Um pouco mais longe da escuridão

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Fotografia de Philip Dandee

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O maior feito da nossa vida estará sempre por escrever. Assim, como quem dispõe subitamente de uma grande soma de dinheiro e não sabe o que fazer com que ela, também assim pode qualquer um de nós encontrar-se, de um momento para o outro, na situação de precisar de oferecer uma enorme quantidade de amor. Esse será, em última análise, o grande feito que nos está reservado.

Lembro-me de ouvir há uns anos uma entrevista conduzida pelo jornalista João Almeida a António Victorino d’Almeida na Antena 2 e de escutar com admiração as carinhosas palavras que o maestro deixava ao pai, de quem cuidou até à morte e por conta de quem abandonou uma carreira em Viena, na Áustria, por ser filho único e sobretudo um filho bom. Um filho bom sabe que os pais não constituem uma parte extrínseca a nós ou de nós, sabe o quanto se lhes deve do nosso passado e do nosso futuro, o quanto se lhes deve no presente, no agora, no momento em que é imperioso esquecer o acessório e focar neles cegamente o nosso amor.

Depois do curso universitário, passei quase em simultâneo a ensinar e a escrever. Durante décadas supus que residiam nesses dois verbos o melhor de mim. Ensinei a centenas de alunos, escrevi por certo milhares de textos. E eis que, de súbito, todo esse mundo didático e literário me começou a parecer uma errância frívola, uma adoração mecânica dentro de um sistema autorreferencial, sem contacto com o mundo e sem humanidade. À semelhança de António Victorino d’Almeida e de muitas outras pessoas (quero acreditar que são muitas), de um instante para o outro, precisei de coragem para riscar um caminho absolutamente novo e de nele ter incluído – quase em exclusivo – o cuidado à minha mãe, doente oncológica.

O escritor John Updike, depois de visitar uma exposição de Lucian Freud em Veneza, corria o mês de setembro de 2005, impressionadíssimo com o que ali viu e por certo se lhe revelou, anotou: «Sim, o corpo é uma coisa hedionda, sobretudo os pés e os genitais, e não menos a face humana. A carne arrasta-nos para baixo.»

Esse corpo monstruoso, esta carne que pesa e afunda são, com efeito, a nossa maior descoberta, porque vendo-a nos outros adivinhamo-la em nós, porque antecipando-a sentimo-la a pairar diante dos olhos e não divisamos já a luminosa alegria dos raios insolentes, mas uma chuva dolorosa de fosfenos. Antes dos cinquenta começamos a duvidar da nossa idade, visto que tanto nos parece que a meninice foi apenas ontem como que a terceira idade é já amanhã. «Sim, o corpo é uma coisa hedionda»!

Cuidar dos seus velhos é o que fazem muitos dos meus conhecidos. Por múltiplas e variadas razões, os nossos pais tornam-se os nossos novos filhos birrentos, filhos dementes, trementes, indefesos, deformados pela dor, atingidos pelo rancor do envelhecimento. Num correr de cortina, juntamos aos filhos que vivem a adolescência esses filhos tardios. Ouvimos queixas e resmungos de uns e de outros, negociamos com paciência infinita, respondemos às vezes com ira, depois com remorso, depois com frustração, depois com eufemismos, com metáforas, com palavras que teimam cada vez mais em não querer coser-se entre si. Cuidar dos nossos velhos é assistir em tempo real a esse filme que nos corre e cujo desfecho conhecemos antecipadamente. Cuidar deles é aprender a cuidar de nós.

O mesmo John Upkike escreveu um verso maravilhoso que sublinhei num dos seus livros de poesia: «E a morte é séria, longa e escura.»

Talvez por isso, por o saber tão bem – e ao invés de estimar os grandes arranjos florais que alguns depositam nas tumbas, ou de admirar os choros formidáveis e o luto que devotam aos seus finados – eu prefira o riso solar e as palavras serenas de António Victorino d’Almeida («O meu pai era uma pessoa extraordinária. Tenho a enorme alegria de lhe ter dado muitos anos de vida.») e sinta, como ele, um orgulho imenso por me ter tornado cuidador de quem me trouxe ao mundo, de quem se tornou para a família um símbolo vivo de resiliência e de força, um motivo de reflexão, um exemplo.

O maior feito da nossa vida estará sempre por escrever. À distância dos anos, não consigo avaliar com rigor aquilo que de me possa orgulhar. Seguramente não creio que me habite essa aura das pessoas extraordinárias pela bondade, pela beleza, pelo génio, pela perícia ou talento numa área particular. Mas aprendi nos últimos tempos que a humildade é, também ela, uma virtude. Quase como quem esbanja uma quantidade enorme de dinheiro, ou de amor, unicamente para se sentir um pouco mais longe da escuridão.

