O amor como ele é

Nico Ouburg
Fotografia de Nico Ouburg
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Gostava de ter sido uma pessoa diferente, mas se pudesse voltar atrás não saberia por onde começar, disseste uma vez. Lembro-me bem. Havia bocados de telha no chão, por causa de um temporal de véspera. Lembro-me que falavas com o avô e eu escrevia no asfalto. Escrevia tão distraído como o Cristo que escrevia distraído no chão.

Nessa altura, a voz era já um motor lento e rouco, afligido pelo catarro e pelo começo de um cancro. Não sabia que sim. As mãos tremiam-te. Tão brancas que mal podiam ser da mesma carne que nós. E talvez não fossem carne, mas já um vapor frio. Todo o teu corpo era uma despedida: pálido e inquieto, distante e enregelado. Como quando esperamos uma partida. Como nos domingos, antes de cairmos no nosso poço de melancolia, sabendo que cairemos nesse poço. Como nos dias a seguir às Festas, quando janeiro se torna uma estrada interminável e intransitável. Como quando sentimos o nosso ser amarfanhado, doloroso, tomado pelo medo e pela angústia. Nessa altura, todo tu eras um tronco apodrecido, caminhando sem firmeza, sem certeza, como se os ossos tivessem principiado a ruir por dentro.

Gostava de ter tido mais tempo para mim, Manel. (Manuel era o meu avô!) Gostava de ter estudado. Gostava de ter sido inginheiro.

O catarro devia ser uma espécie de código, de linguagem, de entendimento entre velhos. Porque catarravas primeiro e o meu avô ria e catarrava também. E o riso de um provocava o riso do outro e o catarro do primeiro puxava o catarro do segundo. O catarral não impedia que o meu avô puxasse do maço de Kentucky e to estendesse como quem oferece, misericordioso, um peitoral Santo Onofre ou um Dr. Bayard. Eu ouvia e escrevia. Com um pedaço de telha. Com o coração aceso de curiosidade e vaga ignorância.

Nem ao menos me ficou um neto e companhia, Manel. Tu tens sorte. Tens muita sorte, Manel.

E a sorte do meu avô era ter-me por perto. Aviar-lhe os recados. Dar-lhe cabo das leiras de cebolo e pisar-lhe os ervilhais. A sorte do meu avô era limpar-me o ranho e ensinar-me a plantar batatas, dar-me café de borra com leite e broa e explicar-me, um a um, o nome dos pássaros. Era uma sorte, sem dúvida. Aquela que têm aqueles que ficam na nossa cabeça quando viajamos e pensamos neles. Aquela sorte imensa que possuem os que nem sonham que nós sonhamos com eles e que por sua causa damos imensas voltas na cama. Aquela sorte dos que nos fazem sorrir e às vezes chorar em segredo. Porque, porra, aqueles que amamos têm esse poder, mesmo se nem
imaginam ao de leve que têm esse poder. 

Quem me dera ter por cá um dos meus. Estão todos lá na França. Todos, Manel. Não me ficou ninhum.

Quando, velho Gusmão, passaste o baraço pelo pescoço e pela trave a corda espessa de sisal, sabias que o amor é branco como a flor da cicuta e negro (nigérrimo) como as bagas da beladona. Porque o amor é formoso e saturado de uma subtil peçonha que nos aviva e nos mata aos poucos. Angústia súbita que nos incha com as vísceras, nos queima por dentro, nos sufoca, nos corrói, nos abandona às vezes.

Esse teu neto, Manel, que moço curioso! Parece que está lá longe, mas está a apanhar tudo o que dizemos…

Quando, velho Gusmão, te penduraste numa trave, sabias que o amor é formoso e sinistro, belo por fora, mas terrível e devastador também. Sabias que quando por ele respiramos e não pelos pulmões, quando nos alimentamos por ele e não por nossas mãos e boca, quando por ele sonhamos e não pelos nossos olhos abertos e distantes, estamos à beira da morte. Quando pontapeaste o escabelo, onde te havias empoleirado, e sentiste o golpe da corda serrar-te a garganta, sabias que valeria a pena ter durado mais, ter durado até se atrofiar de todo o esqueleto, se a vida te não tivesse negado o único bem por que valia tudo. Esse teu neto ainda te vai dar muitas alegrias, homem. Olha para o que eu digo.

Com a sincera mágoa de quem nunca leu um único poema, romance, enfatuamento romântico, sabias que o amor é culpa de muita coisa. Pedra como todas as pedras, hirto e morto, inflexível e cheio de esperança, ou de arrependimento, ou de arestas ou de comiseração. Quando aos oitenta e seis anos te deixaste ir, baloiçando pesadamente como um pêndulo, ninguém pôde compreender-te. Nem aqueles que tinhas na cabeça e nos sonhos e nas saudades. Nem esses. 

