Da saudade que nós sentimos das pessoas que nos morrem ainda vivas

Drew Hopper
Fotografia de Drew Hopper

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Há dores que doem mais do que as outras dores. É um absurdo. Dói-nos tudo quando dói assim. Dói-nos o corpo ao alto, os ossos, o intervalo entre os ossos, os olhos, dentro dos olhos, a boca, a garganta, os pulmões inchando e desinchando, o estômago, os rins, as costas, as mãos, os cabelos até à última ponta do último cabelo. Dói-nos tudo. A mobília, o tapete, as sombras, o silêncio. Tudo. E quando mexemos um músculo o universo inteiro estremece. E quando uma corda vocal quer vibrar todo o espaço trepida com o catarro. E quando as palavras saltam, tropeçando, cegas, às apalpadelas, quando riscam com o seu fósforo efémero a parede gelada do tempo, é ainda um resto de dor que as torna mais belas e terríveis. Porque quando dói tudo dói tudo. É um absurdo. Um cataclismo. Um colapsar de sonhos e memórias e esperanças e alegrias subtis, risos, confidências, carícias, hálitos, secreções, murmúrios, quenturas, prazer… É um absurdo. Porque erguer gigantes não devia ser para tombá-los, vergá-los, humilhá-los, enlameá-los, arrastá-los a ferros. Porque, no interior de um pequeno fole de trezentos gramas, sístole-diástole, sístole-diástole, sístole-diástole, é possível caber um gigante. Um gigante com um milhão de fotogramas, um fantasma, um holograma, um amor!

Porra, um amor!

De maneira que hoje foi mais um dia. Daqueles que precisam de nos arrancar à cova, com esforço, virilmente, sob ameaça de estalo. Meia hora no duche. A água a escorrer na pele como em pedra. Não me lembro se estava quente ou fria. Dá para acreditar? Não me lembro se gemi com frio ou sentindo uma queimadura. Gestos sonâmbulos, mecanizados, entrando e saindo de mim como gente de um motel. Não me lembro do que engoli. Decerto os cereais. Provavelmente um iogurte. Porventura uma peça de fruta. Talvez pão com geleia. Não sei se meio pão com queijo. Possivelmente nada. Não me apetece comer. Ultimamente não sinto fome. O carro levou-me sem um protesto para o trabalho. Não me lembro de o conduzir. Julgo que se conduziu sozinho, como os cavalos nos campos de batalha. Devo ter bebido um café. Ou dois. Teriam sido três ou quatro. Mais. O café é bom, aquece, traz-me de volta à superfície. Chego a reconhecer as pessoas. Digo-lhes a cada qual, à vez, sem pensar muito

Bom dia, como está?

O pior é acordar. As manhãs são bolas de sabão inquebráveis. Escuto-as por dentro (escuto as ervas, o cheiro das madressilvas, o olhar acutilante das gralhas no bosquezito ao lado do apartamento, o frio do riacho, as neblinas erguendo-se até ao cocuruto dos choupos. Escuto crianças. O riso maravilhoso que ecoa dos seus passos. Escuto o sol. Escuto o abrir das janelas, o perfume das roupas que se estendem nas varandas. Escuto o sorriso desdentado das velhas, tricotando e rezando em simultâneo. O frenesim dos pequenos mercados de esquina. As caixas de pão, o cheiro do pão, a farinha saltando sobre o papel pardo das contas de somar). Escuto-as e quando me sacodem, me dizem

Já tocou, professor!

Eu sinto a mesma pesada maquinaria, ferrugenta maquinaria, terrível maquinaria, desengonçada maquinaria, a mover-se, caminhar para uma porta, desaparecer por algum lado, sumir-se nalgum corredor, entrar nalguma conjuntura de paredes. De maneira que respondo

Obrigado! Não me tinha dado conta!

As manhãs são sempre longas, distantes, capazes de vencer-me. Um corpo derrotado é um sempre um corpo. Um touro caído. Decaído. Um corpo.

Obrigado! Tenho aula, sim!

