Tocata e fuga

Foto de arquivo pessoal (2019)

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Daqui avista-se mar e rio.

O mar e as formações rochosas que descem do paredão até à linha dos seixos e à espuma. Se por elas saltitamos, vemos charcos salgados e pequenos tufos de funcho-do-mar (resistindo a tudo, semelhantes a borracha), e muitas vezes o pôr do sol. Em cima, no parquezinho onde o verde dos chorões se ilumina todo o ano, perfilam-se as autocaravanas dos turistas estrangeiros, automóveis com casais de meia idade em silêncio, às vezes um ou outro solitário cismando ou o cano de uma objetiva sobre um tripé. Em baixo, no abismo do grito das gaivotas, o eco da rebentação, o chiar da areia quando as ondas recuam, a linha da água encapelando-se, embatendo nos rochedos, esbranquiçada, mansa e violenta, até ao ponto de focagem em que o céu, as nuvens e o sol nela se fundem.

Mas também o rio e a cidade, também esta neblina que agora se ergue da praia e torna mais belos, quase feéricos, os pontos de luz ao longe, nos postes elétricos, nas janelas banhadas pela claridade azul dourada do fim de tarde, essa cortina de vapor que nos confunde as formas e as cores e se entranha na roupa. O rio que é decerto não mais do que um rodapé sobre o qual os nossos olhos distantes principiam a derivar da realidade, a fantasiar, a narrar o mesmo sonho de sempre («Um dia hei de aqui viver!»). A cidade que tão bem se conhece, mas que nos parece outra, tranquila assim, adormecida, silenciosa da Foz à Ribeira, da Ponte D. Luís ao farol e à pérgula, ao terminal de cruzeiros, à refinaria e às praias de Leça, ao fundo, além, na penumbra já.

Fujo.

Os meus sábados são (por esta altura da existência) lugares. Em cada um deles coso e descoso e volto a coser uma certa pele vadia que me acompanha desde criança. Gosto de me perder nas paisagens, de me esquecer nelas, de me redescobrir vivo no silêncio e nas coisas que toco com mãos livres e ávidas.

Como Bach, como Pessoa, como van Gogh ou Sorolla (que comparação esta!), componho, escrevo e retrato em simultâneo. E compondo, escrevendo, retratando (verdade ou fantasia, não importa), sinto-me aconchegado a outro eu que neste espaço e neste tempo deseja permanecer (um dia) para compor, escrever e retratar mais dentro, mais profundamente, mais em paz consigo mesmo, feliz de se juntar à maresia, ao areal, ao frio, às silhuetas que aqui (ao crepúsculo) se multiplicam e renascem e hão vir muitas vezes para matar a morte que lentamente os mata, como a mim a morte me mata sem pressa. É algo como uma concha mental e cardíaca. Um dia hei de aqui viver!

Fujo, portanto.

Os meus sábados servem para caminhar pela costa, para me deliciar com plantas e aves a que raros prestam atenção, para criar poemas que ninguém lê, para fotografar os avanços do oceano e da velhice na minha vida.

Por muito que me esforce, não consigo transferir para as palavras esse maravilhamento. Seria prudente, como Caeiro, ficar-me pelo sentir. O amor que me permite disparar o flash é à prova de grandes discursos. O mar e o rio, as ondas e a cidade, a neblina e o frio que se levantam deste sábado, neste miradouro, são talvez um prémio, a recompensa de dias difíceis que me pedem mais do que me posso dar.

Talvez seja algo que nos acontece a todos: perdemos aos poucos o controlo do quem somos e do que fazemos. Talvez nos sobre esta nesga de ilusão, este clarão que se acende quando o dia se apaga e o lusco-fusco transforma tudo numa enorme presença cósmica. Talvez este banco de pedra, onde me sento, seja aquele umbigo do mundo a que chamavam na Antiguidade «ônfalo» e punham dentro de uma gruta habitada por uma sibila.  Talvez, como eu, milhões de humanos precisem de fugir de si uma vez por semana para de novo se reconhecerem na mais ampla e formidável escuridão.

