Na sala estão vinte pessoas, devidamente afastadas umas das outras por marcas de fita colada no chão. Ocasionalmente o sistema sonoro anuncia nome e um número. O doente levanta-se e encaminha-se para o gabinete indicado. Nesse curto intervalo de tempo, os olhos circulam, respira-se fundo, inveja-se o sortudo. Depois volta-se a considerar o infinito, a ler com fastio as notícias do jornal que se tem nas mãos, a vigiar as duas funcionárias maldispostas do lado de dentro do guichê. Na parte mais próxima dos janelões, duas mulheres certamente conhecidas uma da outra conversam. De quando em quando, erguem a voz. Se alguém lhes deita uma mirada, voltam a sussurrar. A espera é paciente, resignada, sem sofrimento já.
Na fila da frente está sentado um homem forte, de cabelos lisos, muito brancos, com um casaco azul e a bengala poisada na perna direita. É, sem dúvida, um octogenário. Surpreende que esteja a mexer no telemóvel, com um dedo em riste, como um adolescente, fazendo deslizar as imagens. Os óculos do senhor forte da frente espelham o visor. Por eles vão passando mulheres jovens em trajes e poses atrevidas. As duas mulheres soltam uma gargalhada. O homem está tão absorvido que tudo o resto não parece importar.
Volta a escutar-se o altifalante. O homem endireita a bengala e com ela põe-se em movimento. As duas mulheres voltam a dar uma risada. Dura apenas o tempo que se demora a saborear uma anedota. Depois fica tudo calado, ou quase. À espera que outro nome e outro número coincidam com a nossa vida e nada mais importe.
Olhada do quinto andar a rua era toda ela chuva. Chuva miúda, persistente, escorrendo nos vidros, dos telhados, debaixo dos candeeiros, contra as pernas apressadas das senhoras que entravam e saíam na estação de metro.
Ao tipo do 5.º D apetecia-lhe dormir, dormir indefinidamente. O asfalto molhado, o som dos pneus a cortar os charcos lá em baixo, o cheiro húmido na roupa deixada negligentemente no estendal, o facto de ter recebido más notícias do hospital funcionavam juntos como um comprimido dos fortes. Ao tipo só lhe apetecia cair de borcona cama, fechar os olhos e apagar-se.
O telefone tocou.
Que porra. Quem seria? Fez um esforço sobre-humano para se erguer e aguentar nas pernas, caminhar até à mesinha da sala, apanhar o aparelho e atendê-lo.
Viu no ecrãzinhoo número sem o reconhecer. O telefone continuava a tocar, as mãos pareciam encarquilhar-se-lhe sob o peso do objeto, a chuva esbarrava-se nos vidros, um cão ladrava, o elevador estremecia nos cabos, o telefone tocou mais duas vezes e, por fim, calou-se.
Arrastando os chinelos, o tipo regressou à cama. O cinto do roupão dançava-lhe à frente, atirando-se à toa para aqui e para ali à medida que ele caminhava. Deixou-se cair na cama, puxou como pôde a roupa e respirou fundo. Era bom poder estar assim, enfiado naquele ninho como no ventre de uma mãe.
Simplesmente alguém tinha urgência em falar-lhe. O telefone recomeçou a tocar. Que martírio trágico para a humanidade terem-lheretirado o direito ao silêncio. Quantas vezes iria aquele energúmenodispositivo amofiná-lo? QUANTAS VEZES? Teria de o rebentar todo? Mandá-lo janela fora?
O silêncio que se seguiu desta feita era diferente. Era um silêncio enervado, crispado, quase com ódio. Na sua existência de trinta e cinco anos o mais parecido que tinha visto com o seu íntimo desejo de silêncio eram as pinturas de Vilhelm Hammersøi Gostaria de viver dentro de paredes assim castas e caladas, iluminadas pela enxuta luminosidade de um sol matinal, lendo o seu poemário, ouvindo Bach, Barber, Chopin, Marcello, Schubert, pintando retratos da moderna civilização, bebendo whisky.
A sua paciência estava claramente a ser testada. No mesmo instante em que se levantava o vento e a chuva parecia salpicar a varanda, o telefone voltou a tocar.