E com o copo de café na mão sinto falta de um café para acordar. De maneira que perco a conta aos cafés que bebo. O café é bom, afugenta as cinzas, traz-me de volta à bela chama que ainda há instantes sentia viva no lugar do coração. Chego a reconhecer as pessoas. Digo-lhes

Está uma bela manhã, não está?

E as palavras recomeçam. Os alunos apontam, seguem o raciocínio, não fazem perguntas, acreditam na versão limpa e oblíqua das páginas do manual. As palavras saracoteiam-se com um vago esplendor de ouro falso. O conhecimento. Tão grato, o saber. Tão importante senti-lo fluir na sala, como o balbuciar de um vento moderado e casto.

Sim, meus caros. O conhecimento é sagrado. Puro como uma Vestal.

De maneira que tenho andado meio esquecido. Quase me esqueci de ti, imagina? Quase me esqueci que o sofrimento é uma ampulheta, engolindo tudo de um lado e depois do outro lado, à vez, cambalhota para aqui, cambalhota para acolá, à vez, acumulando tudo, aniquilando tudo…

Não há remédio para isto. Guillén escreveu uma vez sobre a saudade que sentimos das pessoas que nos morrem ainda vivas. Achei belo. Suponho que o acharás também. Belo. E tão triste. Tão triste.

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Lembro-me de tudo

Fotografia de Örvar Atli Þorgeirsson

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A praia esvaziava-se até à melancólica reunião das gaivotas. Era então uma profusão de sulcos em forma de cunha e gritos selvagens. O ronco do mar, com o ir vir das ondas, desfazia-se num som borbulhante de espuma e cansaço, como se também o mar arquejasse e pedisse a noite. O vento erguia nuvens de poeira e tornava-se cada vez mais forte e frio, fazendo oscilar as bandeiras das marcas de gelados e as tolhas coloridas, ao longe, nas varandas dos prédios. Era essa a hora amada. Um pouco antes do sol-pôr, na travessia final do dia para a noite, quando podia caminhar praticamente só pelo areal e sentir os pulmões inchar com a mescla de elementos contrários, húmidos e enxutos, vindos das entranhas do oceano e das dunas áridas, onde rizomas resistiam e abrigavam um sem-número de ervas aromáticas.

Da planta dos pés às circunvoluções do cérebro, todo o meu ser habitava ali e ali se deixava habitar pelo tempo e o espaço. Às vezes a brisa fazia enfunar o casaco de malha e o capuz parecia tenso, como a vela de um navio. Não raro, a respiração do sargaço fazia-me recuar até à infância mais remota, até antes das minhas primeiras memórias, aquietando-me num pensamento infindável de paz e bem-estar. Era como se tivesse sempre pertencido a esse instante e tudo antes não tivesse passado de um desvio involuntário. Eu era aquela ali!

Caminhava primeiro para norte e depois em sentido oposto. O calção arrepiava-se com os salpicos de alguma onda mais veemente, álgida, cansada. E depois com os salpicos quentes de alguma represa pueril, deixada para trás, no seu tortuoso desenho de canais e torres de areia molhada e onde permaneciam agora algum caranguejo ou alguma estrela tresmalhados e sem vida.

Foi assim que nos conhecemos. Julgo que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. O primeiro vislumbre aconteceu numa dessas evasões de agosto, quando me deixava guiar pelos cheiros e pelo recorte azul acinzentado das montanhas galegas.  Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. Não sei qual das duas reparou primeiro na outra. Nem como chegámos à palavrosa descoberta das coisas comuns. Tudo singelo e doce, como numa canção. Sem sobressaltos. Sem a urgência de um reencontro, de um nome, de um perfume. Tudo crepuscular e delicado, como blandícia de uma voz ou de uma brisa.

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim que nos conhecemos. Saía do meu casamento. Devorada pela incompreensão, adendo devagar, esboroada pela dor e pelas traições, pelo nojo… Caminhava sempre com os olhos enregelados, como se um vidro maldito os tivesse aprisionado e subjugado. Caminhava a essa hora, em que o dia e a noite dão as mãos e se despedem e nos pedem uma derradeira prova de coragem. Dizias amiúde:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

Foi assim que nos conhecemos. Até que eu própria descobri o meu amor por ti. Quando tive a certeza de que talvez pudesse não voltar a ver-te e me queimou uma sensação precoce de perda.

