ferro e ir buscar o homem à taberna.

Todos conheciam o proceder da matrona. Entrava e quedava-se em silêncio à porta, segurando um grosso cacete nas mãos pendidas. Nicolau assim que a via, ou alertado pelos parceiros da jogatina, agitava-se profundamente:

– Bem, meus senhores, esta é a última… É para acabar…

E saía não muito depois da tasca, de cabeça baixa, com ar de quem adivinhava o pior, não sem antes ela lhe atirar sem piedade ou pejo à cara:

– Tens-nas certinhas!

Nicolau e Rosalina Pires habitavam uma casa antiga de pedra, bastante rústica e sem conforto que se achasse, de dois andares. No primeiro ficava a loja: ocupavam-na inteiramente as cortes, as coelheiras, os toros de eucalipto empilhados, o giestal seco, o lugar húmido das pipas e das alfaias agrícolas. Era aí que estava pendurado o jugo e levantada a carroça que a junta de bois devia puxar. Em cima era os cómodos, a cozinha, a saleta, os três quartinhos. Havia também uma retrete. Tudo aninhado e esquálido, pequeno demais, sujo demais, frágil demais.

Comiam o caldo à vez, que a mesa perto da lareira era para quatro e não para oito. E rezavam o terço ao lume, um terço mastigado e triste, a maior das noites recitado pelo pai de família. A menos que Rosalina tivesse pressa. Nesse caso, era ela quem tomava as contas do rosário e impunha a disciplina às ave-marias e às santa-marias. O marido já em ceroulas e a meter-se entre os cobertores da cama, ouvia-a em sobressalto:

– Rais parta. Tenho de ir lá abaixo apanho penso para a bicharada!

– Agora?

– Tu o que queres, homem? É um instante e fica feito!

Nicolau Balestra gostava pouco daqueles esquecimentos de Rosalina. Ela ia e às vezes demorava-se. Ia e regressava com o rosto afogueado, como se tivesse estado a malhar na eira. Não raro, Balestra adormecia mesmo e acordava num repente, como se acometido pelo susto de uma alma penada ou pelo gemido penetrante de um gato com cio.

– Ó mulher, demoras? – berrava Balestra de cima para baixo.

– Já vou, homem! Estou a apanhar para hoje e para amanhã! – resmungava a Pires de baixo para cima.

Em Póvoa de Santa Cristina todos conheciam aquela canseira. Dificilmente se ignora numa aldeia a balança torta dos machos fanfarrões ou a conduta torcida das fêmeas fanchonas.

Havia alturas em que a altercação em casa destes dois se ateava como uma fogueira alta. As moças fugiam de casa aos gritos e os rapazitos ficavam no cancelo à espreita, tão apavorados quanto as irmãs.

– Ai… ai… ai – chegava a planger-se nas paredes de dentro. Era uma voz lastimosa, de pessoa surrada, em apuros.

Foi num serão desses que os militares da guarda republicana apareceram. Apareceram mansamente, a pé, com os pesados capotes e a baioneta embainhada, com a curiosidade a estalar.

– Ó Balestra! Ó da casa!

Os ais interromperam-se logo, colhidos pela surpresa.

– Ó Balestra, podemos subir?

Nicolau assomou à porta da cozinha enfumarada, a esfregar as mãos, cheio de solicitude. O que desejavam os senhores guardas? Claro que lhes assinava o visto da ronda? Oferecia-lhes até um copo de vinho e, se os senhores guardas esperassem, ainda comiam bolo com sardinhas e um bocado de pão, que se estava a cozer e não tardava a ir para a mesa.

O segundo sargento Martins declinava. Que assinasse e eles iam à sua vida, ainda a patrulha tinha muito quilómetro pela frente. Nicolau voltou-se para a mulher e declarou brutal:

– Assina aqui tu, anda lá… Senão continuas a comer, sua filha da …!

Ela, que já havia lavado as mãos, secava-as entretanto no avental. Assinou. Depois, num tom nada amigável, deu a ordem:

– Enche aqui dois copinhos de aguardente a estes homens.

Balestra foi buscá-los ao armarinho. Nas costas do seu colete de flanela, desenhada várias vezes a torto e a direito, ainda cheia de farinha peganhenta, via-se a pá do forno.

O Balestra insistia com cara de mau:

– Só assim, minha filha da …! Só assim tu aprendes…!

E serviu a aguardente aos dois da ronda noturna, muito senhor da situação e com as costas quentes.

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Questões sobre o riso e sobre o humor

Fotografia de Daniel Nebreda
Fotografia de Daniel Nebreda

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– Há precisamente cinco anos dei uma gargalhada – disse assim de repente, sem mais nem quê, o meu sócio.

– Eu há sete que o não faço – atalhou o meu outro sócio. – Sete anos, cinco meses e vinte quatro dias. Quase sete anos e meio!

Frases como estas aborrecem-me. Nunca sei o que fiz no dia anterior, sucede-me frequentemente o jamais-vu e esqueço-me de datas importantes. O meu gato, por exemplo, completou o terceiro aniversário há mais de 365 dias e só disso me dei conta na passada semana.

Sou péssimo de memória. Frases daquele jaez põem-me os nervos a bulir. Como é possível a alguém recordar-se do dia exato em que tremelicou de riso? Desconfio que os meus sócios se unam às vezes para me prejudicar, também que se prejudiquem muitas vezes, sem se unirem um ao outro ou a mim, que dificilmente me uno a quem quer que seja.

Gustavo, o meu parceiro número um, objetou.

– É muito fácil e facílimo. Dei essa gargalhada por volta das dez e um quarto no dia dezasseis de julho de mil novecentos e oitenta e oito, quando da rua dos Hoteleiros me dirigia para a do Arsenal, no cruzamento com a rua da Boavista. Vi a minha ex-mulher a cambalear de bêbeda. Penso que o amante se tinha aborrecido dela. É ou não engraçadíssimo apanhar a ex meio despenteada, seminua, aos esses, hem?

Venâncio, o número dois, confiscou-me a palavra.

– Ora. Eu não vejo qualquer problema em trazer na cabeça uma lembrança dessas. É uma como as outras. Um tipo fixa as coisas numa ordem de importância. Se o teu inimigo te quer matar com uma bomba e o embrulho lhe explode nas mãos antes do envio, tu ris-te com gosto, ou não? E há uma lápide num cemitério à espera que lhe deponhas ao pé uma rosasita. Assim nunca te foge o sentido das coisas…

Estas conversas a três lá no escritório dão-me arrepios.

Não posso afirmar que saiba a data recente em que casquinei, esgargalhei, ri a bandeiras despregadas. Ou o secreto e escarninho motivo por que o fiz. Sou daquelas pequenas almas que escancaram a boca a humor fácil de uma anedota inocente ou com as facécias do gato caseiro que nos surripia esforçadamente um bocado de carne do prato.

Não consigo escarnecer, confesso, da voz roufenha do Venâncio, nem das carranhas que o número um conserva, infantilmente e amiúde, nas fossas nasais. Suponho que os meus sócios saibam mais do que pode o riso do que eu.

Não atino com as circunstâncias exatas da minha última gargalhada. Como é possível?

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