Desta vez a cólera acendeu um sentimento mais forte. Encaminhou-se para a mesinha, tomou conta do pequeno demónio e atendeu com toda a rudeza de que foi capaz.
– SIM???
– Estou a falar com o Sr. Miguel Santos?
– ESTÁ A FALAR COM O SR. MIGUEL RODRIGO ALBUQUERQUE SANTOS. POSSO SABER PORQUE ME ESTÁ A LIGAR???
Era da contabilidade do hospital.
– QUANTO?!
– Trezentos e cinco euros e quarenta cêntimos… é um valor acumulado… respeitante a várias consultas, Sr. Santos.
O tipo passou-se. Uma onda de calor atravessou-lhe a moleira, dava-lhe a impressão de que ia ter um AVC.
– PAGUEI TODAS AS TAXAS MODERADORAS. TODAS, MINHA SENHORA! MEXAM O CU E FAÇAM O VOSSO TRABALHO. NÃO ME FODAM A CABEÇA. VÃO PARA O RAIO QUE AS PARTA!
Havia num canto da varanda um canteiro improvisado onde se cingia meia dúzia de vasos com begónias. Foram lá parar os restos mortais do telefone. Pedaços de plástico e de borracha por toda a parte.
O tipo sentou-se. Empurrou o volume de uma Enciclopédia de Pintores Impressionistas para os pés do sofá. Deitou-se, puxou o cobertor. Que dor de cabeça. Era imprescindível respirar e acalmar-se. Procurou no bolso do roupão. Tirou um Alprazolam, engoliu-o e fechou os olhos.
O silêncio tornava cada móvel, o cavalete, os quadros guardados e cobertos com um lençol branco testemunhas angustiadas daquele sofrimento.
– Foda-se. Que farrapo!
La fora a chuva ensopava a tarde, reluzia por cima dos toldos e sobre o tecido dos guarda-chuvas, tornava o ar pesado, quase viscoso. Dentro as assoalhadas pareciam impregnadas pelo cheiro característico do mofo. Era de cortar os pulsos.
O tipo já praticamente roncava, anestesiado pelo miligrama do Alprazolam,quando o telefone se acendeu todo, as luzes esventrando as camadas de plástico resistente, o visor mostrando como uma boca desdentada somente metade de um número, o grilar rouco anunciando como podia uma nova urgência.
Não podia ser verdade. Era mofa. O grande cabrão não morrera, ainda tocava do outro lado do vidro, moribundo, tinhoso, servil.
O tipo só queria dormir. Estava quase lá. Só precisava de um pouco mais de tempo, quase lá, de mais um pouco…
Por fim, o cansaço faz-me dormir. Precisei de cinco dias para o conseguir. Jantei e lavei os dentes. A penumbra desenha-se no horizonte. No podcast, as palavras do locutor são exatas, informadas e tranquilizadoras:
«… a começar Poema dos Átomos; a música de Armand Amar, com as palavras de Jalaluddin Rumi, poeta sufi do século XIII; na interpretação, as vozes do iraniano Salar Aghili e do turco Haroun Teboul…».
Aos poucos os gemidos do ancião na cama ao lado deixam de ouvir-se. Deixa de ouvir-se no corredor o ranger metálico do carrinho da enfermagem. Deixa de ouvir-se a água que goteja imparável na torneira da casa de banho. Deixa de ouvir-se o bip-bip do aparelho que monitoriza a frequência cardíaca. Deixam de ouvir-se as vozes que ordenam e as que acalentam, as que suplicam e as que insultam, as que explicam e as que não compreendem, as que berram e as que ciciam, as que possuem ciência e as que têm sentimento.
Na minha cabeça, presa por auscultadores a outro tempo e a outro espaço, as vozes que cantam numa língua ininteligível fazem-me atravessar paisagens de deserto e de água. Aos poucos confundo sonho e realidade e sinto-me cair dentro de mim como um fardo num poço, como Daniel na cova dos leões, como Brás Cubas no seu devaneio mortal.
Nunca li direito o Ser e Tempo de Heidegger. Envergonho-me. Se o tivesse feito, poderia agora, neste limbo existencial, entender melhor o que significa “existir” e o que significa “pertencer momentaneamente” a um mundo a que pertenceremos sempre “momentaneamente”, dure o nosso tempo o que durar.
