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Rafael Hitlodeu apanhava o metro das seis horas. Era o primeiro estágio da sua jornada diária. Quando caía num dos bancos laterais e se agarrava à estrutura metálica, sentia os olhos a arder. A luz artificial arruinava nele o velho prazer de viajar cedo e de se encontrar com o mar e com as árvores da floresta no exato instante em que o sol eclodia finalmente do seu sono.
O antigo marinheiro saía invariavelmente na mesma estação, no extremo sul da cidade. A mochila pesava-lhe cada vez mais, tal como lhe pesavam cada vez mais as pernas e a ginástica do pensamento. Mas a imagem do oceano tomado além pelo tom de fogo do céu, o fosforejar da espuma no sopé da falésia, o avistamento dos navios ao largo, carregados de silêncio, faziam valer o sacrifício.
À medida que os seus passos o aproximavam da floresta e do arfar pelágico, sob a forte impregnação dos pinheiros e da salsugem, a sua memória inchava e parecia deleitar-se com a constatação de que – como um ser vivo – se reintegrava no movimento das minúsculas esferas, das formas, dos astros, abandonando a pele ferida e morta e recobrindo-se de factos novos, de um frio renovado, de uma face de novo pura e pulsante.
Além era a ilha. Hitlodeu amava o luminoso contorno da enseada, o verde dos seus prados, do alto granito branco das suas torres sineiras. Ali era Utopia. E ele, à distância de uma légua marítima, avistava o palácio do monarca, o endireitamento das ruas, a beleza das pequenas casas construídas pelos habitantes mais dóceis, mais civilizados, mais justos que conhecera nos quinhentos e cinquenta anos da sua existência na terra.
Quanto mais perto parecia tocar-lhes, mais longínquos se afiguravam os azimutes e os costumes e as gentes insulares. Podia embarcar num ferry e ir. Mas o medo era muito. O pavor de uma deceção já não seria suportável. Na sua memória, sempre rejuvenescida, aquela ilha era o deslumbramento que o mantinha vivo.
O mundo envelhecera demais, demasiado depressa, despudoradamente. Novas ostentações de poder tinham tomado o lugar deixado pelas antigas ostentações. Guerras atrozes haviam incinerado a paz das bibliotecas e quebrado o busto dos pensadores. O otimismo e a dignidade humanos defendidos por Cristo, Confúcio, Rumi, Buda, Pico della Mirandola, Erasmo ou Thomas Moro foram-se tornando o otimismo voraz e a indignidade vil, horripilante, execrável da vozearia das repúblicas, dos senhores do dinheiro, da retórica fácil dos paladinos da filosofia hodierna.
«Quantas vezes nos deixamos enganar pelo fascínio dos sonhos incompreensíveis». Hitlodeu era um velho marinheiro português apaixonado pelo mundo. Utopia, mesmo à sua frente, seria porventura um tempo distinto num espaço diferente. Mas o velho viver dos homens jamais perdoará o que jamais aceitou e jamais aceitaria o que nunca compreendeu.
E quem nos garante que ele, Rafael Hitlodeu, reconhecesse ainda (se outra vez lhe abrissem de lá os grossos portões de ferro) o sonho formidável de uma ilha em forma de paraíso? Ou pelo menos de semente?
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