Ingrid, alguma verdade é ainda possível

All i have is this picture in a frame (Rolland Flinta)
Fotografia de Rolland Flinta

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Ao entrar no aeroporto de Arlanda, de regresso a Paris, pude constatar uma vez mais o primoroso sistema de organização de transportes sueco. Em muita da sinalética espacial lê-se a palavra hub, que significa grosso modo coração de uma rede de comunicações, viárias, aéreas, marítimas, mas no caso também digitais, cibernéticas, por satélite. Os suecos, como todos os povos do norte da Europa, viajam muito, viajam depressa, viajam com conforto e dentro dos horários. Nada que me tivesse apanhado de surpresa. Mas sobretudo viajam discretamente, desatentos aos parceiros de banco ou de carruagem. Usam ostensivos e poderosos headphones que lhes concedem o dom do ensimesmamento ou, aos meus olhos talvez, o terrível autismo que é a capacidade de ninguém trocar palavra com ninguém durante, digamos, uma viagem de duas horas…

Quando comentei com Ingrid esta caraterística tão luterana, espantou-se que ficasse muito admirado por “ser assim na Suécia”, porque julgava que era assim em todo o mundo civilizado. E não via nesse individualismo um sinal de frieza, antes de emancipação.

– Desde o período da fome, ou talvez mesmo antes, ninguém se mete na vida de ninguém. Não toleramos sequer a ideia de que alguém se intrometer na nossa vida, ou muito menos que nós nos intrometamos na vida de alguém…

– Mas, e se alguém, por exemplo, precisar de uma palavra amiga?

– Então, deve marcar uma consulta no médico… percebes?

Ocorreu-me que num país como Portugal esta convicção pudesse ser interpretada como um feroz sinal dos tempos modernos, muito distante daqueles dias em que era possível assistir a uma animada conversa entre vizinhas à varanda, ou a um ternurento oaristo junto a um carro de feno. Mas ocorreu-me também que em Lisboa, numa estação de metro, nada é diferente do que acabo de assistir neste país belo e frio.

– Ingrid, sou de uma região onde ainda é possível despoletar um colóquio animado com um perfeito desconhecido, a propósito do tempo que faz, sobre uma notícia lida em voz alta no jornal, ou por causa de um gato que sai disparado do interior de um talho com um pedaço de fiambre na boca…

Ingrid ri, ri com vontade do meu gato sorrateiro afiambrando a sua oportunidade, como um desses vadios que rondam os cais de todas as cidades de mar. Mas presume anacrónica, para não dizer improvável, uma vida urbana capaz de reunir ao mesmo tempo universidades, hospitais, bares, cinemas, teatros ou museus e gente que sem mais nem quê se volta na cadeira de café e pede ao senhor da mesa ao lado para tomar parte num coro de protesto contra o governo ou contra o árbitro de futebol tendencioso…

– Garanto-te que no Norte de Portugal não é nada estranho que duas pessoas, que nunca se viram em toda as suas vidas, nem se conhecem de lado nenhum, possam entabular uma saudável cavaqueira sobre o assunto mais inesperado e mais banal que possas imaginar. Chegarão por certo, e no andamento dessa conversa, a partilhar intimidades…

– Não posso acreditar!

E di-lo num inglês que traduzo mal, porque deveria antes verter num NÃO POSSO  ACREDITAR!

Explico o significado afetivo da palavra cavaqueira, intraduzível como tantas palavras que, retendo alguma semelhança com outras palavras, não significam exatamente o mesmo. E ao detalhá-lo com pormenor, com recurso ao folclore bairrista de uma cidade como Porto, Braga ou Guimarães, dou-me conta da espécie de criaturas proto-históricas com quem me imagina convivendo diariamente esta bela loira de olhos azuis, e que agora me ouve desfiar peripécias da minha terra como extraídas de um alfarrábio das Mil e Uma Noites

– Compreendo que as coisas aqui tenham evoluído tremendamente. Basta ler os contos de Selma Lagerlöf ou de Stig Dagerman, ambos nascidos na província, para percebermos o avanço da secularização na Suécia, da capital para a periferia…

– Secularização?