‒ Não quero que partas!

E tu sorriste. E o teu sorriso era um lugar dentro da paisagem, onde, como num pingo de âmbar, se deixava antever o futuro, selado e transparente, irremediavelmente perto e intocável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que cada instante vivido contigo era agora um acumular de memória. E eu sabia que aquele primeiro vislumbre se parecia eternizar, mais vivo do que tudo o que vivera.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu revia o teu vestido salmão, a tua pele morena, os teus pés descalços, o teu olhar penetrante, meigo, inquiridor, faiscando como um pequenino carvão indecifrável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que partirias primeiro, que te velaria numa mágoa sem fim, que regressaria a este areal, que caminharia só, nesta hora de abandono, em que uma espécie de espuma gélida se segrega do ventre rumoroso do mar.

Lembro-me de tudo. Das noites que se seguiram. Dos rostos sombrios sobre nós. Dos paredões de ódio contra o nosso amor proibido. Das incertezas e dos choros. Das noites que se seguiram. Da solidão que é maior quando ousámos enfrentá-la. Da praia vazia. Das nuvens ofegantes e dolorosas, carregadas de grãos de areia. Dos anos que vivemos recompreendendo tudo. Da felicidade inesperada que nos abriu, qual gazua omnipotente, o sentido de todas as coisas. Lembro-me de tudo.

‒ Amor e morte andam sempre por perto. Como a terra e o mar. Como o dia e a noite…

Lembro-me de tudo. Das palavras que dizias, vindas de não sei que país inabitável. De que premonição terrível. De que sabedoria tua, temível, temida…

Foi assim que nos conhecemos.

E quando soube que amar-te era possível, deixaste-me. Aos poucos. Primeiro, no cimento intransponível de uma casa onde me não deixaram entrar. Depois, nas paredes brancas de um hospital, onde me aceitavam, fugaz e criminosa, como um gato. Porque era proibido o nosso amor, e eu soube que era possível amar-te.

Lembro-me de tudo. De saber então, quando aqui partilhávamos o lusco-fusco, que um dia, passassem os anos mais depressa ou mais devagar, este lugar me serviria de refúgio. De saber então, quando a felicidade crescia e me curava as lentas feridas de um outro tempo, que um dia regressaria aqui, como regressam todos os que amam aos lugares onde descobriram o amor. Lembro-me de tudo!

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim. É sempre assim. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. E tu dizias, dizias muitas vezes, e eu queria que o dissesses:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

E eu sabia (sempre o soube, desde a primeira vez que nos vimos) que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Mesmo contra rostos sombrios. Mesmo obrigando-nos a quebrar paredões de ódio e de betão. Mesmo depois da morte.

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Crónica de um amor sem tempo certo

Dmitry Borisov
Fotografia de Dmitry Borisov

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E foi assim que nos vimos de novo ao cabo de tantos anos. Uma ânsia capaz de guindar as tripas à boca. Sorriso miudinho. Nervoso. Incerto. Palavras curtas, entrecortadas, cheias de salamaleque. Tu, quase sem rugas, com o estupendo ar de quem regressa de uma viagem pelas ilhas gregas. Eu, mais frágil, curvado, capaz de jurar que o tempo passou em duas velocidades por nós. O que tens feito? O que fizemos? Passou tanto tempo. Os teus olhos continuam belíssimos. Mas não convém falar de beleza, que é, segundo a tua própria lição, efémera e enganadora. Eu continuo a dar aulas. Tu vens de Bruxelas, não é assim? Ainda no Parlamento Europeu? Mãos incertas, passeando-se pela mesa, sobre os joelhos, nos braços cruzados e descruzados. Apetece um cigarro. A beleza pode provocar calafrios. Foi já há tanto tempo. Como pode acontecer-nos? Acontecer-me isto? Corriges. Não, Miguel. Trabalho na Comissão. O Parlamento é em Estrasburgo! Claro. Desculpa. Confundo sempre. Uma ânsia destas parece um terramoto ao longo das vísceras. Bolas, estás estupenda. Uma mulher feita. Quando te conheci eras uma criança. De algum modo foste sempre uma criança na minha cabeça. Mesmo durante o breve amor que tivemos. Nessa altura éramos um puzzle impossível de preencher. Olha-te bem, agora. Rosto sereno. A pele tratada. Unhas longas e delicadas. O sorriso esmaltado e branco. O ritmo das frases. O tom seguro com que pedes. Conta-me coisas! Casaste?