Daqui avista-se o mar e o rio. O que quer que eles signifiquem.

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O medo da morte e outros medos

Anette Ohlendorf
Fotografia de Anette Ohlendorf
 

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As salas de espera nos hospitais são lugares incríveis, desconfortáveis, ruidosos, atarracados, repletos de pessoas numeradas, numerificadas, anónimas, cheias de velhice precoce ou consumada, com compressas e ligaduras, deitadas em macas ou presas a cadeiras de rodas, babando-se ou resmungando, ansiando pela chamada do intercomunicador, pedindo outra vez para ir à casa de banho, manejando o telemóvel horroroso (que não para de tocar e toca altíssimo), berrando pela filha que saiu do campo de vista ou contra a mãe que fez chichi pelas pernas abaixo e obriga agora à intervenção de uma funcionária de bata azul e muitíssimo mau-humor.

Chega-se muito antes da hora marcada para a consulta, procura-se uma cadeira plástica livre, limpa, menos retorcida se possível, senta-se nela a angústia toda, devagar, muito devagar se possível, para que a paciência esgote aos bochechos e não de uma vez só, o diabo leve para longe uma crise de pânico, e então, sim, tem-se uma visão claríssima da nossa condição.

O cavalheiro que não deixou de me perseguir com o olhar desde que cheguei é, literalmente falando, um velho conhecido. Cruzámo-nos num corredor da Imagiologia em junho, na Imunohemoterapia em julho, num WC em agosto. Podia dizer que o mundo é pequeno, mas a expressão parece-me duplamente redundante, porque o mundo é mesmo pequeno, para mais dentro de um hospital, e o mundo dos doentes é menor do que o mundo pequeno das outras pessoas, é um mundo asfixiante, uma casca de noz!

Na fila da frente, há uma mulher de lenço na cabeça. É um lenço bonito, elegante, feito de um rosa macio, nacarado, de onde brota uma esperança que me comove. Podia ser verde, ou azul, ou violeta, ou salmão. A mulher tem um rosto fino, não sei dizer se jovem ainda ou já não, mas belo, muito belo, atraente. Gosto de me distrair descrevendo-lhe os lábios, as pestanas, o rubor que pinta as suas faces e contrasta com os olhos  amadurecidas pela surpresa.

Quase sempre trago um livro ou o iPad. Às vezes rabisco um apontamento e faço de conta que não pertenço às estatísticas, que sou um intruso, que não venho ouvir notícias duras, que os ponteiros funcionam de maneira diferente para mim. Chego a esquecer-me das dores nas costas, e da espécie de enxaqueca que se vai costurando na minha cabeça, e da fome, e da sede, do maldito cigarro que alguém decidiu fumar além, ali mesmo, para lá da curta porta que os sensores mantêm sempre aberta e sempre a fechar-se.

Durante a espera há tempo para tudo.

Às vezes atrevo-me a olhar para as pessoas de frente. Explico-me, a observá-las sem piedade, com ousadia, fundo, perscrutando-as até aos ossos. Deve ser uma prática criminosa, porque às duas por três me arrependo, me sinto vexado, me encho de remorsos e de culpa. Sinto-me então ainda mais cansado e mais triste. É como se outra pessoa tivesse ocupado o lugar que deixei vazio e essa pessoa fosse eu a olhar-me ao espelho sem me reconhecer.

Será que na sala há outros monstros como eu? Em que pensará toda esta gente? O que sentirá? Que medo a fará pregar-se ao chão e não agir com ímpetos de motim?

Regresso então ao ancião conhecido, que me segue sempre com um misto de carinho e de espanto («O que trará um rapaz tão novo a este lugar tão tenebroso?», «É o que eu digo, elas vêm cada vez mais cedo!», «Se calhar, é um cancro.», «Sei de miúdos cada vez mais novos a morrer assim…»). Percebo que me quer o nome, a idade, a confirmação da maleita. Adivinho-lhe os pensamentos, apetece explicar que não sou assim tão novo, que não tenho (segundo o apurado até à data) um mal tão grande, que isto se vai resolver, que há na vida complicações inesperadas. Percebo que talvez gostasse de me falar da sua própria enfermidade, dos filhos, dos netos, especialmente, quem sabe, daquela que é enfermeira em Londres e o orgulho da família («Sabe você que tenho uma netinha, pouco mais nova será que o senhor: foi trabalhar há coisa de um ano, ano e meio, para Inglaterra. É uma miúda do dianho. Foi sem medo, ganha muito bem!»).