– Sim, secularização de uma sociedade, que era ainda há pouco mais de um século profundamente dependente da agricultura e das tradições… Olha, ainda não há muito li as memórias de Tomas Tranströmer e ele di-lo exatamente nesses termos…

– Bem, julgo que não teria esta conversa com o Lasse ou com muitas outras pessoas que conheça, João. Embora respeite a tua paixão pelo medievalismo, não creio que a Suécia se tenha propriamente esvaziado de espiritualidade… Ou de religião… Pelo contrário, somos um país cheio de múltiplas crenças em pacífica convivência…

Sim, sim, sim! Agrada-me discutir factos, apreender ideias, pôr à prova a verdade das minhas próprias convicções. Ingrid, uma jovem professora de Malmö em trânsito por várias cidades da Escandinávia, seduz-me profundamente com esse seu perfume de saber nórdico, que sempre se apõe e nunca se impõe, igual a um avô, ou a um amigo, que nos ralha sem jamais levantar a voz. Mas preocupa-me que esta geração de europeus, ofuscados pele denominador comum da americanização (outra forte palavra esgrimida entre nós), não seja capaz de albergar o antigo, o autêntico, o tradicional, nem esteja predisposta a preservá-lo das múltiplas invasões que o ameaçam…

– Falas dos chineses, dos islâmicos, dos indianos ou dos africanos?

– Ingrid, falo somente daquilo que não é capaz de dialogar connosco! Daquilo que invade a Europa e não a respeita!

– Dos chineses, dos islâmicos, dos indianos e dos africanos, portanto?

— Penso que entre eles haverá quem possa significar uma ameaça à Europa, sobretudo os extremistas, como se tem visto! Mas prefiro não designar grupos, porque sabemos que isso é uma questão complexa e provavelmente mal delimitada…

— João (e delicia-me o esforço de ditongar a palavra Joau), existe preconceito e é esse preconceito a verdadeira ameaça àquilo que chamas de “integridade europeia”. Se é que há uma “integridade europeia”.

– Corro o risco de ser mal compreendido…

– Porque o Breivik fez o que um dos teus terroristas não foi capaz, certo?

Sinto-me cansado. Viajamos para o Parque Nacional de Dalby, num Volvo de última geração, devidamente credenciado por uma entidade independente, a quem cabe a responsabilidade de zelar pelo bom funcionamento de um sistema que preconiza a segurança como prioridade absoluta. E, no entanto, sinto que é esta segurança que não deixa ver ameaças ideológicas e, decerto também económicas (que Diabo, como não falar delas, se vivo num país cheio de dívidas), espreitando já dos nichos dos bairros operários das maiores cidades de uma das melhores nações do mundo. Ou começo a duvidar de uma qualquer minha paranoia (e quando digo minha, digo nossa, do sul).

– Admito que precisamos de prestar algum cuidado em relação a grupos de estrangeiros muito específicos… Mas a alma deste país é a tolerância. E a tolerância é uma conquista que não se pode desperdiçar de qualquer maneira… Compreendes?

Compreendo, evidentemente. Mas eu não disse outra coisa, nem penso noutra coisa desde que iniciámos esta curta viagem para sul. Pelo que volto atrás para clarificar, para impedir males-entendidos.

– Sou profunda e sinceramente aberto à convivência com outras culturas, aliás muitas vezes desafiei a minha gente a respeitar a diferença e calar anedotas e comentários racistas… Mas não me sinto tranquilo neste momento, em que pessoas vindas de fora não respeitam as leis estabelecidas por séculos de luta e apuramento ideológico, por constituições soberanas e por sã convivência das suas comunidades.

– Falas, por exemplo, daqueles que obedecem somente à xaria?

– Sim, Ingrid. Esses, por exemplo!

A minha condutora fica pensativa, faz o volante deslizar suavemente ora para a esquerda ora para a direita, acompanhando as curvas e contracurvas de uma estrada decalcada de algum anúncio publicitário. A sensação de conforto contagia, a cada quilómetro percorrido faz-nos desejar pertencer a ela para sempre, como não tivéssemos nascido senão para obtê-la e fruí-la e defendê-la com unhas e dentes. Mas isso porque nasci em Portugal e não na província de Skåne… E ao pensá-lo, enquanto os olhos de Ingrid se concentram na condução, dou-me conta da terrível cortina que principia a remover-se diante os meus próprios olhos. Porque esse conforto que me embriaga, faz-me divisar por momentos a aspiração que, sem dúvida (e outra não podia ser), divide e sempre dividiu todos os povos que existem e existiram sobre a Terra.