‒ Não casei.

‒ E tu?

‒ Mais ou menos!

E as chávenas de café chegam dolorosamente para interromper a primeira revelação. Sempre odiei o amor. Sempre achei que todos se amavam neste universo de sete mil milhões. Todos menos eu. Todos odiamos o amor. Até que um dia alguém nos faz acreditar que uma pequena porção da sua loucura nos foi reservada. E aí amamos o amor. Pertencemos ao exclusivo clube dos que têm sorte. Dizemos que talvez tenha valido a pena o sacrifício, a espera, a deceção…

‒ Então. Conta lá!

‒ Vivi com uma pessoa durante algum tempo.

‒ Ah, sim?

Mas tu esquivas-te. Do assunto fugimos ambos. Porque há coisas que não se explicam. Melhor assim. Seguras a chávena com ambas as mãos, ao teu estilo. Sopras juntando amorosamente os lábios. Depois pedes uma pedra de gelo e um copo e canela em pó. Tinha-me esquecido desse teu ritual. Acho-o delicioso, deliciosamente presente, aqui e agora! Gosto de te ter. Pedes-me que te contes coisas, a vida, a minha disponibilidade para talvez amar. Sou incapaz de omitir-te seja o que for. Conto-te tudo…

‒ Não casei… Nunca vou casar… Sou avesso a tudo o que me querem…

‒ Miguel, Miguel… E as mulheres que não te largam… Como lhes explicas isso?

Uma súbita tristeza abate-se sobre o granito da esplanada. Sobre as paredes da igreja. Contra as casas e as janelas e as sardinheiras resvalando das varandas. Escureceu. As nuvens cortinam a luz forte de maio. Não sei como responder-te. Talvez não queiras uma resposta. Talvez não devêssemos ter perguntado sequer. Quantas vezes é melhor ignorar os factos, ir às cegas de encontro ao porvir, ser uma folha apagada, ou, quando muito, com os vagos sulcos de coisas escritas a lápis. É melhor assim. O silêncio prova-o. Atesta-o o embaraço, as sísmicas convolutas das vísceras sem lugar no lugar das vísceras. És a mulher mais bela que conheci, sabias? Mas não falemos de beleza. O amor é um mito para lá da beleza. És ainda a minha antiga aluna de secundário e já outra mulher. Ainda e já um outro tempo no meu tempo. E talvez deva dizer, enfim, qualquer coisa como isto.

‒ Nunca te esqueci, Eunice!

‒ Claro que esqueceste, Miguel!

‒ Nunca!

Apetece um cigarro. Apetece cair, sair, partir. Odiamos o amor quando o amor nos ignora. Ignoramos o extenso combate de palavras e de sentidos em cada palavra e sentido que se diz e se sente. Tremo. As mãos incertas desejam tocar-te e fogem, querem acariciar-te e fincam-se, procuram o perdão e mostram-se frias. O amor mente com as mãos. Apetece um cigarro. E tu bebes o café. Devagar. Tão devagar que o silêncio e a lentidão parecem arrastar a cena por séculos. Lembras-te daquela canção dos Morphine? Até que um dia alguém nos faz acreditar que talvez nunca tenhamos odiado o amor. Olhos enxutos, rosto sorridente, coração limpo. O que tens feito? O que fizemos? Passou já tanto tempo, Miguel. Os teus olhos continuam belíssimos. Mas não convém dizer tudo. Talvez não se deva dizer coisa alguma. Continuo a dar aulas. E tu? Bolas, estás estupenda, Eunice… Uma mulher feita. Quando te conheci eras uma criança. És outra mulher, agora. O que é feito de ti? E tu bebes o café. Devagar. Tão devagar que o silêncio e a lentidão parecem arrastar a cena por séculos. Às vezes é preciso ser assim. Devagar, tão devagar que o tempo para. E aí vemos tudo com minúcia. Quer dizer, onde encaixar cada peça, como acabar o puzzle. O amor não é outra coisa. Não é, pois não?