Mas nunca trocámos uma palavra.

Porque me divido agora com a senhora do lenço na cabeça. Tão bonita, tão triste, tão saturada da vinda a este e a outros banquetes semelhantes, tão só («Descobri há meses um nódulo no peito e foi o começo», «Já uma irmã minha morreu por causa do cancro da mama», «O que custou mais foi a quimioterapia. Nessa altura, fiquei com a boquinha toda em ferida.», «Agora, se Deus quiser, isto vai passar…»). Não descortino um modo de iniciar com ela uma conversa. Nem valerá a pena. Não suporto tamanha tristeza. Não saberia contar-lhe algo engraçado, tragicómico, apropriado à situação («Olhe, estou aqui sem saber bem como. Foi como um macaco ter caído de um galho. Descobri tudo por acaso…», «A vida prega-nos rasteiras inacreditáveis. Fui a uma consulta, supondo que me raspava em cinco minutos, e fiquei internado onze dias»). As desgraças cansam, maceram, desgraçam-nos.

Nunca faço nada de relevante. Não consigo concentrar-me.

Sinto que aqui cheira a medo. Na verdade, a diferentes tipos de medo: a medo de que a espera se prolongue interminavelmente; a medo de más notícias; a medo de que a filha subitamente desaparecida não volte para a nossa beira e um bando de estranhos nos capturem e encaminhem para qualquer lado incógnito, incompreensível, irreversível, infernal; a medo de que a nossa mãe demente volte a protagonizar um escândalo na sala (onde já se viu, fazer chichi pelas pernas abaixo?) e de que a funcionária terrível, carrancudíssima, nos passe uma descompostura monumental; a medo de que na sanita faltem o papel e a higiene e de que, nesse preciso instante (em que intestinos e bexiga atingem o limite), soe o nosso nome e a indicação do consultório no altifalante. A medo decerto de sermos afinal tão frágeis como acreditamos que somos; de que se repita uma epistaxe, de que se solte um flato, de que em desespero de causa se diga um palavrão. A medo da velhice. De ficarmos nessa ou naquela maca com algália e saco repleto de urina de lado; a medo de que as palavras sejam a partir de certa altura apenas chocalhos mentais, átomos a bater contras as paredes da cabeça, ideias confusas, morte.

Normalmente, tudo termina quando nos levantamos e nos dirigimos para certa porta. Depois, alguém de bata branca, voz mansa e olhos risonhos apazigua todos os pavores. Não sei como se passará com o velhote que me espia, nem com a senhora de lenço na cabeça que eu espiei. Julgo que é só uma forma de ver as coisas, ou também isso será uma feição do medo: medo de não se saber nada, de não se ter certeza sequer de que à nossa volta outras pessoas existam.

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Crónica dos dias comuns

Paulo Abrantes
Fotografia de Paulo Abrantes

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A viagem demora três quartos de hora.

É muitas vezes a distância entre mim e eu. Ao fim de meses, a última afirmação parece-se extraordinariamente verdadeira: duas vezes três quartos de por dia multiplicadas por muitos dias é uma soma impressionante de pensamentos, de constatações, de memórias, de tomadas de decisão, além do asfalto, do combustível, das portagens, dos monólogos, dos programas de rádio, das conversas ao telemóvel, das árvores a despir-se, despidas, vestindo-se novamente, dos bandos de pássaros voando numa alucinação de cardume, dos arco-íris e mosquitos esmagados no vidro dianteiro, das ultrapassagens assassinas dos camiões TIR, dos condutores esburacando as fossas nasais com os dedos mindinho e indicador.