Vogo. O sono acolhe-me como o vazio do espaço acolhe uma rocha à deriva. Sem uma palavra, sem uma reação química, sem um suspiro, governando-me apenas por leis físicas. O poema de Rumi e a música de Amar e as vozes dos dois cantores árabes são agora um rasto na minha memória. Durmo.
Desperto uma hora depois, sacudido pela mão diligente que me há de injetar tinzaparina sódica. Os olhos erguem-se num esforço tremendo, pesam-me. Mais que eles pesa a cabeça. Sou um prego. No pontinho em que a agulha perfurou a pele fica um leve ardor. Com alguma sorte há de ficar também, de mistura, uma nódoa negra e um papo.
Oiço de novo as vozes e os nomes a que me fui acostumando nos derradeiros dias: Leopoldo, Virgílio, Júlio, Clementina, David, Eugénia, Rosa. Nomes ditos num “tu” que me desbarata, num “tu” próprio para anciãos meninos de 80 anos, num “tu” referente a corpos cansados e teimosos que insistem em retirar de si a algália e o cateter e a sinistra ventosa do oxigénio.
Sou um prego, uma cavilha, uma cabeça macrocefálica, de chumbo, que se segura sem tino. Escureceu entretanto. Penso em dormir outra vez, mas receio a sacudidela que virá (mais cedo ou mais tarde) medir-me as tensões, avaliar-me a temperatura, picar-me o dedo para ver como se comporta a glicemia, trazer-me o meio Triticum para descansar bem…
Ao invés, caminho até à sala de estar no coração do piso. As ironias entrelaçam-se. Cheira a café que não posso beber, cheira a cigarros que não posso fumar, cheira a tílias que não posso respirar. O janelão, sujo e meio baço, deixa contemplar a noite, o frenesim dos táxis, a procissão de faróis entrando e saindo e ladeando o Centro Comercial. De cada lado do vidro abre-se dez centímetros de liberdade; um aloquete impede-nos de colocar fora dele mais do que o nariz e talvez um olho; somente uma migalha de evasão, de paz, de poesia.
«Aqui os dias são todos iguais, um só, sete ou cem.»
Escrevo a frase no caderno que pedi para trazerem de casa, mas rasuro-a logo de seguida com raiva. Nem sequer me parece bonita, nem sequer genuína, nem sequer minha. Parece-me ruído, isso sim, chocalhar de pensamentos e de coração, lamechice.
Por fim, o cansaço é um preâmbulo de loucura.
Nunca na minha vida me senti tão só, tão inútil, tão impotente. Talvez regresse ao poema de Rumi e à música de Armand Amar, às vozes luminosas que não decifro de Aghili e Teboul. Talvez me atire ao Alprazolam escondido, interdito, na gaveta. Vogo. O sono arremessa-me no vazio como um asteroide pela noite sideral, do nada e atrás do nada.
Um dia emendar-me-ei quem sabe com Heidegger. Hoje, porém, ser e tempo não passam de palavras plúmbeas e espúrias, desastrosas (Leopoldo, Virgílio, Júlio, Clementina, David, Eugénia, Rosa), envoltas em cheiro de fezes e de urina, a que ninguém, nem o próprio Deus, me ensinaria a voltar.
Entrei no hospital dominado pela vertigem da fraqueza, por imagens incontáveis, em ebulição, incapazes de fabricar entre si um único pensamento. Suponho que fiz um esforço, que soube manter-me firme. O maxilar dorido. O coração acelerando. As mãos subtil, sub-repticiamente suando. Disseram-me «Coragem, João». Nos corredores as pessoas choravam. Disseram «Aqui é sempre assim». Uma covardia incomensurável atravessando-se-me nas pernas, nos ombros, nos olhos. Ainda a tempo de voltar para trás, disseram «Ela está tão fraca, João». Depois o espaço ficou curto, muito curto, uma nesga, um braço, uma unha. Depois, como quem num mergulho de apneia, respirei fundo. Depois tu. Deitada, olhos fundos, sumida, lívida, transparente, como uma lua minguante. Que tristeza tão grande.
‒ Estou no fim, João!
