Torben Bjørnsen

Fotografia de Clem Onojeghuo

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Houve uma época na vida de Torben Bjørnsen em que as ações fluíam e os aplausos chegavam de toda a parte. O sucesso parecia ilimitado e ele impunha-o nos gestos e nas palavras, porque era um escritor excelente e mais exímio orador ainda. As iniciais TB reluziam em letreiros livrescos e nas publicações universitárias, mas sobretudo nos panfletos e placares que punham à entrada dos esgotadíssimos anfiteatros onde ele amiudamente comparecia.

Mas isso foi noutro tempo.

Sem explicação que possamos dar a quem nos lê, Torben Bjørnsen lançou-se num voo cruel de autoapagamento: recusou entrevistas, repeliu convites, esqueceu mecenas e admiradores, calafetou-se num mutismo e numa solidão perturbadores, como se de súbito tivesse precisado de transformar a pele empática da sua pessoa num couraçado de escamas e de puas. Desde há quase duas décadas que lhe não conhecemos novos escritos, nem sequer os breves poemas em prosa de que gostávamos tanto.

À celebridade seguiram-se o ressentimento e a vendeta.

Uma espécie de ódio ao homem tem-se instalado na Dinamarca, país que como todos os outros acumula nobres e podres criadores de opinião pública. Há quem assegure que Torben fugiu apressadamente à justiça, por culpa de um qualquer crime do espetro das aberrações sociais. Há quem justifique o seu silêncio com uma conversão religiosa profunda, daquelas que não se esperam em dias tão desossados de espiritualidade, como são os nossos. Há, igualmente, quem legitime esta mudança com uma simples palavra: cansaço.

Ida Kjær, uma amiga comum, contou-nos recentemente que o reencontra uma vez por ano.

Torben não vive na Gronelândia, nas Ilhas Faroé, nem sequer numa dessas ilhotas a caminho da Suécia. Vive onde sempre viveu, com o seu gato, com a sua coleção de presépios, com os seus cadernos intermináveis onde rabisca emendas e símbolos rúnicos. «Apenas mais velho, muito mais velho, cheio desse brilho infantil que nos leva, neste Dia de Santa Lúcia, em multidão para os canais iluminados. Torben estará lá, anónimo e feliz, partilhando e recebendo lussebullar. Verás!»

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O padre

Young priest short-story
Fotografia de Nini Filippini

Ao sol está agora uma roupa tão branca que parece, sob a força do primeiro, uma cascata de lâmpadas acesas. O jovem padre olha-a enternecido. Gosta de contemplar a castidade onde quer que ela se encontre.

Na sua terra natal, a esta hora cheirará ao preparo das cozinhas, a alho e a azeite, a refogados e a estrugidos. Em breve rescenderá a peixe frito. No lugar onde costumava beber o seu café matinal, três esquinas adiante da velha Sé de pedra basáltica, ver-se-á o recorte da costa no Atlântico, a sombra azul das ilhas desertas, e há de misturar-se no corpo atento de quem ali um instante repousar o lume roxo dos jacarandás, a aragem das casuarinas e araucárias, o travo vestigial e amargo do café, o paladar doce do papel velho, o ruído manso dos transeuntes na Baixa e pela marina.

Mas vive agora na grande cidade. Aqui são o rio e o Cristo gigante de braços abertos que dominam a sua atenção. E essa luz forte que chega a doer. E esse rumor indecifrável de um milhão de coisas simultâneas e em conflito entre si.

O padre bem se esforça por anotar ideias, juntar frases, trazer de volta o seu dom. Depois do serviço religioso, vem até esta parte. Caminha largos minutos a pé, em absoluto silêncio, procurando absorver a paisagem. Visita os jardins, vê os telhados, escuta os barcos no meio do azul. Os novos paroquianos saúdam-no. Ele acena-lhes. A brisa de junho é macia, impregnada no aroma das tílias.

Morar aqui não é assim tão diferente de viver lá. 

E, no entanto, a poesia ainda não regressou. A sua alma verdadeiramente virá quando ela vier, somente quando ela chegar. Entristece-o saber que assim é e que assim será. É uma espécie de pecado mortal que não pode sequer confessar.