– Penso que a posse do conforto demarca insanavelmente aqueles que toleram daqueles que se rebelam e extremam posições…

– Desculpa, amigo, não percebi!

– No fundo no fundo, o que distingue as civilizações é a posse do conforto ou a agonia de ter de lutar por ele. Os que sempre conheceram um conforto, igual por exemplo ao que sinto aqui dentro do teu carro, não precisam de lutar em nome de nada, nem de Deus, nem de uma qualquer ideologia. Porque o conforto é o máximo a que podem aspirar na sua existência humana. Já o encontraram. Ao passo que todos os outros, os que não podem aspirar a mais do que uma desforra divina, ou a uma desforra bélica, ou a uma desforra qualquer, esses nunca poderão transigir com os afortunados. É uma questão tão simples, Ingrid…

– Tão darwiniana, queres tu dizer!

– Exatamente!

Suponho que obtive algum alívio, porque as argumentações improvisadas me deixam sempre prostrado, a meio caminho do que penso e do que gostaria de poder dizer. Mais ou menos como alguém que tivesse penetrado na escuridão de uma mina até meio do seu percurso e não sabe se deve regressar ao princípio, ou se pelo contrário deve avançar até ao fim…

Suponho, também, que no final de cada conversa me fica este desconforto. Um desconforto irritante, porventura análogo ao que sentiram os amantes da ciência após o descrédito das leis deterministas e o advento de Einstein ou Heisenberg. Falo do velho catecismo das minhas convicções, das velhas ideias feitas, que repetidas em voz alta se começam a parecer estúpidas, serôdias e incompreensíveis. E o desconforto é o resultado de duvidarmos agora de tudo.

– Achas-me uma pessoa provinciana, não é verdade, Ingrid?

– Não, amigo. Penso que és uma pessoa atenta. Talvez devêssemos estar mais atentos a tudo o que nos rodeia… seguir-te o exemplo!

– O exemplo?

– Sim. Imitar essa tua atitude inquiridora, ou inconformista!

Fico calado, observando ao largo o Atlântico, o mesmo Atlântico que conheço desde bebé, estranhando quiçá ver-me tão longe de casa. Além, as ruínas de um antigo forte, tão semelhante aos escombros que adornam a costa portuguesa, também ela permeável a milénios de itinerância e invasões. Acontece-me muitas vezes: preciso de tempo para digerir e aceitar o que é ainda provisório, rebelde e novo. Não tão novo que o não devesse ter pensado antes. Ter pensado, por exemplo, nos gloriosos séculos de escravatura infligidos por um império que nos encheu de vaidade e de igrejas. Porque tudo é relativo e cruel, quando visto e pensado à luz soberana de um ângulo diferente… E é como se prova haver entendimentos terrivelmente dissonantes nas nossas palavras.

Ingrid estaciona o carro. Sorri complacente a tudo o que em vinte minutos de caminho se disse e contradisse. Mas já as palavras voam para o limiar do esquecimento. Uma fila de visitantes aguarda a compra do ingresso, famílias inteiras câmaras a tiracolo, disfrutando do sol macio de um verão curto mas vívido e limpo. Penso nos poemas de Lindqvist, nas belas descrições que aqui, agora, se tornam carne na minha própria carne.

Agora, um mês depois, ao entrar no aeroporto de Arlanda, de regresso a Paris, pude constatar uma vez mais o primoroso contraste dos suecos com os outros povos. Seguros da sua segurança, respeitam-na em vez de a defenderem histericamente como os americanos, ou de a contestarem violentamente como os latinos, por exemplo. E tudo isso é uma impressão difícil de articular em pensamento, ou sequer em palavras.

Julgo que passamos a vida a influenciar-nos reciprocamente, sem podermos jamais encontrar o norte magnético de alguma verdade. Se fosse possível existir alguma.

