A heresia

Monge católico lendo as escrituras
Fotografia de D-Keine

.

Entre as heresias que Agostinho refutou e combateu no tratado célebre de 428, não consta aquela que se atribui ao monge galês Ciliano Ordovico (ou Cilianus Brittanicus, ou Kilian de Glyngarth) e que – será uma lenda – chegou aos ouvidos do filósofo de Hipona numa manhã abrasadora de julho, a escassas semanas de se despedir ele deste mundo.

O douto Padre de que falamos terá exclamado do leito onde jazia:

– O fogo deste dia em nada é comparável ao que há de fazer encarquilhar o corpo e a alma deste apóstata, em cujo coração e de cuja boca correm tão ímpias mentiras!

Pouco se sabe de Ciliano Ordovico. Que era um homem simples. Que era entre os povos do sudoeste da Bretanha o que Patrício foi entre os gaélicos irlandeses ou, mais tarde, Columba no meio dos pictos e os gaélicos da Escócia. Ciliano, porém, ao invés daqueles santos canónicos, descria na Santíssima Trindade, tendo acolhido muito cedo as teses de Ário de Alexandria, em particular a que negava a Jesus a mesma divindade do Pai. Sabe-se, do mesmo modo, que era inegável a sua simpatia pelas ideias de Pelágio, que chegou a conhecer na juventude, e de que cuja influência nunca se libertou inteiramente.

«Como pode uma criança nascer com a mácula de um erro que não cometeu? Que sentido pode haver na verdade de que Deus é amor e, simultaneamente, capaz de repelir parte dos seus filhos? Como pode O Todo-Poderoso considerar aqueles que, tendo nascido iguais a si em imagem e semelhança, puníveis pelo pecado do primeiro homem e da primeira mulher, ad aeternum, sem o ritual simples do batismo?»

Ciliano procurava muitas vezes a solidão das florestas e o sossego das praias para meditar.

Observando amiúde os pobres camponeses a abrir com os machados as faias para lhes retirar a casca, ou vendo passar os pegureiros com os seus rebanhos inocentes, ou contemplando as crianças a colher bagas de airela com a esplêndida alegria das crianças, ou lançando as vistas para mais longe – para onde as pequenas barcaças iam e vinham com o peixe que também Pedro e André e Tiago pescaram na Galileia – o monge galês reiterava a sua certeza de que todo o homem podia salvar-se sem mais sacramentos do que o de simplesmente imitar a Cristo.

Ainda mais: tal como os irreverentes cachorros a quem se aplicava às vezes uma vergasta e eles gemiam um instante para logo depois se juntarem de novo à mão que os zurziu, assim os pecadores, por muito grande que fosse a culpa das suas ações – resultante sem dúvida das suas existências dificultosas – teriam inevitavelmente de retornar à graça do Criador.

Entre as tribos de pagãos, chamadas não havia muito tempo de siluros, démetas, cornovii, deceanglos, catuvelaunos, ordovicos, dobunos, Ciliano espalhava a sua visão pessoalíssima do cristianismo. O Filho de Deus era um exemplo de vida, não um dogma. Cristo pediu que o seguissem e cristão era todo aquele que preferisse o bem ao mal, a simpleza à jactância, o coração leve e puro ao rancor e à ambição.

E, por isso, Ciliano ensinava e era compreendido, amava e era amado, disseminava uma fé nova no serpentear dos pântanos e no correr das planícies, erguia-a aos altos selvagens cobertos pelas névoas e pelo misticismo e pela violência dos druidas. «Não creio no inferno» era – em suma – a estranha natureza da sua heterodoxia.

Outros monges missionários batiam-lhe o pé, recordavam o fogo de Hinom a que o próprio Cristo fez menção. Mas Ciliano lia nessa passagem dos Evangelhos uma alegoria.

«Por muito esquálido ou turvo que se mostrem a razão e o juízo de um espírito, assim que este deslace do corpo jamais Deus o poderá abandonar. Assim como os camponeses lavam os couros sujos em muitas águas, assim Nosso Senhor o fará com os pecadores. A condenação eterna seria o mal extremo, porque nenhum sofrimento pode ser maior do que sujeitar matéria ou alma a um suplício sem fim. Deus é amor, meus filhos e é inconcebível que pudesse conspurcar a sua substância inefavelmente benévola com um vício tão grande. O castigo demora apenas o bastante para que o erro se transforme em sabedoria e o possa Pai Celestial ao faltoso, outra vez, recebê-lo nos seus braços.»

Correu devagar esta heresia. Quando alcançou os ouvidos benignos de Agostinho, o velho teólogo gracejou:

– Oitenta e oito foram as falaciosas doutrinas que tomámos do nosso conhecimento e do sábio conselho de outros a que Deus revelou a verdade. Mas o demónio jamais se contenta com o açoite da nossa fé. Este e todos os malditos que espalham cizânia sobre a terra sã hão de com ela ser queimados duas vezes.

Não consta que Ciliano Ordovico (Cilianus Brittanicus, ou Kilian de Glyngarth) tivesse ardido ou sido sequer obrigado a abjurar. Tampouco que a História lhe haja reservado um lugar proeminente entre os incontáveis heresiarcas.

Assinalamos somente – é o nosso dever – as suas palavras, dignas, achamos nós, de algum interesse e – quem sabe obscurum per obscurius – da melhor cristandade.

.

Logótipo Oficial 2024

O fradinho

mink, ruin, Anja
Fotografia de Anja

.