A viagem nem sempre é boa. Muitas vezes cansa, cansa mais agora,  exaspera, os olhos ardem, a rota faz bocejar, leva-me ao vazio e dele me leva de volta a casa. Muitas vezes é assim. É um sonho, uma dormência. Abro as janelas, a da esquerda primeiro, a da direita depois, mesmo se lá fora está frio, especialmente se está muito frio. Preciso de me ventilar, de ser açoitado pelo ruído e pelo ar denso, de acordar.

A pior parte da viagem é esta que nos faz tergiversar a vida, como se a viagem não fizesse parte dela e tudo não passasse de um efeito de redoma. A vida pede-nos, aliás propõe-nos, aliás exige-nos uma grande dose de ousadia.

Enquanto o conta-quilómetros vai substituindo números, sorrio em segredo para dentro de mim. E lá estou eu, a gostar outra vez de Antropologia Cultural, a estudar os povos africanos e as tribos da Polinésia, a sonhar com viagens de comboio pelas estepes asiáticas e a fotografar aldeias da Mongólia, da China e do Turmenequistão. Tenho a mochila inchada de cadernos e os rolos da máquina fotográfica repletos de rostos desdentados, lareiras ardendo em casas de terracota e estranhos e curiosos animais parecidos com os nossos animais domésticos mas diferentes dos nossos bichos de estimação. Sou eu sem lamentos ou evasivas, escrevo crónicas de viagens a sério, publico livros que ensinam o quanto o mundo é pequeno visto de dentro e sinto-me puro e veemente, cheio de frases que soam como soam as teclas da máquina de escrever.

Este devaneio volta amiúde. Volta sobretudo em determinados dias da semana e a certa altura no percurso, quando o dia rompe da massa escura das montanhas do Marão. Primeiro o horizonte é só uma película rosada, atravessada pelo fumo translúcido dos aviões («Lá em cima os aviões com o seu rasto aceso parecem caracóis segregando uma baba luminosa» escrevi num conto d’ O Moscardo), depois surge o clarão, o arrebol, a luz de lume do sol. Dura uns segundos apenas, mas a imagem fica e acorda outras imagens acamadas na minha memória. A explosão torna nítidos pormenores que me acompanham durante o dia, mostra o girar das torres eólicas ao longe, os mantos de nevoeiro e de fumo sobre os povoados, a cintilação dos metais e dos vidros em mil casas que alcanço num abrir e fechar de olhos, uma curva da autoestrada além, subindo, reaparecendo, brilhando, para logo desaparecer de novo entre campos e montes.

Sonho comigo num qualquer festival de música eletrónica progressiva (de Oleg Byonic, de Lukas Termena, de Armin van Buuren), num terraço de Nova Iorque a fotografar o Hudson, ou nas escarpas da Irlanda e nos fiordes da Noruega a sentir-me íntimo das paisagens maravilhosas. Sonho comigo passeando nos jardins de Quito, entre as colunas de Tebas, sobre as ruínas do Peru. Volto a emocionar-me com a adolescência rigorosa das aulas de Filosofia e de Jornalismo, disciplinas a que obtive classificações históricas, e por via delas sonho comigo filosofando e noticiando em Alexandria, em Cambridge, em Istambul, em Toronto, em todas as bibliotecas, museus e universidades importantes do mundo.

Sobre mim relampeja o azul das placas sinalizadoras.

Sem dar por ela, aproximo-me do destino, o carro desacelera, avança sem pressa, também ele enfastiado, esgotado, saturado do ramerrame, aquecido pelo esforço dos pneus, cheirando às vezes a uma combustão suja (como se alguma vez pudesse ser limpa) de gasóleo e de travões.  Quando me apeio, sinto um emperramento terrível, uma preguiça de morte, um desapontamento. O desapontamento cresce se se depara com outro rosto desapontado no brilho espelhante da carroçaria. É uma solidão de dois rostos que sendo um são dois rostos reciprocamente desiludidos, um desamparo. Às vezes receio cambalear. Talvez cambaleie, dorido, sem força, pronto para o que der e vier. Nem tenho tempo para perguntar. Se tivesse perguntá-lo-ia talvez. Embora não o jure o aqui. Talvez. Apenas talvez.