A doença. Essa doença maldita. Nem um ano desde que me contaste.
‒ Arrumada, João!
Os meus dedos tocaram os teus dedos magros. Os meus braços apertaram o teu corpo cadavérico. Precisei de aguentar o primeiro embate, de suportar as cócegas no nariz, de descobrir as palavras certas, de absorver oxigénio suficiente. Paulatino, um arremedo de outrora. Tão perto e tão remotos os dias em que discutíamos o Benfica, os livros, os lances da vida…
‒ Estás igual. Estás a mesma de sempre… A mesma, ouviste?
‒ Posso tirar o cavalinho da chuva…
A doença. Essa doença maldita. Faláramos dela. Sabias o que aí vinha, sabias de cor cada exame médico, cada reação, cada porção de ti que se apagaria em cada sessão de químio, cada dia de inferno que se seguiria a cada dia de inferno. Sabias como tudo seria lento e veloz, inadiável e doloroso, fatal e tristíssimo.
‒ Posso tirar o cavalinho da chuva…
Tinha-te prometido um livro novo, vários livros novos. Havia uma próxima vez para as francesinhas. E outra para o teatro. E tantas conversas para pôr em dia sobre tantas coisas irremediavelmente banais e perdidas, como a poesia e o amor e a tua paixão pela fotografia. Tinha-te imaginado com um homem decente, casada, com filhos, feliz.
‒ Ainda tens tanto para viver, ouviste?
As palavras batiam em ti como num cântaro vazio. Cavas. Grotescas. Inúteis. Batiam em ti, mesmo se procurasse (e eu procurei tanto) que não batessem. Batiam em ti de um modo absurdo, como quando as palavras batem e queríamos apenas que acariciassem, que anestesiassem, que mentissem, que mentissem com o seu láudano piedoso. Elas batiam. E eu em pânico, ao dar-me conta que queria dizer «Como pudeste tornar-te tão frágil?». Assustado com o poder sussurrar «Como pôde isto ter acontecido?». Mordendo a língua para calar todas as lágrimas que borbulhavam desde o sopé da garganta. «Como?», «Como?», «Como?».
‒ Esta doença é tramada…
E sorriste. Sorriste do modo como sorrias sempre às verdades. Como quando me disseste uma vez que «Os lençóis são o lugar onde mais se mente», porque «Enquanto o diabo esfrega um olho já o fizemos a um amante, a uma criança ou a um doente». Sorriste do modo como sorrias sempre ao desencanto e à fatalidade das coisas. Do modo como sorrias no fim de me contares sobre as tuas viagens, sobre os teus sonhos antigos, sobre um gasto supérfluo. Sorriste do modo como quando sorrias para dentro, do modo como sorrias aos pensamentos e imagens desencontradas da memória e uma profunda tolerância descia sobre ti e te aceitavas e sabias que «Tudo passa».
‒ Perdemos tanto tempo com coisas que não prestam… Olha, por exemplo, nunca disse à minha mãe «Mãe, eu amo-te!». Porquê, João?
Porque o tempo nos confunde.
‒ Porque não dizemos às pessoas que as amamos, João?
Porque o tempo nos distrai.
‒ E depois o tempo falta-nos…
Porque nos julgamos eternos. Porque nunca se está preparado para outra coisa que não o agora e para sempre. Porque.
‒ Posso tirar o cavalinho da chuva, João.
E o nariz tremeu. Cócegas, prurido, uma careta imensa. Essa doença maldita. A magreza insuportável do corpo, o crânio despido, o respirar roufenho dos pulmões, as intermitências da razão. Sabias o que aí vinha. Sabias de cor cada passo de cada passo.
‒ E depois o tempo falta-nos…
Os olhos exorbitados e tristes, tristes e exorbitados como todos os olhos que se despedem. Pequenas frases arfantes, truncadas, cheias de nostalgia, penduradas à boca como um resto.
‒ Estou no fim, João!
Essa doença que continua a doer. Mesmo depois do depois. Mesmo depois.
‒ Estás igual. Estás a mesma de sempre… A mesma, ouviste?
