Os dois irmãos viveram sempre juntos desde a infância. Depois veio a Grande Guerra e separaram-se. Um foi mobilizado, o outro não. No final do outono de 46, reencontraram-se. O antigo soldado vinha perdido, com a cabeça saturada de recordações. Decidiu, por isso, viajar pelo mundo.
O outro irmão, mais velho, mancando sempre, anuiu com tristeza.
– Tonino, assim nunca mais voltaremos à infância!
– A infância de que falas está tão ardida como a madeira desses toros que vês agora em cinzas.
Despediram-se no lintel da porta, sem efusão. O outro foi a pé e de boleia e de novo a pé desde Santarcangelo, seguindo o vale do rio Marecchia até Rimini. Depois desceu o Adriático, atravessou o Mediterrâneo e entrou no Atlântico.
De quando em quando chegava uma carta. O irmão empilhava-as a todas, sem as abrir, numa caixa de medir feijão, adivinhando o que diziam. Também recebia telegramas, que lia de soslaio e que a seguir enfiava na mesma caixa bolorenta, pois era lavrador e telegrafista.
Por fim, Tonino regressou a casa. A idade atingira-o de tal modo que na aldeia ninguém o reconheceu.
O irmão perguntou-lhe simplesmente:
– Vens para ficar, ou vais continuar na vadiagem?
Deram um curto abraço e foram caminhar para os lados da colina do Castelo Malatestiano, repletos de árvores floridas.
– Podes ter visto as muralhas da China e a Amazónia, muita gente, muitas criaturas filhas de Deus, mas não viste nada tão belo.
Apontava para uma enorme ameixoeira toda branca, cujas florinhas sobre as ramagens e sobre o magnífico tronco em forma de P maiúsculo pareciam faiscar. Crescera no meio de um campo onde ambos, muito tempo atrás, haviam tido a primeira grande briga.
– Não, Fedro, nunca vi nada mais belo!
E foi como se a infância de um e de outro trepasse àquelas pétalas e, empoleirada lá no alto, dissesse coisas de inexprimível alegria.
É um mar de livros desde a porta. E a seguir a esta primeira está outra porta, para lá da qual um novo oceano de títulos pesa e alastra. Entra-se e fica-se de cabeça aluada, derramando a atenção, de alto a baixo, sobre coisas tão vagas e exóticas como num ervanário. E são elas fólios com dezenas e centenas de anos, amarelando sossegadamente num poiso quieto, títulos puídos, ultrapassados, mais do que as capas ou as folhas, pela imisericórdia das modas.
De aqui ou dali, pendulando a barriga farta, assoma Ezequiel, sempre com os óculos caídos sobre a cana do nariz e o lábio dobrado em jeito de quem pensa em contas, resmungando coisas meio para dentro, meio para fora e a conhecer-nos o gosto pela livralhada, a sondar já o modo de impingir a última novidade.
Aqui perco-me em geografias e dinheiro. Compro às cabazadas. Outra coisa é que seria de espantar. O alfarrabista é um tipo de homem misterioso. Nunca diz como consegue o impossível. Porém consegue-o. E o impossível é o pretexto para fazer chegar mais longe a sua magia. Ezequiel é, por isso, uma espécie de feiticeiro, com quem sustento uma relação com tanto de amigo como de nevoento. Talvez um dia me venha a convencer de ele que é apenas um homem gordo, habilidoso, fanático das primeiras edições.
Apareço-lhe à porta por causa da última edição de Herberto Helder, aquela coisa que veio numa semana e esgotou.
«Esses fideputas da Assírio fizeram três mil e estão a tratar de meter fome ao povo para se atirarem a uma edição maior. O gajo não publica há quase dez anos… O que é que esperava?»
«Mas ó Ezequiel. E se a coisa não é reeditada?»
«Mesmo que seja? Já não é a mesma coisa. A primeira edição é sempre a primeira. A segunda vale metade ou nem isso. Não digo agora, mas no futuro… Mas não se preocupe que ela volta…»
«Está bem, mas isso é você que o diz. Eu queria era o raio do livro. Importa-me cá se é primeira ou segunda edição.»
«Deixe estar que qualquer dia começam a aparecer-me na loja coisas em boa estado e eu guardo-lhe uma! Em contrapartida, olhe-me esta beleza!»
E logo as mãos papudas puxam uma edição encadernada de doirados e capa dura do Amor de Perdição. Abre-a com cuidado para fazer saltar um bilhetinho, grafada com aquela maravilhosa caligrafia do século XX, onde lê na folha de rosto:
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Para a benquista senhora Eloísa,
Pondo em cada uma destas linhas o muito que lhe quero, e que nestas páginas enxergue o quanto o insano amor pode no bem e no mal.
Seu, Eleutério Emanoel, Natal de 871
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Uma vaga tristeza apodera-se de mim. Que os livros o consigam não é razão para surpreender, de tal modo ficam impregnados de nós. O amor que lhes temos, com que os estimamos, de que lhes extraímos luz e fogo transforma-se, porém, num achado solitário e pungente quando vindo do passado, cativo numa orfandade de nomes e afetos e que se semelha a uma casa em ruínas, despojada da sua gente e da sua razão de existir.