Que viagem foi esta que eu fiz?

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Parque Nacional de Timanfaya

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Fotos de arquivo pessoal (2018)


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El 1 de septiembre de 1730, entre 9 y 10 de la noche, se abrió de pronto la tierra a dos leguas de Yaiza, cerca de Chimanfaya. Desde la primera noche se formó una montaña de considerable altura de la que salieron llamas que estuvieron ardiendo durante diecinueve días seguidos.
Relato de Andrés Lorenzo Curbelo Perdomo, cura de Yaiza, intitulado Diario de apuntaciones de las circunstancias que acaecieron en Lanzarote cuando ardieron los volcanes, año de 1730 hasta 1736

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Ao quarto dia entranhámo-nos no centro-sul da ilha: de manhã Tinajo, à tarde San Bartolomé, Tías, La Gería, Uga, Yaiza. volto a espantar-me com a limpeza e brio dos lanzarotenhos, em cujas povoações não permanecem muito tempo à solta o maldito plástico ou o maldito ruído. fotografo a estrada, uma reta gigantesca que, submergindo de quando em quando num declive, reaparece quilómetros mais à frente, até se perder de vista, muito longe, no sopé de uma das escuras montanhas que por cá proliferam. depois fazemos um desvio para subir lentamente, de curva em curva, até ao lugar onde nos recebe um diabo de pernas escancaradas e braços abertos, cauda pontiaguda, a segurar uma tábua com a legenda PARQUE NACIONAL DE TIMANFAYA.

Dominada por vulcões sucessivos, a paisagem repete-se. talvez por isso, a boca procura agora mais fundo para dizer melhor, para dizer diferente. esperamos uma hora, apeados, dentro do carro, numa monstruosa fila que quase não avança, observando os cones que se multiplicam de lés a lés, de cores tão vivas como o açafrão e o ocre, o vermelho, o laranja, o verdete, ou o marrom, cores muito misturadas, sotopostas, em estrias, em cachos, escorrendo umas sobre as horas. esperamos. às vezes a beleza cansa, facto blasfemo mas verdadeiro. esta beleza confunde os sentidos. não, não há palavras para ela.

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Entramos no que chamam Islote de Hilario, centro nevrálgico do parque onde o visitante pode estacionar a sua fatigada viatura, dar satisfação às premências humanas, observar em círculo toda a extensão do fenómeno geológico que alimenta este poema, embarcar num autocarro turístico, assistir à prova de fogo, pasmar-se com o jorro de água fervente cuspido a meia dúzia de metros de altura, descansar, comprar recordações. fotografo quase com obsessão, aqui, ali, além, o calor aperta (nada que se compare aos quatrocentos graus que sopram da boca da terra), tu trazes os bilhetes, também nós viajaremos pela estreitíssima rota asfaltada, entre píncaros e vales, a que chamam Vale de Tranquilidade.

Pelos vidros sujos chega-nos o bizarro elenco que as colunas de cinza fabricaram, fileiras de chaminés e maciços de lava, estranhas formas nodosas e retorcidas que lembram fósseis, crateras e encostas policromáticas, minerais, inóspitas, lunares, nenhuma tão bela como a Caldera del Corazoncillo. assim o diz a gravação que escutamos em castelhano, inglês e alemão, a que nos recorda a grande erupção de 1 de setembro de 1730, a narrativa dramática do padre de Yaiza, a lenda do eremita Hilário, os povoados férteis sepultados debaixo de toneladas de magma.

Não sabemos decidir se é este lugar um hino à vida ou à morte. prometi escrever sobre o assunto. tanto tempo depois, a dúvida mantém-se.

