O abençoado

Homem negro, fotografia de Leroy Skalstad; black man, photo of Leroy Skalstad;
Fotografia de Leroy Skalstad

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Traziam-lhe marfim e ele esculpia-o com a paciência mais apurada de que o género humano é capaz. Os objetos saídos das suas mãos contavam-se entre os que mais vorazmente atraíam a cobiça dos estrangeiros em Brazzaville, em Djambala, em Sibiti, em Mandigou e em todo o Congo. Chamavam-lhe «O abençoado», embora o seu nome verdadeiro fosse Isidor Nkobanjira. Ao cruzar a velhice gabava-se de possuir, nada mais, nada menos, do que setenta filhos.

Perto do fim, pôs-se a cortar e a perfurar e a abrir sulcos com o cinzel numa presa de elefante. Primeiro entalhou o serpentear de um rio, depois o crescer de uma montanha, a seguir uma revoada de astros perfeitamente hemisféricos. Com minúcia, foi acrescentando a água e os peixes, a terra e as impalas, o céu e os abutres. Encheu o marfim com as criaturas todas de que se pôde recordar, sem omitir o silêncio, a morte ou o medo.

«Todo o universo cabe aqui» pensou Nkobanjira.

Na realidade – reparou com o semblante insatisfeito – ao cabo de tudo ainda lhe sobrava algum espaço.

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Logótipo Oficial 2024

O pescador

Birgül Çildogan
Fotografia de Birgül Çildogan

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Numa aldeia do Congo, um pescador sai todas as manhãs para o mar sobraçando, com as redes, um livro de poemas. Regressa a casa com um par de peixes e o ar de extenuado de quem presenciou um prodígio. Os vizinhos admiram-se com o seu lucro nunca mais do que humilde e com a sua expressão cansada. Se lhe perguntam porque não procura servir-se de outras redes ou de mergulhá-las noutras águas, o pescador responde invariavelmente que «A perfeição é a arte da espera.»

Ninguém ali é capaz de o entender.

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