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Na mesa de trabalho

The Travel Writer, (Deviant Mind)
Fotografia de Deviant Mind

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Na mesa de trabalho cabem agora somente objetos imprescindíveis. Um dicionário atualizado, a Bíblia, cadernos de sebenta, uma lapiseira e algumas canetas de pincel (de tinta preta), um cinzeiro (com a função exclusiva de pisar papéis) e um volume de poemas de Tomas Tranströmer, no lugar que foi já de Elaine Feinstein, Salah Stétié, Ian Hamilton, Wisława Szymborska, Ruth Fainlight, Anise Koltz ou Czesław Miłosz. Tenho também as gavetas apetrechadas com a subsistência: uma resma de papel, uma caixa com duas canetas de aparo e respetivas cargas de tinta, uma coleção de livros de bolso da Assírio & Alvim, uma agenda, montes de cadernos antigos (de que não fui ainda capaz de me separar) e um isqueiro elegante (capeado em pele e metal, muito elogiado por amigos e parceiros de tertúlias, quando principiava a publicar há pouco mais de uma década e o ostentava em cigarros de ocasião).

Sobre o tampo da mesa, impecavelmente arrumado e limpo (sobretudo, do pó) há também um candeeiro vermelho que me ficou dos tempos universitários, e cujo design me fascinou na época. Há ainda, por último, uma ampulheta, objeto este sem qualquer serventia, e por isso o mais casto e importante de todos. Como é pesado, imagino que um dia, se me entrar pela janela do escritório um larápio, me possa finalmente ser propício usá-lo…

Ultimamente, quatrocentas páginas de produção poética minha dividem com estes escassos objetos o retângulo de madeira. São o fruto de quase seis anos de criação e divulgação em blogue. Foram mais, mas a salamandra incinerou num primeiro instante os “devaneios”, resultado, evidentemente, de noites mal dormidas ou do álcool!

Tanta filharada junta espatifa-me a paciência. Um a um, vou-lhes passando a boca por cima e sublinhando a mercê de cada qual. Ou então riscando-lhe uma cruz, com a preciosa anotação de «Lixo», com que o cesto tem engordado, a ponto de ter também uma caixa de cartão ao lado, para acolher a rejeição. Não sou, reconheço, um crítico imparcial, ou ser benquisto da minha própria literatura. Sempre suportei mal em mim mesmo o rigor, quase despotismo, da abordagem. E tudo porque, com horror de fiscal, considero os meus poemas francamente defeituosos, em particular por causa dos erros de musicalidade, por causa de lapsos na disposição formal, ou, no pior dos casos, por causa da falta de ideia, pura e simples!

É-me penoso ler e reler-me!

Aliás, essa a minha grande inveja em relação a outros, que me confessam o prazer (e até o júbilo) de juntarem as suas coisas num livro. Porque no lado de cá da rua, também há quem saiba combinar maravilhosamente a roupa com os assessórios.

Não é o meu caso, lamentavelmente. Aliás, vem muito a propósito narrar a peripécia que em 2005 deu origem ao volume dias desiguais. Desesperado e com o ultimato do editor a fazer-se ouvir cada vez mais alto (tinha os poemas, mas não a sua ordem de sucessão), precisei de espalhar pelo soalho de um apartamento desabitado toda a minha obra, mais ou menos como fazem os polícias nos filmes de polícias com as provas de crime dos serial-killers. E foi do chão (e não do céu aureolado de alguma musa) que me caiu a lógica do livro, se alguma lógica é possível…

Sou, com efeito, péssimo a arrumar-me. Neste momento, com cerca de quatrocentas páginas, a coisa parece-se com um bazar marroquino. Há de tudo, dos poemas curtos (à laia de epigramas) a poemas de fôlego com que me atafulhei de reflexão metapoética. Enfronhado nesta feira de palavreado, procuro o melhor do melhor, alguma manifestação de génio com que sacie a fome dos meus vinte e cinco leitores e justifique horas e horas e mais horas inumeráveis de ofício.

A eliminação, porém, é dolorosa. Quer dizer, a princípio é. Porque imponho a máxima do “tudo ou nada”. Uma vez reprovada a folha, não há reciclagem que lhe valha. Nenhum poeta gosta de esbanjar vestígios de incompetência artística ou de fragilidade intelectual. Todo o poeta, pelo menos por princípio e pretensão, é divino. E também as divindades punem mortalmente. Porque também as divindades cometem fífias e delas se desgostam. E se desgostam mais das testemunhas da sua fraqueza. Pela parte que me toca, a minha divindade roça às vezes o olimpo de uma taberna.