20.08.2018

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Volto às crónicas

Jay Satriani
Fotografia de Jay Satriani

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Recomeçar é o mais difícil. Destapo, tapo, volto a poisar a caneta, ponho-me a andar pela casa, a tocar nos objetos, a retocar-lhes a posição (as gavetas guardam ainda segredos), a anotar mentalmente os ruídos que me chegam de todas as partes, regresso à mesa, abro o caderno, destapo a caneta, a cabeça parece oca, cheia de ecos e de pó, digo em voz alta coisas obscenas, a noite sufoca, tapo e volto a poisar a caneta.

(«Deves fazê-lo com tesão, com paixão, com amor, com tudo. De outro modo não o faças!»)

A casa é curta, as coisas estão tão perto que lhe escuto o respirar, cansa-me a polpa dos dedos. Não há meio de descortinar um fio condutor, uma ideia razoavelmente capaz, um devaneio suficientemente promissor. Falta-ma às palavras profundidade, abertura, sentido. Sufoco nelas como numa gruta. Sufoco. Ponho-me a caminhar de novo às escuras, num derradeiro esforço de espeleólogo, através de obstáculos invisíveis e intransponíveis.

(«O pior de um escritor é esse desespero de homem falido, de macho que confessa a sua impotência na cama!»)

Às vezes o sofá é uma solução. Embrutecido como uma alimária no meio do lamaçal, ligo a televisão e ponho-me a clicar à toa. Às vezes tenho sorte, quando me esbarro com uma dessas relíquias da era monocromática. Há dias revi um programa do Bob Ross (o mesmo despenteado volumoso, a mesma camisa, o mesmo timbre paralisante da voz, os mesmos nomes fabulosos na paleta (branco titânio, azul prussiano, siena escuro, ocre amarelo, castanho van dike), o mesmo «Beat the devil out of it», o mesmo riso cheio de bonomia). Mas a maior parte limito-me a fechar os olhos, a esperar que as coisas deslizem, circulem, corram no movimento de caleidoscópio por dentro dos olhos. Adormeço entre frases soltas como um elefante sedado.

(«Quando sabes que não podes ganhar a guerra, limita-te a garantir que não morres na guerra. Dias melhores virão.»)

Às vezes os sonhos escrevem tudo sozinhos. Vejo-me de repente no meio de uma praça ampla, ornada de colunas brancas e estátuas de mármore. Tu voltaste inteira, com o teu rosto bonito, a tua voz melodiosa, com o teu decote generoso, o teu medo de errar as perguntas e não saber ouvir as respostas. É horrível. Beijamo-nos e fazemos amor, mas num piscar de olhos estamos de costas voltadas, tu a choramingar, eu a pensar que era bom desaparecer num passe de mágica, poder escapulir-me como uma lagartixa pela fresta de uma parede. Tudo tão vivo e tão claro, tão competentemente paragrafado, que acabo por acordar com os olhos cavados e uma sensação de vómito na boca.

(«Não escrevas com o aparo. Tão pouco com as palavras. Escreve com a vida. Que ela desenhe círculos de ar e de luz no teu caderno.»)

Recomeçar é uma tarefa desmedida. Há rabiscos e rasuras nas folhas que violento com ímpetos de homicida. À minha volta, vindos da janela, há cheiros complexos (talvez dessas plantas repletas de veneno nesta terra que as multiplica: umbelas de cicuta, tintureiras infestantes, ramos de lobélias, cachos de dedaleiras), há a presença multiplicada dos vizinhos desamparados pela inteligência (insultando-se por causa dos estacionamentos, do fedor provindo dos sacos do lixo, do patear e do ganir do cachorro), há o ácido paladar das ameaças que faço a mim mesmo, indeciso entre sair e ficar, continuar ou desistir.

(«Convenhamos, meu caro: a literatura excita, a mediocridade oscita!»)

Debato-me entre querer muito e não querer mais, entre sentar-me à mesa de trabalho, com a Pelikan alinhada com o Moleskine, e sentar-me à mesa da cervejaria Munique, com uma Erdinger a escorrer gotas de âmbar e um prato de tremoços a compensar-me aos poucos a poética desapiedada. De maneira que penso nas palavras do velho professor de Estudos Literários e me ocorre que a maior humilhação é não perceber o instante em que se é humano e não se tem forma para subir ao Olimpo, o pavoroso instante em que um indivíduo puxa de um cigarro e renasce na miserável solidão de saber que tudo é inútil e estéril como vento que passa.