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Gosto de conversar contigo

Frank Decker
Fotografia de Frank Decker

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Gosto de conversar contigo. Gosto da tua voz, que é meiga e cheia. Gosto dos teus olhos, caindo e recaindo sobre os meus, tão devagar como duas pedras em câmara lenta. Gosto das tuas palavras. Do teu perfume. Do modo como apanhas o cabelo e penteias as farripas tresmalhadas. Às vezes nem te oiço. Sinto apenas a percussão doce das frases a massajar-me a cabeça. E (nunca to disse) apetece-me mergulhar no teu colo, deixar que me embales, adormecer a teu lado.

A vida é tão igual a si própria. Somos todos tão escravos dela! Tão incapazes de sentir. Como se pudéssemos ter dentro de nós cabos e fios e fusíveis, em vez de sentimentos. E, por isso, um dia disse isto.

– Um dia acabamos morrendo sem termos sequer começado a viver!

E tu sorriste. Era um dia de final de outono. E tu passaste a mão pelos cabelos. Era uma daquelas tardes em que o nevoeiro parece chegar de longe e atravessar a janela e engolir tudo em nós e ao redor de nós. E tu disseste. 

– Acho que tens andado distraído, Xavier! Tens mesmo de abrir os olhos… 

E o nevoeiro vinha de longe, de fora, do fundo. Passava pela janela como um exército marchando, como uma boca devorando a paisagem, como um buraco absorvendo os pensamentos. E eu senti-me tão mole, tão aluído, tão triste que não encontrei palavras e foram elas que se disseram sozinhas. 

– Não ando distraído. Já não consigo é distrair-me. Já vivi tudo. Já sei tudo. Já adivinho tudo. A vida é a porra de uma repetição! Nem um milagre me podia salvar agora. 

E tu sorriste. E o teu sorriso era um astro frio, alumiando a anos-luz. Tocaste-me o rosto, deixaste os olhos cair, soar no imo do poço, afagaste-me o cabelo, meneaste a cabeça, disseste. 

– Estás doente. Precisas de curar-te. Essa tristeza é uma sombra maldita, a pesar toneladas de um peso morto e sem justificação. És tão bonito, pá! E tão infeliz! 

E eu sinto. Não tenho medo de sentir. De experimentar de uma ponta à outra os impulsos elétricos do medo e da surpresa e da desilusão. Nada receio. É como uma vertigem. É como fechar os olhos e ir. Já vivi tanto. E, no entanto, os teus olhos poisaram em mim e puxaram-me. Como um magnetismo sem explicação, eles alavancaram os meus olhos, fizeram-me agarrar uma réstia de luz e caminhar. 

– Gosto de conversar contigo! 

E o teu abraço é desde então uma casa. Nunca na vida tive tanto medo. O teu abraço apertado faz-me sentir desde então uma criança renascente. E eu sinto uma mistura de tortura e de prazer quando me tocas e o teu perfume e a tua voz e os teus olhos aquecem as minhas tardes enevoadas. 

– Tens de abrir esses olhinhos! 

E dou comigo a pensar nos teus cabelos. E a ouvir pela primeira vez as tuas palavras antigas. E a sair de um túnel terrível. E a escutar outra vez o silêncio das ervas e o rumor das coisas que havia esquecido nos meus olhos. E dou pela paisagem descobrindo-se, desembaciando-se, desimpedindo-se. E talvez me apeteça dizer-te palavras novas, enxutas, belas como grãos de cereal e puras como o toque das unhas na pele, como as tuas mãos finas e firmes. 

– Não ando distraído!

E tu, abraçando-me, acalentando-me como um sol inesperadamente crescido entre as nuvens, tu beijando-me como um milagre, tu sorrindo como um vidro amplo e sem mácula, completas a última frase. Que trago comigo. Que levarei comigo.

– És tão bonito, pá!

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