Embora estivesse acostumado à solidão, o velho frade agostinho gostava de descer ao povoado de quando em quando. Fazia-o uma vez por mês. Nessa altura saciava-se de conversa, bacalhau frito, imagens do mundo capazes, no regresso, de alancarem consigo e com o asnozito serra acima.

Era o último da congregação. O mosteiro, tomado de assalto repetidamente pelos larápios e pelas silvas, decaíra a um tal estado de degradação que havia quem jurasse que partes do campanário, da sala do capítulo e mesmo do refeitório se tinham despegado num monte de entulho.

O fradinho nunca se queixava. Ia como vinha, sorrindo, com o hábito cada vez mais puído e o corpo cada vez mais mirrado. Até que deixou de aparecer.

Os homens nesse dia prodigioso de começo de inverno puseram-se a caminho e muito a custo venceram as cordas de vegetação que se lhes ensarilhavam nos braços e lhes tolhiam a marcha. Quando lobrigaram os caboucos do mosteiro, compreenderam que nada dele se mantinha de pé. Num dos retângulos de pedras muito direitas, viram o que restava de uma antiga lareira, as paredes mascarradas entre os azulejos, um panelinho de barro com uma asa.

Onde estava o frade?

Uma revoada de pombos assustou-os. Vinha de outra parte, onde velhas camas ferrugentas se alinhavam no maior silêncio. Numa delas, deitado de lado, coberto por uma manta andrajosa, sem outro teto que o céu do Senhor, encontraram-no. Junto do leito, a alimária (feita pele e osso) ainda respirava.

Os homens tremeram de piedade e de franca comiseração. Assim que se preparavam para erguer o morto, a fim de lhes darem sepultura, ele abriu os olhos e quase sem força, num levíssimo flamular de voz, saudou-os:

– Feliz Natal, meus filhos!

.

Logótipo Oficial 2024

Vim até cá acima e fiquei

montanha, solidão
Fotografia de Jeremy Sanders

.

Vim até cá acima e fiquei.

De quando em vez venho até cá acima e fico. Fico em silêncio, a escutar muito tempo as coisas que só se escutam em silêncio, sentado num lugar pertíssimo de mim, num sítio onde as palavras me parecem aos poucos pequenas assombrações, quero dizer pequenas cabeças enevoadas, minúsculos vultos sem sentido, fósforos frios que deixei de saber deflagrar.

Fico e às tantas fecho os olhos. Às tantas as coisas fluem, as coisas vêm-me involuntariamente à boca, as coisas passam-me diante as retinas, atiram-se-me à nuca, coisas como os murmúrios da avó Amélia, coisas como o cheiro triste da murta nos dias que se seguem ao Natal, coisas como a castidade absoluta das suítes de Bach, coisas como a maciez dos seixos, como a cor fulminante do papel debaixo dos versos de Camões.

Vir e ficar é doloroso.

As memórias conhecem caminhos, encontram-me, convulsionam num modo de regurgitação. Estou em silêncio e sinto gente desesperada a querer falar-me, sinto pedaços avulsos de mim a precisar de paz, a pedir que os apague ou lhes dê uma morada acalentadora, que os compreenda ou que os exorcize em definitivo.

Vem-se cá acima e fica-se.

Fica-se a meditar na quantidade de fracassos. No primeiro romance por escrever. Na profissão mal encontrada. No amor que se abandonou em parte incerta. Fica-se a matutar na mole de sonhos interrompidos. No doutoramento por fazer. Nos filhos que não vieram. Nas viagens ao Japão e à Antártida. Fica-se a cismar na multidão de rostos que foi preciso conhecer e esquecer ao longo dos anos. No peso morto que se deixou atrelar aos tendões e não é a nossa pessoa e não é a pessoa dos outros e não, na verdade, a pessoa de ninguém. Fica-se a cair para dentro, como uma pedra num poço.

A avó Amélia era um colosso sem que o tenha sabido. Foi-o até ao fim, quando muda, paralítica, cega, se queixava em gorgolejos, em sibilâncias, em gestos que nos diziam que queria comunicar e não podia. Só os pensamentos a mantinham viva, suponho. Só teimando com a comida ralada, suponho. Só apertando-lhe as mãos e afagando-lhas e beijando-as. Só assim a mantínhamos no lado de cá da solidão. Só pronunciando devagar pequenas frases que o seu ouvido, suponho, aceitava ainda.

Venho cá acima e fico defronte a isto.

Diante desta paisagem de granitos e ervas ressequidas pela geada. Fico sem um pio, a escutar o vento, a deixar que o caracol dos anos que me leve e me traga de volta, sem saber ou poder replicar ao parto doloroso das imagens que se soltam deste movimento em espiral de ir e vir.

Venho e fico.

Fico, suponho, à espera que alguém se dê conta de como estou a ficar cego, paralisado, emudecido. À espera que me segurem ambas as mãos e me não deixem partir para o lado de lá. O lado de lá dá-me arrepios. Tenho pavor ao outro lado da solidão. Não sei se a avó Amélia pensava muito nisso. Nos fracassos e sonhos por acabar, não creio. A avó era um colosso. Suponho que os colossos nunca morrem inteiramente sozinhos e a avó era, sem o saber, um colosso. Suponho que só os fracos vivem atormentados por esse medo. O medo de levarem uma vida inteiramente desperdiçada. O pavor de saberem que nunca serão grandes, ou lembrados, ou apertados na mão.

Vir e ficar é doloroso.

As memórias conhecem atalhos, encontram-me, despoletam pesadelos. Ninguém imagina com que remorso. Com que furor. Com que que ódio.

.

Logótipo Oficial 2024