E tu sorriste. Daquele modo como sorrias sempre. Com infinita tolerância, como quem sabe que nunca se regressa de um encontro com a morte. Como quem sabe que ela está à espera, a uma nesga, a um braço, a uma unha. Como quem sabe que o tempo confunde, ainda agora e já. Como quem nos vê pelos nossos olhos, uma porta que deixámos de reconhecer, o elevador, o parcómetro, as ruas, o céu crepuscular…
Houve um momento na minha vida em que as expressões «cirurgia», «recobro», «cuidados intensivos», «cateter», «convulsão», «estável» e outras afins foram estranhamente próximas. Estava desempregado, mas isso não era importante. A minha namorada quis acabar tudo: eu esqueci-lhe o nome num mês.
Lembro-me é do hospital. Das zonas húmidas. Dos cheiros seguindo-nos pelo corredor como fantasmas. Das janelas gradeadas abrindo para um jardim inculto, onde gatos tristes miavam para nós com infinita tristeza. Lembro-me dos botões do elevador, das dedadas no espelho, dos restos de fita-cola onde antes teria existido um AVISO da administração. Lembro-me finalmente dos maxilares, que me doíam ao aproximar-me do quarto onde o meu pai convalescia. Lembro-me do odor intenso a cremes gordurosos, a emplastros e compressas, a óleos e loções usados na enfermaria da secção de Cirurgia Plástica. Esses cheiros ainda hoje os sinto, como sonhos complexos transbordados dalgum depósito da minha memória.
As mais das vezes sentia-me só, desamparado, alvo desse cruzar de rostos que é como o entrechocar de pedras no espaço. Sentia-me só. Desamparado. As árvores lá fora continuavam árvores, os aviões os mesmos aviões riscando o céu, a cidade a mesma cidade. E, porém, eu sentia-me profundamente desamparado e tudo era diferente, como se as árvores fossem outras árvores, os aviões outros aviões, a cidade uma estranha paisagem insuflável, tremendo debaixo dos meus olhos.
Vivida na primeira pessoa, alimentada pelo nosso coração, uma história é realmente HISTÓRIA. E, tal como sucede a uma povoação dizimada por um terramoto, por uma tempestade, por um incêndio descomunal, a minha história era já uma vida nova a recomeçar, enxertada numa existência em ruínas.
Aconteceu-me ser surpreendido um par de vezes por circunstâncias ainda mais extraordinárias do que as que vivia já ‒ até no decurso de um cataclismo se pode alcançar uma certa normalidade. Aconteceu ser surpreendido pelo lugar vazio onde esperava ver um doente abatido e traumatizado. «Complicações» é o nome que se costuma dar a este tipo de surpresas. Nunca as visitas chegam a perceber bem as causas e os efeitos imediatos das ditas «complicações», nem o que nelas há de incúria e incompetência dos serviços hospitalares, que se defendem e escondem num emaranhado vocabular, repleto de tecnicismos e impessoalidade. As visitas compreendem apenas a gravidade das coisas com duas singelas, cruas, desumanizadas frases:
‒ Sinto muito! Houve uma complicação!
Habituei-me ao vagar das horas. Ao desfilar dos pijamas e dos adesivos em cruz. Ao ar zangado das batas brancas. Ao ar insosso dos tabuleiros com massa e ervilhas. Aos gatos tristes lambendo-se entre os arbustos feios. À luz fria das ambulâncias. Habituei-me à solidão das máquinas de café. Ao desamparo dos grandes relógios do corredor. Às viagens de cá para lá na autoestrada sombria.