Se o fizesse, quem o absolveria?

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O velho político

Sergei Smirnov
Fotografia de Sergei Smirnov

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O velho político estava bastante confiante. Ia defrontar o antigo partido nas eleições do outono e dar uma valente lição aos ex-correligionários, provando ser capaz, sozinho, de derrotar toda uma máquina de angariar votos e de eleger-se à boa maneira antiga: berrando e prometendo, prometendo e berrando. O velho político tinha de si a mais alta estima, ele era uma instituição!

No início do debate, o jornalista moderador, à maneira de um introito, colocou um par de questões a cada candidato. Eram sete ao todo. O velho político terminava a ronda. Tinha bebido. Estava bastante bem-disposto. As faces vermelhuscas não ajudavam à imagem. mas sabia exatamente o que dizer.

– Começo por questioná-lo sobre o leitmotiv da sua candidatura independente: vinte anos ao serviço e agora a decisão de enfrentá-lo. Porque o faz? Não receia que muitos dos seus camaradas vejam nesta sua candidatura um ato de traição?

O velho político tinha resposta para aquilo.

– Oiça. É uma falsa questão. Eu não posso ser mais conotado com o partido a que pertenci. Foram outros tempos! Tenho uma visão nova sobre os mesmos problemas…

– Perdoe a insistência, mas não admite a hipótese de haver alguma contradição em liderar um partido duas décadas, ser eleito sucessivamente nas suas listas e agora refutá-lo liminarmente?

– Nem pouco, nem mais ou menos… Sou um homem com visão, um cidadão livre, com convicções próprias! Esta terra precisa de um pulmão. Temos de a catapultar…

– Terra que liderou durante vinte anos…

– Sim, mas com a minha equipa agora…

– Porque pensa que conseguirá fazer no próximo mandato o que não conseguiu em cinco?

O velho político vermelhava agora ostensivamente, sorrindo com afetação. Havia mais candidatos na sala e não lhes fora dirigida qualquer questão com a mesma veemência. Irritava-o já o tom, os esgares, a insistência do jornalista moderador, para não falar da sua muito provável falta de isenção.

– Oiça! Do que esta terra precisa é de uma de uma liderança forte e experiente. Sou o candidato mais cotado. Tenho experiência e prestígio. Sei bater às portas certas!

Rapidamente o atacaram os adversários. Oportunismo, nepotismo, clientelismo, cizentismo. Acabados em ismo, as palavras soam como chocalhos. O velho político não se livrava do coro crítico que lhas pendurava como vis medalhas ao pescoço. Da plateia às escuras chegavam invisíveis imprecações rudes.

– Corrupto!

O candidato mais à direita soltou a língua.

– O senhor é a pessoa nesta sala menos capaz de entender o futuro e, mormente, de o assegurar. É responsável pelas decisões mais vergonhosas de que há memória na nossa terra, no período democrático… Se houvesse justiça neste país, o senhor estaria preso!

Atenazado pelo rigor, força e juventude dos seus adversários, acossado pelo passado recente a que não eximir-se, vencido pelo torpor do bom alentejano que fizera juntar  à feijoada, o velho político principiou a descambar.

– Esse investimento, a que o senhor chama de «negociata», senhor candidato, é uma mais-valia para esta cidade. Todos, exceto o senhor naturalmente, sabem isso… De resto, o senhor no meu lugar, e conhecendo-o eu como conheço, tinha metido umas boas milenas ao bolso. Mas isso é outra questão…

O jornalista moderador precisou de acalmar os ânimos e de lembrar ao velho político e a todos os senhores candidatos o dever de elevação e de respeito pela democracia.

Mas logo ao primeiro ensejo, o velho político destratou a jovem candidata do partido ecologista, que o inquiria sobre benefícios e benfeitorias alegadamente associadas à sua presidência e a diversas empresas poluidoras.

– Ó senhora candidata, ou menina (talvez seja mais correto tratá-la por menina), suponho que ainda usava cueiros quando eu já governava esta terra. Faça o obséquio de não me vir com pedagogia. Os empresários são, toda a gente sabe isso, a alma de uma região. Não se seja, ou não se faça de pretensiosa, de inocente ou de parva!

