Páraic O’Reilly

Patou Ricard
Fotografia de Patou Ricard

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Dezembro verte uma fina camada de vidro sobre as casas. Em toda a parte doem os nós dos dedos e os ossos. Páraic levanta as golas do sobretudo e sai da taberna. Na Irlanda, a lua cheia é neste mês uma presença transfiguradora: os telhados e chaminés húmidos das aldeias, os bosques e rios atafulhados de velhas divindades mágicas, os promontórios cheios de espuma lá em baixo, tudo para onde o nosso olhar se dirige espelha uma majestade que as palavras não sabem dizer, tal como acontece nos sonhos. Páraic vê nessa iluminação (e em nenhum outro lugar mais do que nela) a presença antiga e visceral de Deus. Não o entendem.

Desde que abandonou o mosteiro (porque foi monge este Páraic O’Reilly), escreve, bebe e às vezes ensina. É vagamente o que se imagina ser um poeta e sem dúvida o homem mais só em todo o condado de Clare nesta noite solsticial de vinte e três, ou vinte e quatro.

Emborcado o último gole da última cerveja em Killarney, toma a resolução. Vem caminhando perpendicularmente ao bojo negro da Catedral de Santa Maria, onde os coros locais ensaiam já, ou ainda, cânticos de louvor ao que nasceu e ao que há de nascer nesta data. Páraic mete-se no carro e arranca para norte. São duas horas e meia, a andar bem, mas vale a pena.

Aqui viveu a infância, aqui vive ainda a melhor parte de si. Páraic sente o formidável cheiro do mar misturado com o do campo. Ardem-lhe os olhos, a garganta também dá sinal de si. Não será por muito tempo. Encontra-se pertíssimo das falésias de Moher. A meia-noite não tarda. Calculou com minúcia cada etapa da viagem. Abandona o automóvel num estradão, espiado somente pelo olhar atónito das corujas, e avança em passo firme até ao extremo do penhasco onde ergueram a Torre O’Brien.

O revérbero lunar nas águas do Atlântico hipnotiza-o. A beleza das coisas não pode provar senão a magnificência do Senhor. Os homens deviam contemplá-la assim, amá-la sem limites ou subterfúgios. De nada serve rezar se não se compreende o encantamento da perfeição divina. Desde que abandonou a condição de monge, foi-lhe ministrada por completo a lição mais dolorosa da sua vida: os caminhos do Senhor são, não apenas insondáveis, como sobretudo paradoxais. É um eremita, um pária, e conhece melhor do que ninguém o significado da busca de redenção, agora que passou à vida secular e se sente odiado por toda a gente.

Lá ao fundo as ondas fosforejam, o vento glaciar empurra-o, todos os seus sentidos o impelem a seguir em frente. Liscannor oferece passagens excecionais para o outro mundo: um passo avante e será um salto, duzentos metros de voo e o fim de todo o seu suplício.

Mas é, então, sugado para o âmago de um círculo de fogo. À sua volta, à meia-noite em ponto, uma claridade terrena acende-se como por milagre. São fogueiras altas, deflagrando desde as escarpas de Doolin, a norte, até aos promontórios de Baile an tSéipil, a sul. Páraic ouve, de chofre, um cântico levantar-se, nascido na garganta de centenas de mulheres que ali de súbito, será um prodígio, surgem do meio das trevas, vindas do nada.

É uma festa pagã, um ritual de que ouvira falar uma vez há muito, mas em que não acreditara. Talvez em honra de Dagda (deusa da sabedoria), ou de Fand (deusa do mar), ou de Tan Hill (deusa do fogo), ou de Arianrhod (deusa do lar), ou quem sabe de Aine de Knockaine (fada do amor e da fertilidade). A vozearia multiplica-se com o rufar de tambores e guizos e ululantes saudações ao inverno que chega.

As mulheres dançam frenéticas, percorrem o manto esverdeado do litoral e atiram os braços à lua cheia. Depressa engolem na sua roda Páraic, apertam-no contra os seios e as coxas, beijam e acariciam-no. Trazem-no de volta à vida para que nelas produza a vida. Esta, insuflado por uma espécie de êxtase orgíaco, cumpre. Cumpre com todas as suas obrigações, não sabe como, nem com quem. Dizem que nessa noite gera setenta filhos.

Evidentemente que as lendas mentem. Do sémen de Páraic O’Reilly vêm ao mundo, quem sabe, sete, três, um filho, talvez nenhum. Setenta, juram por cá.

E que diferença faz?

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Candelárias

Fotografia de Christophe Kiciak
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Na véspera do dia 2 de fevereiro do ano de 1309, a cidade de Bolonha engalanou-se para a Festa das Candelárias. Por toda a parte, não só nas igrejas, erguiam-se círios e velas em honra de Nossa Senhora da Piedade. Círios e velas malcheirosos, feitos de unto de porco, pelos quais se pagava o equivalente a uma de vinte partes de um gibão. Era domingo, haveria a procissão de atravessar solenemente a Piazza Maggiore, mesmo debaixo do nariz do Conde Roberto.

Mas os estudantes universitários estavam descontentes.

Depois de sucessivas queixas ao reitor, a quem chamavam «O grande sovina», acusando-o de cobrar exorbitâncias pelos estudos (pela collecta) e de não encher as lareiras da universidade, além de ser conivente com os arrendatários do burgo, também eles escandalosamente apostados em extorquir os pobres rapazes vindos de fora, alojando-os aos magotes em pequenas divisões frias e escuras, decidiram protestar.

Logo que ecoou o sino de São Petrónio, entraram em quantas igrejas puderam, pondo a arder todas as preciosas e caríssimas velas de cera que nelas encontravam. Era um desperdício de luz, um exagero. Pecado extraordinário esse de alumiar o interior cavernoso onde a fé buscava muitas vezes sem esperança o sol divino.

Não pensava assim um dos sacristães da igreja de Santa Filomena.

Furioso, pôs-se a apagar o espalhafato das pequenas labaredas no altar-mor. Mas logo outras, dezenas, centenas, se acendiam nas laterais. Vinha soprar também sobre elas, mas imediatamente outras deflagravam na sacristia, na abside, no interior dos confessionários. Desembainhou o punhal, feriu um dos estudantes, logo foi cercado, manietado, socado. Houve gritos, vieram em seu socorro outros acólitos. Ninguém sabe em que parte do templo o grande incêndio principiou.

Nessa manhã, antes mesmo de o sol nascer, uma imensa cruz de fogo ergueu-se aos céus, consumindo retábulos, tecidos, relíquias, afugentando pelas portas de San Vitale e de San Donato os criminosos aterrorizados, atraindo pelas mesmas portas mesteirais, camponeses, forasteiros estupefactos.

Repicaram os sinos da desgraça.

Era uma ironia atroz: a igreja da patrona das trevas transformada num braseiro, a cidade engalanada para a festa das luzes caindo num assombro incontido, como se em vez de amanhecer, ali anoitecesse.

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