Havia uma médica bonita. A única boa impressão daquele lugar naquele tempo era os olhos rasgados da médica anestesista. Havia um banco comprido, de madeira, anacrónico, no meio do corredor. Uma ou outra vez nos sentámos juntos para o «ponto de situação». Era uma médica metódica, incapaz de multiplicar palavras acessórias. Para exemplificar e ilustrar o que dizia socorria-se de um bloco de notas, onde desenhava órgãos e sistemas e metabolismos e crises, com setas e sinais de movimento, como se veem nos manuais de Medicina. Tratou-se sempre por «você», embora não existisse entre nós diferença de idade. Tratou-se sempre por «você», mesmo sem ter usado a palavra «você» uma única vez. Quando pretendia conversar comigo mais a sério pedia a uma enfermeira que chamassem «o filho». Abria a porta do seu gabinete com um sorriso formal, forçado, diplomático; fazia com a mão o sinal do «entre», do «sente-se», do «oiça-me, se faz favor». Começava sempre (começou sempre) por um «receio não ter boas notícias». Lembro-me que o desamparo era maior junto da médica bonita. Lembro-me de a minha cabeça vogar à toa, aturdida pelos prefixos e sufixos atarraxados a palavras dolorosas, meio enigmáticas, totalmente desconhecidas… Lembro-me de pesquisar, de ver dia após dia dissiparem-se os últimos farrapos de inocência. Vivida na primeira pessoa, alimentada pelo desespero, todas as histórias se tornam cicatrizes, cicatrizes indeléveis e imortais…
Certo dia, quando atirava a cabeça para dentro das mãos, como se atira uma bola de basquetebol, quando penava no mesmo banco anacrónico a meio do corredor, quando esperava que as lágrimas renunciassem ao ofício fácil de saírem da toca obscura, sentou-se na outra ponta um dos sujeitos de pijama e robe da ala norte. Olhei-o por entre os dedos, apanhado pelo desconforto da sua presença. Era um homem de meia-idade, como o meu pai. Um homem com um horroroso penso a meio da garganta, franzino, barba mal aparada, farripas desgovernadas e oleosas, olhar vazio, alma caída sobre uns chinelos comuns de quarto. Senti ímpetos opostos: levantar-me, ficar, cumprimentá-lo, esperar que fosse embora… Na verdade tinha uma vaga ideia do indivíduo. Alguém me dissera algo sobre ele não «bater bem da cabeça». Não pude confirmá-lo. O facto é que o nosso silêncio, o seu olhar vazio, o mútuo desconhecimento, o tê-lo na outra extremidade do mesmo banco curto e anacrónico tornava o instante demorado e embaraçoso. Inesperadamente ouvi estas palavras perfeitamente inesquecíveis:
‒ Não faz ideia das saudades que eu tenho de comer uma maçã!
Endireitei a cabeça. Julgo que o tronco também. Tenho a certeza que todo o meu ser (de alto a baixo) se endireitou. Considerei o homenzinho com surpresa, estupor, perplexidade. Considerei o curativo sobre a laringe, o olhar espetado contra a luz magra do outono, o robe de malha impregnado de todos os odores que faziam daquelas quatro paredes enormes um território devastador.
‒ Não pode comer maçãs?
‒ Pois não…
Seguiu-se um silêncio duplamente comovido. Infeliz.
‒ Pois não… Há dois meses e meio que não provo sólidos… tiraram-me um cancro… nem sequer fumava muito, sabe?… agora não posso comer coisas duras…
Licenciei-me em Línguas e Literaturas, venci prémios escolares e literários, fui aclamado em comícios políticos, assinei ensaios, fiz pós-graduações, dei aulas durante a centenas de alunos… Era ali, contudo, um osso lascado, um pedaço de tijolo, uma coisa inerte. Não pude erguer uma só palavra sábia, razoável, de conforto.
‒ Passo bem sem as outras coisas… mas das maçãs, não faz ideia! Sinto cá umas saudades de comer uma…
Nada pude dizer. Pela primeira vez na minha vida percebi na boca, na cabeça, nas entranhas, uma voragem de palavras e pensamentos. Incapaz de dizer, como hoje sou incapaz de calar: o homem, sempre com o mesmo olhar vazio, sempre com a mesma tristeza, leve como empalhado, levado pelo mesmo vento silencioso que o trouxe, foi-se afastando pelo corredor, passo lento, cada vez mais frágil, cada vez mais gravado na memória.
O meu pai regressou a casa após um mês e um dia de internamento. Do sujeito pouco pude apurar depois disto, sequer o nome, sequer o resultado da sua luta. Penso muitas vezes na maçã que lhe apetecia, na maçã que desprezamos dia após dia, enquanto nos distrai uma multidão de coisas inconfessavelmente estúpidas, superficiais, inúteis. E sei (há sempre uma lição, com sublinhado, no final das melhores histórias) que uma vida completamente nova irrompeu em mim, nascido em algum baldio da alma, vinda pela boca de algum anjo da guarda: quem sabe, quem sabe…