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Questão linguística

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Fotografia de Ernst Dav

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Depois de ter assinado sete golos na mesma tarde ao West Ham, perguntaram a Edward Babanjira, jogador camaronês ao serviço do Liverpool se se considerava o melhor da Premier League. Respondeu com modéstia que não só se considerava «O melhor», como «O primeiro melhor da Liga» (literalmente «First best in the league»).

Dias depois a discussão escalou nos tabloides, quando certo responsável partidário dos tories gracejou num debate no Parlamento nem todos os deputados se podiam arrogar ao direito de possuir um domínio rudimentar da língua inglesa e levantar um estádio.

Foi acusado de imediato de xenofobia e de racismo e recebeu cargas sucessivas de acusações em todos os veículos de propagação de palavras.

De modo que, dias mais tarde, precisou de aclarar em conferência de imprensa o conteúdo das suas declarações anteriores, dirigindo-se ao jogador, ao Liverpool, ao desporto, aos britânicos e aos Camarões. Sentia-se profundamente constrangido pela indelicadeza que tivera e pedia as mais sinceras desculpas.

A expressão «Primeiro melhor» mereceu, igualmente, uma acalorada defesa da Ministra da Cultura, Mary O’ Neill, que sugeriu a sua inclusão na gramática do inglês, como reforço sintático da ideia da comparatividade adjetival.

Nós, que seguimos o caso com atenção, propomos a interessante inclusão de termos como «o segundo melhor», «o melhor do meio», «o último melhor», bem como «o primeiro pior» e por aí adiante.

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A inveja

Natureza, folha de ácer, água, Japão, Kioto, Tomoyuki Mizuta
Fotografia de Tomoyuki Mizuta

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Como naquele conto de Jorge Luís Borges em que Aureliano de Aquileia foi condenado a morrer numa fogueira, atraiçoado pelo ciúme de João de Panónia, assim Kamo no Chomei se viu enredado na maior das perfídias por conta da inveja de Katsuo Hashira, poeta rival, poderoso, incapaz de lidar com a gloriosa humildade desse eremita a quem apodava de “provinciano”, mas cujas reflexões sabia superarem em brilho, sageza e inteligência a enfadonha e aristocrata tanka que ele, Katsuo Hashira, oferecia ao xógum e aos cortesãos de Quioto a transbordar de manha, soberba e sabujice.

Murmurava-se.

Esse labrego não só pretende fazer perder neste palácio a jovem mulher do nosso senhor, a quem ministra as artes da sedução, como conspira com o inimigo, recebendo-o nas choupanas sórdidas onde pernoita e onde o informa continuamente acerca dos passos dos nossos samurais.

Dizia-se.

Kamo no Chomei compõe palavras viciosas, fingidas de sabedoria, mas acutilantes como a lâmina de uma wakizashi. Simula-se despojado e pobretanas, mas um dia – haveis de ver – governará a cidade e punirá severamente aqueles que, como nós, com justiça, dele desdenham.

Pedia-se.

O nosso xógum deve cuidar do seu jardim e cortar cerce as ervas daninhas, essas que medrando no verde livre da primavera se prendem aos pés e fazem tombar os poderosos. Kamo no Chomei merece a prisão e merece um fio de espada sobre o pescoço.

Quando os soldados do governador, subindo devagar as encostas atafulhadas de caruma e folhas de bordo, lobrigaram lá no alto uma cabana débil formigando fumo branco e ao pé dela avistaram Kamo no Chomei abstraído deste mundo, mirando com olhos ternos um sem-número de níscaros que medravam sob o tronco de uma grande árvore vestida de amarelo, duvidaram que aquele zé-ninguém constituísse uma ameaça a uma libélula, quanto mais ao senhor de Quioto.

Ainda assim, cumpriram ordens. O casebre de Kamo no Chomei foi reduzido a cinzas e o seu corpo posto a ferros.

Durante o inverno, enquanto a neve sepultava a terra com mantos sucessivos de silêncio e de perdão, Katsuo Hashira – cujas intrigas, ardilezas e femininos caprichos haviam tornado alvo de todos os ódios dentro da corte – morreu estrangulado. Aos poucos, a natureza sacudiu-se da neve e do gelo e o sol – desensarilhado das curtas noites da estação – regressou ao vigor da sua juventude, iluminando os belos renques com as cerejeiras em flor.

Tal como se viu apartado do mundo num instante, noutro instante Kamo no Chomei foi devolvido à liberdade. Não quis o cargo deixado vago por Katsuo Hashira, mas aceitou com alegria um quintalejo no cimo da floresta, perto da fonte de Iwojira.