«Acabam em tipos como eu e noutros artistas como você… não tenha pena. O que há mais por aí é lixo. Só me dói é pensar que relíquias destas vão parar às mãos erradas e ficam entaladas em paredes para imbecis de cachimbo.»
Mas há ainda outra coisa que me esmaga a garganta. Ali, naquele recheio de nomes, de vidas peneiradas de filosofia, estética, poesia, amor, literatura, anda a sensação de vanidade de que não gosto nem de me acercar um milímetro:
«Eh, pá, Ezequiel. Tanto tipo que escreveu alguma coisa. Tanta obra-prima para armazém e ninho de pó. Já viu o que é ter uma vida inteira investida num logro?»
«O quê? E pensa você que estes tipos valem todos o mesmo? Há-os aí ao pontapé, tipos como os que agora andam de congresso em congresso, a papar meninas e a deitar merdas cá para fora… Os gregos é que a sabiam toda. Os gregos é que são sempre novidade… Não se fez mais nada depois deles. Prefiro um verso de Homero que todos os livros desta tropa de agora. Quando me chegam à loja com as merdas deles atiro-as ali para o monte.»
Lembra-me um sátiro este Ezequiel. Um histrião a bambolear as ideias sem pejo. E por isso, um tipo honesto que escreve duas coisas tem mais dia, menos dia de sujeitar-se-lhe ao julgamento. Tem de levar com a vergasta enquanto pode, enquanto valha a pena.
«Ó Ezequiel! Você não grama nada aquilo que se publica hoje. Já leu algum dos meus livros? Presume-os assim tão maus?»
«Vá-se foder. Se está à espera que lhe elogie os livros veio bater à porta errada.»
«Calma. Espere lá. Como a um amigo. Do alto da sua autoridade de homem de livros, acredita que se aproveita alguma coisa na minha escrita?»
Roda nos pés, faz-me sinal com um dedo para que o siga e entre os corredores do seu bazar apinhado, claustrofóbico, o nédio homem aponta-se por fim um canto onde se organizam em pilares obras de um sem número de poetas, com Píndaro, Teócrito, Safo, Homero, Alceu e outros irmãos de Antiguidade à cabeça. Salta-se de época ao ritmo das estantes. Shakespeare, Rilke, Baudelaire, Whitman, Hölderlin, Pessoa e um fio de incontáveis pérolas vem-se seguindo.
«Estes eu não vendo. São primeiras edições dos melhores. Tenho-os aqui apenas para me lembrar de lhes acrescentar outros que apareçam. Quando tiver alguma coisa que mereça caber aqui, eu digo-lhe amigo! E depois, eu vendo livros. A minha opinião não vale como a de um doutor, não concorda?»
Devo ter mudado de cor, porque a verdade que o é na sua genital aparição faz isso. Logo o Ezequiel, num jeito contemporizador de negociante, emenda:
«Tem algumas coisas de que gostei. Mas é cedo para balanços de vida. Já vê por aqui o que sucede aos bandalhos. Um tipo só é bom quando percebe que não tem nada a perder e começa a pôr nos livros aquilo de que ninguém está à espera.»
Acabo por sair com uma coisa ou duas a que os meus olhos se haviam fixado, coisas tresmalhadas e que não hesitarei perfilhar.
«Se arranjar aquilo, dê-me uma apitadela, Ezequiel.»
«Dou. E quando começar a publicar alguma coisa com jeito, também lhe dou uma apitadela. Como não tenho cá nada seu, suponho que vai no bom caminho…»
E dito isto, atira o bandulho para o interior do seu oráculo, onde não mais tenho tornado, incapaz que sou de assumir um progresso, um avanço, digamos um recuo aos gregos, uma aproximação digna de registo aos mestres. Que o são, nunca duvidei.
O vento punha-se a titilar nas ervas altas e era bom. Era livre. O sol caía em cachos na toca dos grilos e era belo e livre. Os miúdos saltavam os muros e corriam livremente pelos talhões de margaridas e era maravilhoso vê-los. O pintor compunha sem pressa o azul do mar ao fundo e o pé robusto das árvores ao perto e era muito agradável, agradabilíssimo, prestar atenção ao vento e ao sol e às crianças a voarem juntas pelo prado.
O poeta, no entanto, preferia a chuva e o silêncio. Preferia, sem dúvida, o canto mal aceso do seu carvão, a odor forte do seu tinteiro, o peso enorme dos seus versos impregnados na solene tristeza dos poetas. Era um desses homens infelizes para quem a simplicidade das coisas não faz sentido.
Quando a rapariga que vendia o leite lhe bateu à porta, com as faces cheias de rubor e o coração aos saltos, o poeta não encontrou as palavras certas para responder à saudação. Dentro de si as verdades tinham a dureza do mármore e o espontâneo cansaço de uma mesura.
A rapariga amava-o e ele sabia. Mas não era capaz de viver com a alegria ingénua de um grilo, só com o ímpeto de um tigre enjaulado. Era a sua pena e ele sabia.