Ato contínuo, e para não me perder mais em labirintos retóricos, direi que a eliminação age como a tempestade sobre o alcatrão: apaga-lhe os indícios da imundície. Nada, exceto a perfeição, deverá sobreviver em poesia. A lei de Darwin, no fim de contas, é também a lei da literatura! A memória do sistema, já Bloom o afirmou com todas as letras, é um processo de branqueamento contínuo, metáfora simpática para dizer apagamento. E eu antecipo-me ao tempo. Eu voluntariamente apago!

Para me compensar de tamanha empresa, faço-me acompanhar por chocolate amargo (setenta por cento de cacau). Podia ser uísque, mas julgo-me incapaz de tanta virilidade: diria como Graham Greene “I’m not Hemingway, for God’s sake!”. E o chocolate sempre é mais barato. Diga-se que mais limpo também. Diga-se, ainda, que não tão mau para a vesícula…

Não, reler-me é penoso!

E fazê-lo com um tão grande caudal de escrita será o décimo terceiro trabalho de Hércules. Cá estarei nos próximos tempos para o conseguir. Pouco a pouco, peneirando e peneirando, à cata de pepitas que, oxalá, façam do meu próximo livro um bom motivo para continuar vivo e apaixonado pela vida! Há que reconhecer: um bom poema, nascido das nossas mãos, é motivo suficiente para tanto…

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Passear o cão

Walking the dog (Jeroen Oosterhof)
Fotografia de Jeroen Oosterhof

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Saio com o cão. As noites são agora demasiado longas. Descemos a avenida sob o halo mortiço dos postes elétricos. O ar frio volteia sob o foco das luminárias, penetra cada poro do casaco. Bela fotografia: triste, mas bela. Ao fim da tarde repetimos o caminho. Ele farejando com avidez não sei que imponderados sinais, eu buscando restos de pensamentos e meditações de outras idas.

Terminado o alcatrão, entramos em linha reta pela direita num lugarejo onde sobem altos muros de pedra, sobre os quais se mantêm de pé os ferros das ramadas. Formam sobre as nossas cabeças uma armação quadrangular. Estamos na terra batida. As fontes de luz rareiam, mas aumentam em contrapartida as bátegas de névoa e com elas o doce cantar da água. Brota do alto, do cano enferrujado que sobressai de uma pedra talhada, espécie de fontanário, sobre um tanque encalacrado entre as paredes de duas casas antigas; depois flui constante ao longo de estreitos canais formados no meio de compridas lajes paralelas. À superfície nada-lhe uma cama de musgo e nenúfares. Um recanto antigo, palco noutros tempos de idílios entre lavradores e belas moças com cântaros à cabeça.

O cão conhece o caminho. Embrenha-se já na mata, num pequeno bosque que precisamos de atravessar. Galgo a pedra que divide as propriedades, no ponto de interseção dos quatro pontos cardeais. Outrora chamavam-lhe portelo de cão, aonde acorriam almas inquietas com o braseiro dos defumadouros com que exorcizavam maus-olhados e bruxedos. O som da água vai-se tornando mais distante, substituído pelo quebrar dos galhos debaixo das botas. Preciso de avançar com a lanterna em riste para não tropeçar nos sulcos profundos desenhados pela chuva na terra ou para evitar os destroços de carvalhos, faias e olmos. Há raízes emergindo, nodando formas bizarras, serpenteando o fino carreiro por onde paulatinamente nos perdemos…

Nilo fareja, corre com euforia, dispensando os rigores da visão. Estamos no meio do silêncio e do negrume. Nenhuma casa ou luz humana se vislumbra ao redor. Por momentos apago a lanterna. O frio é intenso, físico, atravessa-me os ossos, ascende em colunas de nevoeiro desde o regato mais ao fundo. Como num sonho, sinto-me entregue ao reino das sombras e dos elementos. Observo o céu. Perco-me na amplitude das constelações que se revelam num recamado de metal argênteo. Libertas do ruído de outras candeias menores, as constelações chegam em cachos cósmicas, poalhas suspensas no firmamento como pequenos cristais sobre um tapete negro de veludo. Sempre me pareceram mais limpas e lídimas as estrelas nestes meses do gelo.

