Em março o vento subitamente mudou. Sobre a ilha pôs-se a alastrar uma cortina de pó tão espessa que por ela se podia olhar diretamente o sol. O ar tornou-se insuportavelmente seco e sujo, cansando e ferindo o pouco verde dos catos e dos arbustos, entre os quais se via o sulco e às vezes o corpo dos lagartos negros que aí habitam.
Lanzarote ficou coberta por essa neblina de africanas areias durante um mês. Os naturais não sabiam a que santo ou a que deus suplicar, ou com que demónio negociar, o fim da provação. Não faltava quem predissesse que todos acabariam sepultados, vivos ou mortos, debaixo do tenebroso e prolongado calima que não dava mostras de terminar.
Um eremita de nome Hilário, já no fim da sua vida, disse:
– Abençoada é esta terra, pois nem aqui o mal tenteia as suas raízes!
Havia nas palavras de Hilário orgulho e amargura. Cinquenta anos antes havia ele plantado uma figueira e nela não colhera um único fruto. Velho, embrulhado em andrajos, feito de pele e osso, insistiu:
– O diabo tem medo desta ilha. Aqui os vulcões limpam com fogo e lava as avarentas coisas dos homens, as areias lavam os olhos cobiçosos, o sal extermina o que possa sobrar dos nossos pecados.
De novo se percebia júbilo e tristeza na sua fala. Os que os escutavam, porém, asfixiados pela nuvem vinda do deserto, não sabiam escolher se tamanha era a maldição de se ser puro, se enorme a fortuna de se ser desgraçado.
No leste da Escócia, em Aberdeen, o vento e a chuva são infalíveis nesta altura do ano. Um e outra costumam fustigar as janelas a maior parte do dia, razão por que uma das grandes necessidades aqui é o bocado entre turnos do trabalho, ou então à noite, que se passa ao lado de um par de canecas altas de cerveja, chips e caraoque. Os pubs existem por toda a parte, muitas vezes porta sim, porta sim.
Nélida viajou de Espanha para estudar os artefactos e incisões nas rochas na aldeia de Rhynie e para rever e documentar-se sobre as maravilhosas, antiquíssimas e enigmáticas esferas de pedra que nas últimas décadas foram desenterradas do chão misterioso desta e de outras regiões limítrofes, aumentando a aura que desde Júlio César esconde este país do mundo fácil e óbvio do saber.
Em mau inglês pediu e foi servida. A língua franca tem ainda muito que se lhe diga. Alguém pusera a tocar The Whole of The Moon numa Jukebox anacrónica. Almoçava-se, bebia-se e fumava-se alegremente em linha, em cadeiras altas, rostos desconhecidos frente a frente, nos dois lados da simétrica bancada, separados pelo exército de galheteiros, saleiros e pimenteiros e pelas inevitáveis bases dos copos. Discutia-se tudo, ao mesmo tempo, em pares quase sempre, às vezes em grupo, um falando todos ouvindo, como nos tempos comunitários das tabernas: futebol, caça às orcas, fraudes eleitorais, pornografia. Nada é mais prazenteiro que uma boa conversa, mantida à custa do álcool e de um prato de bangers and mash ou de surf and turf ou mesmo haggis, seguido de um victoria sponge cake ou de um scone com geleia.
Nélida explicou a sua paixão. Um dos comensais sorriu: para ele a História era como a Matemática, uma treta.
– Como assim?
– Vocês historiadores passam a vida a tentar dizer-nos que o passado foi assim, deixando de fora informações que nunca poderão ter e que seriam preciosas para que soubéssemos como tudo aconteceu realmente…
– O senhor exagera. A História baseia-se em provas, em testemunhos, em evidências, em documentos, caramba…
– E que importa dizer que foi assim, se não for capaz de explicar todo o mecanismo de emoções, todas as fases de um pensamento, todo o cenário de uma batalha, todas as perspetivas de uma revolução, toda a verdade escondida na mentira de uma omissão e de uma peça a menos?
– Meu caro senhor, isso é como o paradoxo de Tarski.
– Ora, explique lá!
– Qualquer coisa como isto: entre o zero e o um há todos os números. Se os números são infinitos, então será logicamente impossível avançar de um número para o outro. E, no entanto, veja: tenho aqui um pedaço de pudim. – Engoliu-o – E agora tenho zero pedaços de pudim. Meu caro, a História é prática, é razoável e tem imenso charme!
Todos em volta se riram. Muito bem respondido. Pediu-se uma rodada de Belhaven para celebrar. Nélida recusou. Agora só o café.
Quem assistia sem participar olhava o céu fusco, de uma cor esverdeada e suja, que caía sobre os telhados e sobre a marina. Ao longe, um navio de carga descia a Edimburgo ou a Newcastle. Também ele parecia cheio de sono e sem vontade de tagarelar.
Depois de bater o portão com estrondo, fá-lo todos os dias à mesma hora, o homúnculo põe-se a abrir e a fechar a portinhola da caixa do correio (mesmo ao fim de semana, especialmente ao domingo); a seguir demora-se a escolher as melhores tabuinhas para cortar com a serra elétrica.
Dá-lhe um grande prazer multiplicar o ruído, por causa dos vizinhos. Por via dele, usa as máquinas tanto tempo quanto possível, repetindo o som do corte, a que se segue o zumbido da lixadeira, o som da plaina e, finalmente, o som do compressor para a limpeza do cimento. Trabalha num barracão improvisado, que cercou de malhasol e de uma serapilheira verde.
Adora trabalhar no patiozinho, com o seu barrete ridículo enfiado na cabeça e vir de quando em quando espiar a rua, porque se persuadiu de que o espiam.
As tabuinhas empilha-as num bidão de plástico. Ninguém lhe oferece grande coisa por elas, por isso também as não vende. Ocupa-se e pronto. Detesta os vizinhos e os vizinhos detestam-no. Mas pronto, é um artista!
Quando a mulher, farta dos seus ofícios facinorosos, solta um grito de ordem, o homúnculo para tudo, recolhe as tabuinhas e, quase choroso, vai ver o que se passa com ela.
– Desliga-me essa merda, seu maniáco!
Ele desliga. Deixa tudo limpinho e vazio. Recolhe a serapilheira verde, enrola a malhasol, guarda as máquinas, empurra o bidão e o compressor para o interior mofento da arrecadação, diz «Já vai, já vai», satisfeito com a sua quota-parte de ódio, feliz como um cachorrinho briguento, feio e inofensivo.
– Anda para dentro, seu maniáco!
Então, o homúnculo vai. Volta a abrir e a fechar com estrondo o portão da vivendazinha. Volta a abrir e a fechar a portinhola da caixa do correio. Está tão alegre consigo mesmo que, por instantes, se esquece de que na sua vida nada cabe de belo, sensível ou dignificante.
A mulher assoma a uma janela, exibindo um par de olhos coléricos, como quem faz um derradeiro aviso.
O homúnculo estuga o passo, sobe o curto lanço de escadas e sem um pio mais encafua-se debaixo da asa protetora. Silêncio total: nem pensar em falar alto, encarar ou desafiar a autoridade da casa! Só pensa nas suas tabuinhas empilhadas, polidas, envernizadas. É um artista. Ninguém oferece um tostão por elas ou por si. Mas pronto. A história da humanidade coleciona injustiças destas. O homúnculo já nem se importa.