Demoraram três dias a dar-te com o corpo. Com o corpo. O resto talvez não venham nunca a encontrá-lo.

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Crónica das palavras que nos (não) farão falta

Ziga Gricnik
Fotografia de Ziga Gricnik

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Chegará uma altura em que preferiremos não ter proferido uma única palavra, meu amor. Será o silêncio a dizer por nós o que as palavras não podem. Porque as palavras, como os aleijões, como os paralíticos, como os corpos encarquilhados pelo reumatismo, não conseguirão dar mais um passo. Limitar-se-ão a ter querido. A esboçar um rumor. A pingar um sorriso.

Tu sabes como o receio. Como tenho pavor desse silêncio. Dessa língua envelhecida, atrofiada, incapaz de um milagre. Dessa desabafo desamparado.

‒ Sabes, hoje sinto-me tão triste…

E haverá um encolher de ombros. Continuarás a preparar as tuas aulas com os óculos sepultados no fundo do nariz. Replicar-me-ás com blandícia. Um gesto tão inútil quanto as flores de plástico numa jarra da cozinha.

‒ Claro que sim, meu anjo…

Terei os olhos tresmalhados na varanda, pela rua, de encontro aos prédios grisalhos, sem poiso certo. Olhos trôpegos, sujos, vencidos pelo meu próprio tempo.

‒ É como se pudesse morrer a qualquer instante…

E tu, teclando com dificuldade, esforçando-se por conjugar parágrafos, imagens, formas, tamanhos e tipos de letra, com as lentes trespassadas pelos pixéis agressivos, multicolores, desumanizados de um computador de uma outrora novíssima geração, consolar-me-ás como quem consola de raspão um moribundo.

‒ Claro que sim, meu amor…

A língua não é inesgotável. Filões de metáforas, adjetivos, interjeições, belas frases singulares, tudo exaurido até ao amuo. Até ao monossílabo. Até ao grunhido.

‒ Sabes do que tenho saudades?

As ruas serão uma feição estranha. Em vez de miúdos, velhos brincarão em parques solitários até que os venham resgatar à penumbra. No lugar das placas alusivas a monumentos históricos, nascerão da grama dos jardins evocações a grandes escombros removidos. Dispositivos eletrónicos repetirão, dia e noite, olvidados, o som de animais extintos…

‒ Claro que sim, meu querido!

E eu falar-te-ei das palavras. Da saudade das palavras. Do vigor de ter desejado, compreendido, justaposto palavras. Falar-te-ei da palavra enxuto. Da palavra aconchego. Da palavra apaziguado. Da palavra pernoitar. Da palavra sopro. Da palavra dúctil.

‒ Acho que me tornei num fantoche!

E tu, com a mesma expressão, os mesmos lábios (agora mais engelhados, distraídos, dormentes), a mesma placidez, suspirarás, como quando o suspiro é uma evolação, uma faúlha, uma despedida.

‒ Claro que sim, meu mais que tudo!

As ruas já não serão paredes, becos, muros, cercas, mas dormitórios verticais. Criaturas voadoras robóticas, pterodáctilos ultramodernos, trar-nos-ão a ração alimentar. Silvos metálicos atravessarão as paredes, como o faz agora a euforia dos pássaros…

‒ O mundo já não é para nós…

E tu, mais feliz agora, aliviada, com a expressão de quem acoita com estoicismo uma hérnia, de quem sabe ter valido a pena, de quem desliga a máquina, a luz o trabalho, responder-me-ás.

‒ Claro que sim, meu amado!

E daremos um beijo. Será como um encosto de pele. Pele ressequida e fria. Pedirás que use o comando para preparar a mesa de jantar. Um resto de nostalgia circulará pelo cubo da casa. Serão praticamente sílabas, moléculas prosódicas, vazio. Uma solidão engessada e incurável juntar-nos-á à mesma comida insossa. Nada haverá a dizer. As palavras estarão gastas. Tão estafadas como os nossos ossos.

‒ Nunca deveríamos ter chegado a velhos…

Saberei que me escutas. Que me reconheces. Que a mesma decrepitude nos lavou com cinzas o rosto, os braços, o tronco, o sexo, as pernas. Que o amor pode restar num miligrama de coração. Que terá valido a pena.

‒ Claro que sim, bebé!

E dormiremos juntos. Agarrados um ao outro. Como náufragos à sua tábua bendita. Sem uma palavra mais. Como se o silêncio pudesse dizer por nós o que as palavras não podem. Como se a noite não fosse tão longa. Tão assustadora. Tão rente a um e a outro.

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