Alarmado ou apenas curioso, Nilo regressa. Convida-me a prosseguir jornada. O bafo que lhe sai da boca é veemente. Espanta-se da minha quietude, do meu êxtase, da ausência de movimento. A lua, reduzida a uma fímbria de claridade, atravessa a silhueta óssea das árvores. Em algum momento das nossas vidas já vimos algo parecido. Doem-me as extremidades dos dedos e do nariz. Como num sonho sinistro, imagino o abraço monstruoso destas assombrações, do esqueleto formado pela articulação de todos os ramos descarnados procurando agarrar-me e reduzir-me à escravidão de criança surpreendida pelas criaturas da noite. Um arrepio devolve-me ao tempo e ao espaço.

Acendo de novo a lanterna. Acicatado por Nilo, forço um andamento rápido. Junto dos castanheiros a água fumega. Através da folhagem rasteira de campos devolutos, o animal corre como um louco soltando roncos de perdigueiro. Aqui a humidade é mais álgida ainda, mais negra a escuridão, mais lamacento o areão que pisamos. Mas os cheiros são também mais puros, mais soberbos, mais vívidos, mistura de excrescências silvestres e agrárias com o odor das folhas em decomposição. Estamos no meio do nada. Um quilómetro atrás, um quilómetro à frente generosas lareiras fazem subir aos telhados a malha esbranquiçada do fumo. Dentro das casas aquecidas, das cozinhas rescendentes, dos quartos calafetados e atapetados, onde o ecrã luminoso de pequenos retângulos de tecnologia apurado conectam este mundo a todo o mundo, a civilização prospera. Mil metros de distância… Mas aqui, junto à vetusta azenha desmantelada (de que sobram ao alto, até ao lintel, as pedras de granito onde a hera principiou há muito o entrançado do seu vagar), aqui no mais prístino silêncio dos campos, dos choupos, do funcho, das hortelãs, aqui onde as corujas perseguem já ratos ocasionais, aqui estamos em pleno século XIX. Sou de algum modo o último herdeiro consciente de uma civilização que se reproduziu, floresceu e declinou, última testemunha de um tempo que se fez lívida reverberação de fantasma diante da lanterna.

Os meus antepassados aqui nasceram, viveram e morreram. Guerras se aproximaram e eclodiram, armistícios se assinaram, viagens lunares e inventos extraordinários foram notícia e mudança na sociedade dos homens. Grandes artistas e pensadores impuseram novos paradigmas de beleza e reflexão nos dois séculos que me separam deste silêncio de aldeia. Mas aqui, nesta ilha que o progresso esqueceu e marginou, tudo permanece, tudo como o veria o meu tetravô moleiro a esta mesma hora, quando por uma corda conduzisse as mulas ajoujadas de sacos de farinha. Tudo igual, ou apenas mais envelhecido, e mais silencioso, e mais espetral.

O corpo treme-me de frio, mas resiste. Porque há dentro dele um fio de consciência que sabe estar a assistir a algo único e raro como seja o derradeiro suspiro de um tempo prestes a ser aniquilado pela força brutal e irreversível de outro tempo. Todos os meus mortos me acenam dos confins aonde os levou a morte. E, por isso, é belo e doloroso atravessar este pensamento todos os dias, todas as noites, com o meu cão. E, por isso, é doloroso e inconsolável regressar ao alcatrão, ao frio elétrico de todas as veredas e estradas que se avolumam para cá da casa extinta dos lavradores, onde o óxido e o silêncio selaram para sempre amplos portões de ferro.

Nilo volta. A noite é agora profunda. Volta para me resgatar ao meu próprio abismo, à espiral suicida de todas as galáxias que torvelinham na minha alma. Traz-me de volta a casa, segurando-me pela trela, ofegante e com a língua de fora, vencido pela sede e pelo cansaço, vencido pelo esplendor da revelação. Sim, as noites são agora demasiado longas. Demasiado. E ninguém, absolutamente ninguém, pode entendê-lo.

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