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O último dia é sempre um primeiro dia

Clemens Geiger
Fotografia de Clemens Geiger

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A avenida cheia de gente, gente cheia de pressa, faz-me esquecer tudo. Levo encontrões, pisam-me os pés, olham-me como a um animal ferido (com o seu rasto de morte, largo como um cometa). Mas não me importo. Prefiro assim. Os rostos desfilam vertiginosos, belos, muito belos, horríveis, disformes. Não consigo lembrar-me de nenhum. Só da quantidade. Tantos rostos, tantas histórias, tantos eus engastados uns nos outros, tantos futuros incertos, possivelmente brilhantes, provavelmente encurtados, tantos passados cheios de mossas, tantas cicatrizes escondidas, disfarçadas pelos pírcingues e tatuagens. Da quantidade, sim.

No fim de contas, há o antes e aquele momento em que nos damos conta de que não fazemos diferença nenhuma, absolutamente nenhuma, num mundo repleto de drama, num mundo incapaz de aceitar o drama, num mundo cheio de gente com dramas e absolutamente incapaz de lidar com o drama. Não fazemos falta nenhuma, porra, nenhuma.

O que me fica na memória é a gente à margem, a gente assim como eu, a alimentar os pombos, a gente excluída do caudal, a gente velha, a gente que cisma cada movimento do corpo e o faz rodar devagar, a gente que tem a barba por fazer, a gente que veste casacões de fazenda e rugas descomunais, rugas pronunciadas e verdadeiras como grand canyons, a gente atrelada a cachorros feios e tão sujos que são mesmo uma fotografia, a gente que cheira a óleo e urina e suor e outras secreções talvez secretas.

A avenida é interminável. Todos cabem nalgum lugar. E eu, que me entretenho a não pensar em nada, penso como é engraçado isto de ocuparmos algum lugar, como algures, suspensa num andaime sinistro, há gente-gárgula, como além, no bojo prateado de um boeing, viaja quem sabe o próximo grito da moda, como ali, em frente aos espelhos descomunais das lojas chiques aporta a outra gente, a gente dominadora, a gente a quem se mostra a cabeça subitamente desalojada de chapéus e uma pequena vénia respeitosa. A avenida é interminável. Os vermes têm de esperar a sua vez. Só à noite podem mostrar-se. A noite pertence-lhes. À hora certa os rostos escoarão, trocarão de lugar. Quando a mais ninguém puder pertencer, a avenida há de acoitar estes rostos que olham o vazio e dão de comer aos pássaros. O espaço parecerá maior, desolador, gigantesco. A verdadeira solidão será, portanto, essa.

Mas, neste momento, sou apenas um corpo em movimento, atropelado, empurrado, levado na corrente. Os pés e os olhos esforçam-se por coordenar uma narrativa. A mole de rostos macera, deixa a sua impressão inumana, o seu toque desleal, voyeurista, como se todos fossem um só e um só fosse apenas um sonho. Não consigo lembrar-me de nenhum. Nem sequer da beleza ou da profunda fealdade de um olhar. Aqui sou maquinal e doente como todas as máquinas. Talvez tenha vindo por essa inconfessada razão.

No fim de contas, há o antes e aquele momento em que nos damos conta de que nada em nós é melhor, ou mais legítimo, ou mais perfeito do que nos outros, nestes todos que caminham, reptam, voam diante os nossos olhos. Não fazemos falta nenhuma, nenhuma, porra. E essa é ainda uma outra solidão, uma lídima solidão sem nome, que nos obriga a viver, a pertencer aos gestos, a ser, a durar, a existir para lá de todos os lapsos de memória e amor.

A avenida é interminável. Não sei há quanto tempo me não dou conta de caminhar. Caminho. Limito-me a não pensar. Em breve, terei todo um novo texto pronto. Não sei qual. Definitivamente, não sei.

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