Mais do que tudo, um homem deseja um pouco de paz e um quinhão de terra onde a morte o possa encontrar, livre e limpo de todo o lixo que a humanidade – ou parte dela – infatigavelmente fabrica e esconde no mais fundo da sua alma.

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Era daninha

Teslariu Mihai - Portuguese Carnations
Fotografia de Teslariu Mihai

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Anotados a lápis vermelho-vivo, com a instrução sumária de que fossem abertos no dia 25 de abril de dois mil e vinte e quatro, o poeta-pintor e tradutor-publicitário, homossexual e surrealista, cidadão sem papas na língua e de cabeça limpa, de sua graça Mário Cesariny de Vasconcelos, deixou uma pilha de papéis lacrados numa arcazinha imitativa da de Fernando Pessoa.

Deste, que agora mesmo seguramos nas nossas mãos e cujo rasgamento se fez com faca de aço inoxidável, acabou de extrair-se e de desdobrar-se o poema «ERA DANINHA».

Não há erro ortográfico, nem data de criação, só um manguito à Bordalo, desenhado com o mesmo carvão no final do texto.

Transcrevemo-lo para o público e devido reconhecimento.

ERA DANINHA

O António era fascista.
Deixá-lo ser.

O António lambia botas
Deixá-lo lamber.

O António entregava os amigos.
Que se vá foder.

O António perseguia os inimigos.
Havemos de o prender.

O António morreu.
Deixá-lo morrer.

O António quer voltar ao mundo.
Deixá-lo crer.

O António crê poder voltar ao mundo.
Deixá-lo querer.

O António chora com aquilo dos cravos.
O ranho seca-lhe, vais ver.

O António no outro mundo redige protestos.
Deixá-lo escrever.

Cem mil diabos carregam o António no inferno.
Deixá-lo sofrer!

Dos remanescentes textos, cujo conteúdo muito nos deleitou e em parte surpreendeu, daremos oportuna (oxalá brevemente) a cabal notícia.

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«E para quê?»

Monoar Rahman
Fotografia de Monoar Rahman

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Huldrych Fritz-Meier era obcecado pela exatidão.

O correr das palavras numa carta não poderia admitir atentados à caligrafia ou à ortografia, tal como o tempo mostrado nos seus relógios deveria não discrepar entre si um segundo que fosse; da mesma forma que – só para terçarmos os exemplos – seria absolutamente inadmissível para si errar a quantidade de coque que teria de colocar no fogão para aquecer a casa.

Várias questões o atingiam em simultâneo.

Uma delas a de determinar o número preciso de seres humanos que desde Adão visitaram o nosso planeta. Outra a de cifrar aos cêntimos o maravilhoso dinheiro guardado nos cofres do Banco Nacional da Suíça. Outra ainda a de equacionar em números tangíveis, num caderno, a idade do universo.

«Tudo tem um propósito, uma lógica, uma verdade plantada dentro de si próprio. Chama-se a isso ordem.»

Mas por muito que a inventasse, a ordem teimava em não obedecer-lhe.

Uma bela manhã de abril, depois de reclamar com o carteiro (cuja falta de pontualidade lhe inspirava um ódio visceral, quase animalesco), a seguir a uma zaragata ao telefone por conta da gramagem dos pacotes de cevada, profundamente melindrado com a progressiva dessincronização do bater das horas nas torres próximas da Igreja de São Pedro e da Abadia de Fraumünster, a janela do escritório deste antigo engenheiro aeroespacial (localizada num sétimo andar da Münsterhof) viu-o – como um moscardo cabeludo – atravessar o parapeito sem mais nem quê em direção ao vazio.

Não deixou nada escrito. Nada. Nem uma confissão de culpa. Nem um reparo à humanidade. Deixou, isso sim, o apartamento na confusão maior que possa imaginar-se, com estantes despidas, armários abertos, objetos empilhados à toa num caos digno de uma residência de universitários estroinas.

Era como se Huldrych Fritz-Meier se tivesse assaltado a si mesmo. Como se o tivesse feito com requinte de prazer e de traição.

Johann Reusser, pastor calvinista, amigo e antigo colega de escola de Meier, foi severo na despedida do corpo: «A vontade de imitar a omnisciência de Deus atinge algumas almas como uma pedrada vinda diretamente do diabo. E para quê?»

Eis uma boa interrogativa. «E para quê?» reperguntamos nós.

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Dever de vida

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Fotografia de Joe Hendriksen

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Massimo Volti amava a velocidade.

Sem ser vascolejada a vida era o mesmo que possuir certa parte do corpo e não ser capaz, por defeito, por velhice, por ausência de alegria de a erguer tão alto quanto o permitissem os vasos sanguíneos.

