Perdão divino

Fotografia de Thierry Boitelle
.

No ano de 1317 morreram nos curtos dias do mês do fevereiro o abade de Saint-Michel e três dos seus frades. Sujeita ao luto, ao rigor das chuvas intermináveis do inverno, à fome prolongada, ao medo de alguma incontrolável fulminação divina, o mosteiro manteve-se numa penumbra obstinada até fins de março. Fecharam o scriptorium e a sala do capítulo e os monges permaneciam quase todo o tempo em oração, encerrados nas suas celas, meditando na calamidade imensa que se abatera sobre o mundo sem poupar os próprios servos do Senhor.

Mas uma manhã o sino, empurrado por uma brisa amena que juntava a respiração do mar e os perfumes das flores, das ervas e da terra seca, começou a tocar sozinho. Os frades saíram para o claustro e para os jardins, atravessaram os pátios iluminados pelo clarão das magnólias, voltaram a olhar para a luz benévola onde o canto dos pássaros parecia sussurrar a própria voz do Criador. Tinha passado a Quaresma, era o domingo da Ressurreição. Nunca até aí os meandrosos caminhos da Providência lhes haviam parecido tão bem explicados.

Abriram os pesados portões e as leves janelas de vitrais em forma de treliça. Deixaram que o ar morno se passeasse pelos corredores, lavasse as escadarias empoeiradas, erguesse um pouco as folhas de pergaminho coloridas, subisse aos altares e ao zimbório.

Nada existia na vida terrena como o sinal do perdão de Deus. E por isso todos choravam.

.

Candelárias

Fotografia de Christophe Kiciak
.

Na véspera do dia 2 de fevereiro do ano de 1309, a cidade de Bolonha engalanou-se para a Festa das Candelárias. Por toda a parte, não só nas igrejas, erguiam-se círios e velas em honra de Nossa Senhora da Piedade. Círios e velas malcheirosos, feitos de unto de porco, pelos quais se pagava o equivalente a uma de vinte partes de um gibão. Era domingo, haveria a procissão de atravessar solenemente a Piazza Maggiore, mesmo debaixo do nariz do Conde Roberto.

Mas os estudantes universitários estavam descontentes.

Depois de sucessivas queixas ao reitor, a quem chamavam «O grande sovina», acusando-o de cobrar exorbitâncias pelos estudos (pela collecta) e de não encher as lareiras da universidade, além de ser conivente com os arrendatários do burgo, também eles escandalosamente apostados em extorquir os pobres rapazes vindos de fora, alojando-os aos magotes em pequenas divisões frias e escuras, decidiram protestar.

Logo que ecoou o sino de São Petrónio, entraram em quantas igrejas puderam, pondo a arder todas as preciosas e caríssimas velas de cera que nelas encontravam. Era um desperdício de luz, um exagero. Pecado extraordinário esse de alumiar o interior cavernoso onde a fé buscava muitas vezes sem esperança o sol divino.

Não pensava assim um dos sacristães da igreja de Santa Filomena.

Furioso, pôs-se a apagar o espalhafato das pequenas labaredas no altar-mor. Mas logo outras, dezenas, centenas, se acendiam nas laterais. Vinha soprar também sobre elas, mas imediatamente outras deflagravam na sacristia, na abside, no interior dos confessionários. Desembainhou o punhal, feriu um dos estudantes, logo foi cercado, manietado, socado. Houve gritos, vieram em seu socorro outros acólitos. Ninguém sabe em que parte do templo o grande incêndio principiou.

Nessa manhã, antes mesmo de o sol nascer, uma imensa cruz de fogo ergueu-se aos céus, consumindo retábulos, tecidos, relíquias, afugentando pelas portas de San Vitale e de San Donato os criminosos aterrorizados, atraindo pelas mesmas portas mesteirais, camponeses, forasteiros estupefactos.

Repicaram os sinos da desgraça.

Era uma ironia atroz: a igreja da patrona das trevas transformada num braseiro, a cidade engalanada para a festa das luzes caindo num assombro incontido, como se em vez de amanhecer, ali anoitecesse.

.