Os apupos vieram sob os mais variados registos. Repreendido, admoestado, confrontado com ferocidade por todos os rivais, enxovalhado pela escura assistência, posto perante factos de que se esquecera ou de que não pretendia recordar-se, humilhado pela sua prestação errática diante uma geração diferente daquela que o erguera em braços, o velho político sentia encurralar-se-lhe o raciocínio e roncarem as entranhas. Os gases corriam de víscera em víscera, tomando de assalto o sossego de que tanto necessitava numa hora tão cruel.

Discutidas, arengadas, propostas as melhores, rejeitadas as ideias mais espúrias, chegou-se à fase final do debate.

Quando o candidato do centro-direita, no seu timbre descansado, fazia já o apelo final ao eleitorado, escutou-se um arroto. Foi sonoro e explosivo.

O orador interrompeu-se, surpreendido. Depois, como querendo mascarar o que parecia ser um momento embaraçoso na sala, prosseguiu. Mas teve de parar novamente, quando de novo à sua esquerda, berrando como um sopro de trombone (em escalas diferentes nos diferentes microfones), se escutou indisfarçável, longo e superior o efeito terrível da flatulência.

Os olhares voltaram-se todos na mesma direção. Escarlatíssimo, a espirrar sangue, aceso com um rubi pelos holofotes, o velho político pediu desculpa.

Não houve forma de dominar as gargalhadas, as casquinadas alvares, o apupo de uns e de todos. Nem o caudal de ferozes caricaturas que doravante se publicaram, pintaram e reproduziram em som, a cores e em tarjas insultantes.

Por essa, ou por outras superiores razões, o velho político não foi capaz de reeleger-se.

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A santa

Bobby Kostadinov
Fotografia de Bobby Kostadinov

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A santa cheirava a cebola.

Comentava-se muito e a meia voz este facto. «Esfrega-se com o bolbo (rodelas ou casca é que não se sabia) para repelir o olho gordo» dizia-se aqui, «Faz infusões para prevenir a gripe» argumentava-se da outra banda, «É uma desleixada e não toma banho» concordavam todos.

Por culpa deste odor, o ambiente na sala de reuniões e, mais ainda, no gabinete pessoal, era pesado e às vezes pestilento.

A santa sorria bastante. A gengiva e a dentuça viam-se bem. Tal com a verruga e o tufinho de três pelos que dela cresciam em arco, como um emaranhadozinho de espigas bravas. No tampo da sua secretária, dentro das gavetas, no interior da agenda, por todo o lado, havia folhas avulsas repletas de garatujos infantis. A santa parecia ouvir toda a gente e não escutar ninguém. Desenhava.

– O Senhor Jesus olha sempre por nós. Há de guiar-nos nesta e noutras decisões difíceis.

O Natal estava à porta. Cada vez que abria os braços, a santa fazia saltar uma presilha da manga do seu casaco de fazenda.

– Mas, presidente, tem de existir uma alternativa menos dolorosa!

– Não estou a ver qual, caro secretário. Poupa-se dinheiro assim e salva-se a face de toda a gente… Talvez seja essa a vontade de Nosso Senhor!

Vendo bem, o botão da manga do casaco estava partida. Por isso, aquela presilha irritante dançava, ofendendo a concentração dos vogais, que mal podiam suportar o cheiro de refogado entre as paredes da pequena sala de trabalho.

– Caramba, mas estamos em cima das Festas! Esta decisão vai ser mais impopular do que nunca. – observou o tesoureiro.

– Pois… Mas quanto mais tarde pior. Além disso, elas não vão propriamente de mãos a abanar!

Nessa noite, antes de adormecer e de sonhar de novo com os seus quinze filhos numa roda animada (a cantar com ela e a bater palmas e a agradecer a Deus a dádiva da vida), a santa considerou com regozijo que as funcionárias teriam uma boa indemnização.

O segredo é sorrir, sorrir sempre. E deixar que o Senhor Jesus decida por nós o que é melhor para nós. O caminho das nossas opções pode às vezes afigurar-se bem tortuoso!

Nessa noite, quando adormeceu e os sonhos a fizeram elevar-se um pouco deste mundo vil, a santa cheirava a cebola ainda.

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