Na vida deve ousar-se, eis a divisa da sua existência.

Odiava todas as formas de assentimento, de obediência e de medo. E por isso esporeava os cavalos até espumarem, arriscava círculos improváveis sentado no girocóptero, atravessava com a fúria da sua lancha Ferrari V12 o intervalo das ondas de todos os mares do Mediterrâneo, derretia ao volante de um futurista Alfa Romeo C52 herdado do avô Silvano as curvas e contracurvas que desciam de Génova à Calábria.

Massimo Volti amava o risco.

Como na labiríntica lei einsteiniana que sugere a deformação do espaço-tempo pela ação dos corpos celestes massivos, assim os cabelos das beldades nas praias de Portofino e a dos pastores nos píncaros de Matera se contorciam à sua passagem alucinante.

Era um louco. Certo poeta português encomia bastante este género de grandeza buscada no estouvamento.

Um homem deve poder acrescentar ao ramerrão uma ou duas colheradas de adrenalina. Mesmo se às duas por três perde o controlo de si e o corpo, como um inseto sem asas, voa uma última vez em direção ao abismo.

Para Massimo Volti Ícaro era o único herói suportável e entendível. Sem concordar ou discordar do seu modo de vida, admitimos somente um pouco de inveja. Apenas um pouco.

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Uma estranha beberagem

Jack Jiao - forbidden-city
Fotografia de Jack Jiao

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Vencido pelos anos e por um profundo desamor à vida, Wú Mo, um dos eunucos poetas que serviam e celebraram o poderoso Yung-lo, gastava grande parte das suas noites a cogitar numa maneira boa de morrer.

Primeiro em Nanquim, mais tarde no coração da capital do império, assistira ele muitas vezes à violência e à crueldade do seu senhor. Não lhe parecia difícil conseguir a punição suprema. Difícil era poder fechar os olhos sem ruído, sem pressa, sem rancor, tal como o dia faz quando fecha as suas asas.

Pelas ruas magníficas da Cidade Proibida não deslizava senão, nesse tempo, a pouco subtil e muito trabalhada arte da louvação da casa do Ming, do guerreiro das sumptuosas sedas amarelas, do autor das gestas inumeráveis e incomparáveis que ele, Wú Mo, cantava em verso.

Mas o velho eunuco conhecia também as sombras. Para lá da luz e do luxo e do louvor havia brechas, portas mal seguras, casebres de bambu onde moravam outros velhos menos afortunados. Aí dominava-se outra língua, praticava-se outras ciências, cuidava-se de outros poderes que lograriam, num descuido, interromper a interminável subjugação de Yung-lo, a insuportável bajulação para com Yung-lo, a abominável adoração a Yung-lo.

Afeiçoou-se ao velho servo uma das muitas esposas do imperador, filha de um camponês qualquer, trazida de uma das províncias distantes para onde os exércitos e as mãos implacáveis de Yung-lo se estendiam ultimamente.

Depois das cortesias e, mais por rebuscadas alusões do que por palavras chãs, eunuco e concubina compreenderam um no outro a mesma estranha infelicidade e o mesmo propósito que a ambos envenenava a alma. Ajudar-se-ia, portanto, a deixar este mundo e fá-lo-iam em segredo, com o recurso ao recente saber que tomara ela acerca da fervura de certos grãos trazidos pelos mercadores do deserto, grãos escuros e fatais que deveriam ser esmagados até deles não sobrar mais do que um pó igualmente escuro e perfumado.

O eunuco rejubilou. Esse seria, com efeito, o fármaco do seu fim.

Tendo-os na sua posse, Wú Mo procedeu com eles como se descreveu atrás. Ferveu água e em seguida verteu-a sobre um púcaro de boa porcelana no fundo do qual jazia a delicada farinha. Mexeu-a em duas ocasiões e deixou-a recair antes que pudesse bebê-la.

Não tardou a que o forte odor da beberagem transpusesse os seus aposentos, ultrapassasse os pátios, atingisse o salão do trono e o próprio nariz imperial.

«Que cheiro é este» perguntou Yung-lo.

Conduziram à sua presença o infeliz eunuco, a quem foi imposto (como lhe impunham às vezes um poema) que ingerisse o misterioso líquido negro. Bebeu e sorriu. Morreria, morreria bem, na presença e para desgosto do maldito usurpador. Assim o desejara, assim se cumpria.

Porém, não havia ali morte alguma. Bem pelo contrário, o corpo entorpecido de Wú Mo pareceu animar-se de uma força inteiramente nova, de uma alegria inesperada, de uma juventude esquecida muito tempo atrás.

Wú Mo viveu até aos cento e cinquenta anos. É o que dizem as crónicas chinesas.

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